sexta-feira, 29 de julho de 2022

a língua das borboletas

 

Segundo o filósofo Espinosa, a pior fase da vida é a infância. Não em razão de haver algo ruim em ser criança. A infância é uma fase difícil  porque é nela que mais dependemos da qualidade dos adultos e instituições que nos cercam: se o adulto for um tolhedor, correm sérios riscos de serem amputadas as asas com as quais toda criança nasce. E às vezes essas asas são cortadas antes mesmo de se abrirem...

O adulto pode fugir dos maus encontros, mas as crianças são mais vulneráveis a esses  maus encontros, de tal modo que o tolhedor pode passar  para dentro da criança,  fazendo  crescer nela  um adulto ressentido de tesoura na mão também.

Mas se os adultos e instituições que cercam a criança potencializam e encorajam seus voos e descobertas, ser criança se torna a experiência mais rica que pode existir, e dela nascerá de fato um adulto que não deixará morrer seus devires-criança, devires esses que são incapazes de viver os adultos infantilizados pelo Poder Autoritário, Pai e Padrasto dos ressentidos e vingativos.

O filme “A língua das mariposas” fala do encontro de um menino com a educação que lhe abre e potencializa as asas. Como o filme é espanhol, nessa língua “mariposa” é o que nós chamamos de “borboleta”. Dessa forma, o título correto é “A língua das borboletas”.

Às vezes a sensibilidade da criança está enrolada dentro dela  como a língua da borboleta enrolada em torno de si mesma. Assim como a  língua da borboleta se desenrola quando se vê diante do néctar, a sensibilidade da criança se desenrola e se torna exploratória do mundo quando é apresentada ao néctar das ideias.

Pois as ideias que abrem a criança para o mundo são  também ideias para serem sentidas, provadas, saboreadas. Não por acaso, “saber” e “sabor” são palavras primas com origem comum : aprender  é “tomar gosto” pelo conhecer.

O filme se passa durante a ascensão do fascismo na Espanha. E a ascensão do fascismo é igual em toda época e lugar : lá como aqui, coturnos do ódio ameaçando pisotear os jardins onde crescem as flores multicoloridas e seus néctares. Mas antes de pisotearam os jardins, os coturnos da ignorância ameaçam os jardineiros, que são os artistas, os pensadores, os educadores, os libertários.

 A primeira vez que passei esse filme foi num curso para formação de professores que ministrei tempos atrás. Era uma turma só com professores aprendendo a ensinar. Como diz Deleuze, “o aprender vem antes do ensinar”. Poucos filmes nos ensinam tanto acerca da potência libertadora da educação. E também poucos  filmes nos  mostram com tanta indignação e dor  o horror que se torna  a face fascista quando ela se encarna na face cotidiana do vizinho, do parente, enfim, de quem se diz “homem de bem”.






quarta-feira, 27 de julho de 2022

o lápis do poeta

  

Nesta semana se comemora o Dia do Escritor/Escritora. Homenageando Manoel de Barros, deixo aqui minha homenagem também a todas as escritoras, escritores, leitoras e leitores. Enfim, a todos aqueles e aquelas  que agem para que a força esteja nas ideias e nos livros, não em armas.

Manoel de Barros só escrevia à mão sua poesia, e sempre a lápis. Nunca lapiseira de plástico, sempre lápis de madeira.

Curiosamente, “digitar” é um ato que faz parte da atividade de “bater”, “golpear”. Quem digita, bate com os dedos nas teclas. Já escrever à mão expressa outro tipo de movimento: desenhar.

Quem escreve agencia sua mão com o corpo do lápis, e por intermédio deste é nosso corpo que também escreve, com seus nervos e fibras, incluindo as do coração. Quem escreve à mão desenha, parecendo às vezes que o lápis também dança na ponta de seu grafite, como a bailarina equilibrada na ponta dos pés.

Para que na palavra também se expresse a pluralidade sensória da vida, mais adequado é o lápis do que teclados . Pois palavra digitada é 1 e 0 combinados segundo a lógica digital  binária, mas o grafite que o lápis liberta veio da imanência da terra: primo do diamante, o grafite é feito de carbono, base da vida.

O cérebro não funciona da mesma maneira quando se digita e quando se escreve à mão, quando se bate e quando se desenha, quando se golpeia e quando se dança.

