Certa vez, uma aluna de uma simpática turma me perguntou de qual poema de Manoel de Barros
eu mais gostava. “A resposta é muito difícil, são tantos os poemas dele que
amo...rs...”, respondi com humor.
Mas para não deixar a turma sem
resposta, citei este: “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre
entre pedras: liberdade caça jeito.”
Interpreto esse “trilho” do qual
fala o poeta como uma espécie de “amarra prévia” que impede criações,
invenções, ousadias, subversões , enfim, descobertas. Pois todas as descobertas
, inclusive as autodescobertas, acontecem em desvios ou caminhos ousados
por um andar sem amarras.
Como todo pensador original , o
poeta não aprecia trilhos já demarcados, ele prefere vias que se traçam em chão ainda não pisado: “O
andarilho abastece de pernas as distâncias”, ensina Manoel.
Os machistas gostam de
dizer: “Mulher direita anda nos trilhos”. Para eles , “trilho” é o poder
falocrático que sujeita a mulher ao caminho pré-determinado pelo homem.
A água de que fala o poeta é
fluxo perseverante que vence as pedras, tanto as pedras físicas quanto as
simbólicas. Nunca sobre trilhos, é abrindo trilhas que um fluxo cria direções
novas.
Há uma diferença fundamental
entre a água compreendida como fluxo emancipador ( ou “linha de
fuga”) e a água que, passiva e acomodada, amolda-se à forma do
recipiente na qual ela é contida e aprisionada.
O hoje muito citado sociólogo Zygmunt Bauman criou a noção de “realidade
líquida” para descrever a volubilidade e falta de consistência das realidades
políticas, afetivas e até cognitivas que hoje vivemos. O modelo de tais
realidades líquidas é a liquidez volátil do Capital que a todos quer assujeitar
à sua lógica predadora, individualista, desumanadora.
Segundo Bauman, o
Capital modela as realidades sociais e psíquicas e as torna líquidas
para conformá-las em seus moldes efêmeros, rasos: após apresentadas como novidade para serem “consumidas”,
em pouco tempo tais realidades já se tornam sucata , tanto as coisas como os sentimentos, sendo então alijados e tratados
como descartáveis, incluindo os seres humanos e
seus direitos.
Porém , muito diferente de tal
“realidade líquida” descrita por Bauman são os fluxos
incontíveis enquanto potência
poética-existencial ensinada por Manoel.
Os fluxos não cabem em
moldes, fôrmas, trilhos...Todo fluxo nasce de uma fonte, e por isso
todo fluxo sempre fontaneja: produzindo fontes em nossos
olhos, mente e sensibilidade, para que deles fontanejem ideias e ações
que não se deixam barrar por pedras, por mais duras e
intransponíveis que elas aparentem ser.
Como também ensina o poeta W.
Blake: “A cisterna contém, a fonte transborda”.
(Imagem: Manoel lendo o
poeta-filósofo Heráclito, o primeiro a pensar os fluxos...)
“Arte é purificação, e
não pureza; libertação, e não liberdade.”
(Clarice Lispector)
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