sábado, 26 de outubro de 2024

O poeta e os fluxos

 

Certa vez, uma aluna de uma  simpática turma  me perguntou de qual poema de Manoel de Barros  eu mais gostava. “A resposta  é  muito difícil, são tantos os poemas dele que amo...rs...”, respondi com humor.

Mas para não deixar a turma sem resposta, citei este: “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.”

Interpreto esse “trilho” do qual fala o poeta como uma espécie de “amarra prévia” que impede criações, invenções, ousadias, subversões , enfim, descobertas. Pois todas as descobertas , inclusive as  autodescobertas, acontecem em desvios ou caminhos  ousados   por um  andar sem amarras.

Como todo pensador original , o poeta não aprecia trilhos já demarcados, ele prefere vias  que se traçam em chão ainda não pisado: “O andarilho abastece de pernas as distâncias”, ensina Manoel.

Os machistas gostam  de dizer: “Mulher direita anda nos trilhos”. Para eles , “trilho” é o poder falocrático  que sujeita a mulher ao caminho pré-determinado pelo  homem.

A água de que fala o poeta é fluxo perseverante que vence as pedras, tanto as pedras físicas quanto as simbólicas. Nunca sobre trilhos, é abrindo trilhas que um fluxo cria direções novas.

Há uma diferença fundamental entre a água compreendida como fluxo emancipador ( ou “linha de fuga”)  e a água que, passiva e acomodada, amolda-se à forma do recipiente na qual ela é contida e aprisionada.

O hoje muito citado sociólogo  Zygmunt Bauman criou a noção de “realidade líquida” para descrever a volubilidade e falta de consistência das realidades políticas, afetivas e até cognitivas que hoje vivemos. O modelo de tais realidades líquidas é a liquidez volátil do Capital que a todos quer assujeitar à sua lógica predadora, individualista, desumanadora.

Segundo Bauman,  o Capital modela as realidades sociais e psíquicas  e as torna líquidas para conformá-las em  seus moldes efêmeros,  rasos: após  apresentadas como novidade para serem  “consumidas”, em pouco tempo tais realidades   já se tornam   sucata , tanto as coisas como os sentimentos, sendo então alijados  e  tratados como   descartáveis, incluindo os seres humanos e seus direitos.

Porém , muito diferente de tal “realidade líquida” descrita por Bauman são os fluxos incontíveis  enquanto potência poética-existencial  ensinada por Manoel.

 Os fluxos não cabem em moldes,  fôrmas, trilhos...Todo fluxo nasce de uma fonte, e por isso todo fluxo sempre fontaneja:  produzindo  fontes em nossos olhos, mente e sensibilidade, para que deles fontanejem ideias e ações que  não se deixam barrar  por pedras, por mais duras e intransponíveis  que elas aparentem ser.

Como também ensina o poeta W. Blake: “A cisterna contém, a fonte transborda”.

 

(Imagem: Manoel lendo  o poeta-filósofo Heráclito, o primeiro a pensar os fluxos...)



 


 





“Arte é purificação, e não pureza; libertação, e não liberdade.”

(Clarice Lispector)

 

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