Há certa violência em bater-digitar. Talvez essa seja uma das razões que explique porque os fascistas gostam tanto de violentar também as teclas e, por intermédio destas, as ideias (encontrando no meio digital um ampliador de suas violências físicas e simbólicas).

 Além disso, sem que saibamos, há o risco de o capital cibernético reduzir a algoritmos tudo o que digitamos nas redes sociais  , para assim nos oferecer como mercadoria aos novos mercadores de gente, sempre ávidos por inescrupulosos lucros.

Na madeira do lápis do poeta ainda vive e resiste a árvore que um dia fez parte do Pantanal que os criminosos hoje incendeiam , para tudo reduzir a pasto de gado obediente .

Por intermédio do lápis do poeta continuam a falar as árvores, as florestas, os bichos, as plantas, os pássaros , as paisagens, os verdes e seus infinitos tons, o azul e seus horizontes... Enfim, fala tudo aquilo que os destruidores da vida querem calar e matar. Por meio da  palavra libertária que ele cria e ensina, no lápis do poeta o grafite se torna diamante.

Nada contra o digitar, porém escrever à mão, a lápis, é ato mais afim ao poema que , como gente, também nasce: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, escreve o poeta.







domingo, 24 de julho de 2022

Francisco e o muro...

 

Ouvi certa vez a seguinte história de autoria popular ( que aqui parafraseio e interpreto): de um lado estava São Francisco, do outro o Diabo. Separando a ambos ,  um muro; e em cima do muro estava  alguém que se dizia “Neutro”.

 Francisco  disse ao “Neutro”: “- Venha para este lado, aqui há luz e  empatia  pela vida do outro.” 

Do   lado oposto do muro , porém, o Diabo permanecia calado.

Vendo  o “Neutro” ainda indeciso e  parado, Francisco  prosseguia : “- Venha se juntar a nós , Buda também está aqui; também estão Lao-Tsé, Confúcio,  Orixás , Tupã, Mães-de-Santo,  pajés ... Bem como todos aqueles que, tendo ou não religião,  agiram para defender e libertar  os oprimidos e injustiçados.”

Estranhamente, o Diabo seguia mudo, ele que gosta tanto de se vangloriar...

Então, Francisco levantou a cabeça , olhou sobre o muro e indagou ao que reinava na treva  do outro lado : “- Por que você   permanece  calado?”

“- É que esse muro onde o ‘Neutro’ está  instalado  pertence a mim”, disse o Diabo.

Do certo lado do muro, o poeta Manoel de Barros assim poetizou: “São Francisco monumentou os passarinhos.”



(obs: A postagem se apoia mais no personagem social-popular Francisco, um personagem da literatura de  cordel , e não na figura religiosa. Não é tratado o tema do ponto de vista de uma religião. Inclusive , dei a entender que do lado do muro onde está o personagem Francisco também podem estar agnósticos e até ateus)


(imagem: montagem semelhante circula pela web. Mas como não consegui identificar a autoria, acabei produzindo uma versão. A foto de Lula é de autoria do fotógrafo Ricardo Stuckert)



 

sábado, 23 de julho de 2022

os cactos

 

Muito se fala, com razão, das flores. Rosas, girassóis, crisântemos, margaridas...Essas e outras flores já foram homenageadas em poemas , músicas e pinturas.

Mas pouco se fala das flores que o cacto também sabe produzir. Considero essa omissão  uma injustiça com esse artista da resistência. Na dele, sem chamar a atenção ou fazer propaganda de si, o cacto é capaz de atos que trazem a beleza da generosidade.

Assim age esse perseverante resistente: o cacto é a planta que possui a maior raiz. Em alguns cactos,  a extensão de sua raiz chega a nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão!

Quem mede o cacto apenas pela sua parte visível, e pensa que a parte que vê é todo o ser do cacto, por certo ignora o que o cacto é capaz de fazer. O cacto cria imensas raízes para sondar o subsolo , não se deixando vencer pela aridez que o cerca. As raízes do cacto tateiam procurando veios d’água metros abaixo da paisagem seca. Ele persevera procurando no coração da Mãe Terra a água que o Céu lhe nega.

Quando encontra a água, o cacto anuncia sua descoberta brotando flores: em pleno árido , ele inaugura uma primavera. Então, ele sorve o líquido e se intumesce , de água fresca ficando grávido. Basta um pequeno furo para a água jorrar matando a sede dos necessitados.

Foram os cactos do sertão nordestino que, no passado, não deixaram morrer de sede a rebeldia de Lampião e seu cangaço ; e a flor que Maria Bonita punha no cabelo também floresceu de um cacto : o mandacaru, símbolo da força do povo nordestino.

O cacto mandacaru expressa a resistência da vida, uma resistência que também se faz com poesia e beleza, apesar da aridez que a cerca. O mandacaru matou a sede de Lampião e deixou a Maria ainda mais Bonita.

 

“Quando não pode ser cristal, a poesia vale pelo que tem de cacto.”

(João Cabral de Melo Neto)

 

( em homenagem ao grande poeta João Cabral, ofendido recentemente por esses ignorantes obscurantistas que querem transformar tudo em deserto  . Enfeitando a capa do livro de João , os cactos resistentes do Nordeste)

 


 

Flores do cacto mandacaru:










quinta-feira, 21 de julho de 2022

os galos...

 

1-Quem já viveu ou passou uma noite no interior, e tem o sono leve, já viveu isto: no meio da madrugada mais profunda, onde o escuro parece que é eterno e dominará a todos e a tudo, de repente ao longe um galo canta quebrando o silêncio .  

Como um pequeno fio de luz sonoro, esse canto entra no nosso sono,  sem nos despertar totalmente, apenas em parte.

Antes que o sono volte a nos anestesiar, um canto toca de novo  nossos ouvidos. Já um pouco mais despertos, a gente acha que é de novo o mesmo galo solitário cantando em desespero por estar acordado enquanto todos dormem. Mas na verdade é um outro galo que  veio  ajudar o primeiro galo a tecer, cantando, o que parece impossível: uma nova manhã.

Até que se  ouve um terceiro galo também cantando, e logo  um quarto se soma . Depois um quinto galo toma coragem e canta forte. Um galo  canta perto, outro muito longe lá no horizonte...

Já não é possível mais contar quantos galos agora cantam: são vários e, embora diferentes no canto e na voz, todos cantam a mesma mensagem : a nova  manhã que , antes  mesmo de o sol nascer, já é anunciada no perseverante  coro cantante que também é sol , desperta e aquece.

Então, no meio da noite  acontece o “milagre poético”:  agora dentro de nós  já despertos também ouvimos um galo a  cantar para ousar, apesar da treva, tecer com outros galos uma nova manhã que virá.

2-Escrevi esse texto hoje numa área de muito verde, após ser despertado pelos galos  na alta madrugada, quando  o galo que há em mim também despertou e  ,de forma simples e modesta , viu a manhã antes de ela nascer.

A esse coro dos  galos que ouvi  hoje somam-se outros galos que aprendi a escutar ao longo da vida. Esses outros  galos   tecem as  manhãs existenciais que nos despertam para a necessidade ética, pedagógica e política de tecer um porvir.

São também galos tecedores e fazedores de auroras, alvoradas e  amanheceres:  Espinosa, Lucrécio, Nietzsche, Clarice, Carolina de Jesus, Lima Barreto, Cláudio Ulpiano, Cartola, Manoel de Barros, João Cabral ...

E também se esforçam para ser galos , cada qual com sua maneira, voz e jeito, aqueles que ensinando, aprendendo, cuidando, trabalhando, enfim, agindo, apesar da noite tremenda, ousam  tecer juntos  um porvir.

Às  primas Cristina Martins, Fabiane Martins e Laura Martins, em agradecimento .



 

O acontecido me lembrou este poema de João Cabral:

 

“Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.”






quarta-feira, 20 de julho de 2022

o ovo da serpente, ontem e hoje

 

O filme “O ovo da serpente”, de Bergman, mostra a ascensão do nazismo na sociedade alemã. O nome do filme compara o surgimento do nazifascismo com o que fazem certas serpentes traiçoeiras e venenosas : a serpente escolhe um momento de distração da ave dona do ninho e coloca seu ovo entre os ovos já postos pela ave.

Metaforicamente, não é qualquer ninho que tem a possibilidade de chocar o ovo da barbárie. A serpente autoritária escolhe pôr seu “ovo” em ninhos onde já são chocados o “ovo da intolerância”, o “ovo de uma crise econômica”, o “ovo do preconceito contra minorias”, o “ovo da busca por um ‘Messias-Mito’ que, em nome dos ‘homens de bem’, persiga e demonize os ‘Diferentes’".

É em ninhos onde já existem tais ovos que a serpente nazifascista aproveita para pôr dissimuladamente o seu ovo, que é então chocado por parte da sociedade incauta, ingenuamente crédula.

Quando a serpente nasce, a primeira coisa que faz é começar a devorar quem a fez surgir , inoculando seu veneno na sociedade onde encontrou condições para ser chocada. Depois, ela devora os outros ovos que foram gestados junto dela, pois tudo o que nos enfraquece a faz crescer. 

 A serpente protofascista que saiu do ovo em 2018 nos ameaça não só com seu veneno, ela também age usando constrição para nos provocar sufocamento . A ignorância, a idiotia , o preconceito...são alguns de seus venenos ( além do agrotóxico que envenena literalmente nosso alimento, enriquecendo ruralistas e bancos com suas “commodities”).

A serpente ainda tenta nos sufocar infiltrando milicos no Estado, aparelhando o Ministério Público e o Judiciário, cooptando a polícia e a PM, fortalecendo o poder das milícias, militarizando as escolas, acumpliciando teológico-politicamente a Bíblia ao revólver (como os pastores bolsonaristas mancomunados com traficantes para reprimirem as religiosidades afro-brasileiras nas favelas);a serpente também nos sufoca cultuando o obscurantismo negador da ciência, reduzindo o valor da vida a nada, para fazer da destruição e da morte a sua política de governo.

A serpente-fascista assim procede para nos roubar o ar aos poucos, querendo paralisar em nós a capacidade de ação.

E assim se chegou a este quadro: de um lado, os ignorantes envenenados e os cúmplices bem pagos desse envenenamento; e do outro lado estamos nós, que somos vários, porém ainda dispersos.

Precisamos encontrar um antídoto que nos proteja a tempo. Para o vírus, a vacina  já está nos protegendo , porém contra a serpente-verme só mesmo nos unindo para sermos maiores  do que a goela covarde dessa serpente oca.

(Amigas e amigos, fiz esta postagem em 2018, logo após a vitória da serpente-fascista. O texto de agora possui alguns acréscimos. Mais recentemente, alguns artigos e livros também foram escritos comparando o que vivemos hoje com este filme perigosamente atual)




sábado, 16 de julho de 2022

manoel antifa

 

Há certo tipo de seres  cuja tosca crítica deles a nós deve ser recebida como um elogio e nos dar ainda mais força para avançar .

Fiz essas considerações acima devido ao seguinte fato: a poesia de Manoel de Barros foi censurada e proibida de constar no exame do Enem , por ordem  dos fascistas. E o mais grave: foi uma censura motivada por questões teológico-políticas.

Como todo tirano que teme a liberdade de pensamento, dizem que foi o próprio genocida quem deu o parecer final sobre o que deve ou não constar na prova. Vocês conseguem imaginar o fascista tentando ler Manoel de Barros!? Deve ter sido algo semelhante ao vampiro diante do alho, ou como o asqueroso ácaro sendo fulminado pela luz do sol...

Essa censura engrandeceu ainda mais o valor pedagógico , político e libertário do poeta. Sei que soa paradoxal dizer isso, mas essa restrição dos fascistas a Manoel deve nos encher de alegria: estamos no caminho certo.

Ainda mais porque essa censura em nada diminui a grandeza da  obra do poeta, e só revela a pequeneza, tacanhez e estreiteza daqueles que o censuraram. Eles são como aquelas obscuras pedras citadas pelo próprio Manoel, que assim nos dá o exemplo: “Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.”

Viva Manoel!!🦋📚✊

 

( Na foto, Manoel de Barros lendo a seguinte obra: “Fragmentos”, do poeta-filósofo Heráclito)













sexta-feira, 15 de julho de 2022

Espinosa & Manoel: afetos revolucionários

 

Alguns poetas latinos ensinam uma etimologia muito original e rica da palavra “amor”. Essa palavra nasce da união da letra “a” com função privativa ( como em “a-fasia” = “sem fala”) mais a abreviação da palavra “morte” = “mor”. Assim, nesse sentido poético-pensante , “amor” é “não morte”.

“Morte” não apenas no sentido biológico, pois “ódio”, “ignorância”, “necropolítica”... são formas  doentias de  morte também.

Quando nutrimos de fato amor a algo ou alguém , cuidamos, agimos e lutamos pela não morte do que amamos. Amar a democracia , por exemplo, é agir pela não morte da democracia; amar a educação é agir pela não morte da educação.

O amor assim compreendido não é algo apenas  individual ou subjetivo, mas uma força que une as coletividades e as desperta para  a prática política  enquanto ação coletiva para não deixar   morrer a dignidade em nossas vidas.

 Platão é o pai da visão romântica e idealizada que vê o amor como a busca de algo que nos falta. Para os poetas latinos, ao contrário, o amor não é falta, ele é potência já presente em nós agindo  para nos proteger daqueles que negam a vida, a despotencializam ou a querem morta.

Seguindo a lição dos poetas latinos, Espinosa também concebe o amor como potência, e não como falta. Ao contrário do que pensam Platão e os românticos, Espinosa ensina que o amor não é apenas encontro de almas, ele também é a potência  que une alma e corpo, mente e sensibilidade, teoria e prática.

O amor não concerne apenas à alma e corpo individuais, pois também há a alma e o corpo coletivos. Numa democracia, a alma coletiva se potencializa educando-se   nas ideias que despertam nela a compreensão de que ela é, ao mesmo tempo, una e múltipla, singular e plural.

À alma coletiva rica corresponde um corpo social heterogêneo . A educação autêntica é prática para potencializar a alma coletiva como expressão de um corpo social plural-democrático.

Os tiranos, ao contrário, estão sempre querendo entristecer a alma coletiva inoculando nela a superstição e o medo, para assim despotencializar o corpo coletivo reduzindo-o a um rebanho homogêneo , dócil.

E uma das formas que o tirano tem de manter o rebanho coeso é fomentar nele o ódio a tudo aquilo que é diferente, potente, alegre, criador. Medo, ignorância  e ódio são as armas do tirano, ontem e hoje.

Segundo Espinosa, não é odiando a doença que se conquista a saúde: é o amor à saúde que nos faz vencer a doença. Não é o ódio ao tirano que nos dá força para vencê-lo: é o amor à democracia que nos potencializa ante toda forma de tirania. Vingança é ódio, porém indignação ativa é amor à justiça.

Agenciado  a Espinosa, Manoel de Barros nos ensina esta lição que é também clínica, ética, pedagógica ,  política , micro e macrorrevolucionária: “Se a gente não der o amor, ele apodrece dentro de nós”.

 

( este livro é apenas uma sugestão)



 

- outras sugestões:





terça-feira, 12 de julho de 2022

expressionismo cósmico

 

A nave Voyager , enviada ao espaço há mais de 30 anos, ultrapassou as fronteiras  do sistema solar:  ela agora navega  no oceano desconhecido do cosmos. As últimas coisas que a nave  viu não foram  sóis ou estrelas , mas os berçários nos quais estrelas e sóis  nasceram .   A nave é como uma carta que  tem apenas o endereço do remetente :  o planeta terra. E seu destino lembra   o  daquelas mensagens  lançadas ao mar no interior de uma garrafa.

A Nasa colocou um  cd feito de ouro nessa nave. Há sons gravados no cd :  são mensagens com as quais desejamos expressar quem somos  ao cosmos. O ouro foi escolhido pela sua durabilidade,  não pelo seu valor monetário.

Esse disco-cd pode durar até um milhão de anos, tempo superior ao que os cientistas supõem que a humanidade ainda durará.

Daqui a um milhão de anos , talvez sejamos apenas o relato de certo ser estranho já extinto , um mistério a decifrar gravado num disco de ouro.

Estão gravados  no disco , como poéticos testemunhos do que somos e sentimos: sons   de grilo e sapo; uma baleia cantando; as batidas do coração de um recém-nascido, e as primeiras palavras de sua mãe quando ele abre os olhos; o som das ondas cerebrais de uma jovem que acabou de se apaixonar; um cão  latindo feliz com o retorno à casa de seu amigo-dono; o estalar  de um beijo; sons de chuva e vento; o ribombar de um trovão ; o estrondo de um vulcão que acaba de acordar; risos de crianças brincando; o som suave de uma página de livro sendo folheada; e um “bom dia” dito em  diferentes línguas e dialetos, feito uma  multitudo sonora.

Daqui a um milhão de anos,   talvez já  tenha virado pó tudo o que o dinheiro hoje compra; e apenas pó também sejam  o Paraiso e o Inferno  que os fanáticos teológico-políticos vociferam e em nome dos quais nos ameaçam com  suas fogueiras ( literais e simbólicas).  Mas  para que  durem ainda muito nossas vidas, que não tarde o dia em que  virarão  pó o obscurantismo e a necropolítica.

O poeta Manoel de Barros dizia :“ poderoso não é quem descobre ouro, poderoso  é quem descobre as insignificâncias”. As “insignificâncias” são pequenos acontecimentos vitais cuja grandeza é ignorada pelos homens e suas “importâncias”. Naquele disco da nave estão gravadas “insignificâncias”  endereçadas a  olhos cósmicos .

Talvez sejam esses mesmos olhos que, no aqui e agora, abrem-se no  poeta :  alguém que vê essas “insignificâncias” e as  eterniza como palavra poética que faz pensar, sentir e educa. São essas insignificâncias sentidas , vividas  e partilhadas a verdadeira riqueza daquele disco de ouro que enviamos à eternidade.

 

(na imagem, a primeira foto do universo enviada pelo telescópio James Webb junto a uma   pintura expressionista de Pollock, ambas parecendo expressar o mesmo estilo e arte. Nome da obra de Pollock : “Reflexões sobre a estrela Ursa Maior”, de 1947)




 

- com tradução:




  

- Insignificâncias manoelinas = as coisas favoritas que Coltrane musicou:



domingo, 10 de julho de 2022

a "besta"...

 

Segundo Deleuze, “besteira” vem de “besta”. A besta não é um animal determinado, mas um “fundo indeterminado” oculto  em todo animal. Nos animais, porém, o instinto os dota   de certo comportamento reconhecível ,  impedindo que esse fundo obscuro da besta tome o animal.

O leão é o leão, a hiena é a hiena, o lobo é o lobo. A ferocidade desses animais não é maldade ou crueldade, mas ações que se explicam pelo instinto, pela natureza. Nenhum desses animais se comporta como uma besta indeterminada, pois seus comportamentos são explicáveis por sua natureza.

O homem é o único ser no qual o instinto não tem força para protegê-lo desse fundo indeterminado-obscuro,  tampouco pode a  inteligência , sozinha,  livrar o homem  da besta que vive nele.

As armas, por exemplo, são  ciências aplicadas ( física, mecânica, balística...)   a serviço da besta. O mundo digital, apesar de fruto da tecnologia avançada, também pode servir à mentalidade obscurantista e atrasada da besta.

Quando a besta toma a mente e a boca do homem, nasce então a besteira. Para quem sabe ouvir, crianças nunca dizem besteiras, somente os adultos que são uma besta  podem dizer besteiras que tanto doem ouvir.

 A besta pode até mesmo se servir da religião, tal como no fanatismo teológico-político  armado de intolerância. A besta pode se servir do Estado, nascendo assim o Leviatã Fascista raivosamente militarizado.

Quando a besta toma o homem, este se torna um ser irreconhecível , virando um bicho que nem  a natureza  explica mais , um bicho paranoico, persecutório , sombriamente covarde...

Incapaz de empatia, a besta zomba da morte, se compraz com a destruição e faz do negacionismo a sua   macabra religião.  Enfim,  a "besta" é a presença  no homem de um "buraco", de uma “obscuridade”,  de uma "morte".  Não a morte biológica, mas a morte como política: necropolítica.

Como a "besta" é movida por esse "buraco-negro", bestialmente se volta contra tudo aquilo que é criação de  luz,  como a educação, a cultura e as artes. A "besta" quer fazer tudo  ruir para seu buraco-negro para ver se o preenche, porém isso é impossível, o buraco é sem fundo.

 A besta  odeia  a natureza, e por isso quer  sempre  destruí-la : fisicamente, como faz com as florestas; ou simbolicamente,  com a “demonização” do corpo e do desejo.

A mídia corporativa, setores do judiciário, o sistema financeiro...foram cúmplices dessa besta que , há quatro anos, nos ameaça com suas besteiras e bestialidades , dele e de seus cúmplices.                                                                              

Na mitologia, a “Besta” era representada pelo Minotauro: metade touro, metade homem, a besta morava num lúgubre labirinto que prendia a todos e parecia não ter saída. Mas a bestialidade do Minotauro, sua “sede de sangue”,  não vinha do touro, que é herbívoro. A bestialidade vinha da  parte humana  acéfala,  que instrumentalizava a força bruta do touro  a serviço de sua existência doentia.

Devemos ter cuidado, mas não medo. Somente coletivamente , nas ruas, podemos criar um Fio de Ariadne que nos salve desse labirinto...