quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Clínicas...

 

Deleuze dizia[1] que uma das principais funções da poesia e da literatura é nos auxiliar  a ver  e a ouvir . Para isso, a palavra poética-literária  cria  novos sulcos fora dos sulcos costumeiros.

A palavra “sulco” é , em grego, “lira”. Essa palavra também designa o instrumento tocado por Orfeu, o poeta originário. Os paralelos sulcos cavados  na superfície da terra lembram as paralelas cordas da lira. Há um paralelismo dos sulcos. Mente e corpo não têm primazia um sobre o outro, eles são paralelos, ensina Espinosa. Realidades paralelas são traçadas em espaços  horizontados.

A palavra poética-literária  nos leva a ver e a ouvir , mas ver e ouvir fora dos sulcos costumeiros  do “ver e ouvir acostumados” , diria Manoel de Barros.

O artista-pensador cria novos sulcos fora dos sulcos do ver acostumado, ele introduz novas cores e paisagens inauditas; ele também estende uma nova corda na lira da nossa alma, para assim ampliar os sons de nossa música, potencializar novos ritmos a serem ouvidos e cantados.

Do ponto de vista do ver e do ouvir habituais, o poeta-pensador de-lira, isto é, ele cria realidade fora da lira do ver e ouvir acostumado, “mesmal”.

 Mas há duas formas de delírio. Há o delírio da arte que nos faz ver e ouvir fora da lira-mesmal, delírio esse que cava novos sulcos, estende novas cordas no instrumento pensante-senciente  de nossa alma.Manoel de Barros chama esse delírio poético-artístico-pensante  de “delírio ôntico”. Em grego, “ser” se diz “on”. O delírio ôntico produz  novos olhos e ouvidos para vermos e ouvirmos outras potencialidades de seres , de estares, de devires... Criando essas potencialidades, sendo-as.

Já o delírio mórbido é aquele da palavra acostumada que nada nos faz ver, a não ser uma absurda noite sem estrelas; que nada nos faz ouvir , senão o lamento triste de uma música saída de cordas atrofiadas. Em vez de ser lançada em  novos sulcos, a semente cai numa terra árida, infértil; no lugar de uma polifonia, o barulho ensurdecedor das várias manifestações sonoras do niilismo e da pulsão de morte.

É por isso que a palavra poética é uma clínica: ela opera em favor da saúde dos olhos e dos ouvidos do nosso espírito por intermédio dos olhos e ouvidos do nosso corpo, de tal modo que cada um , corpo e espírito, torna-se  o novo sulco um do outro.

“Clínica” significa: “chegar perto”. O bom médico chega perto de seu paciente para envolvê-lo de cuidados, ao passo que o mau médico mantém o paciente afastado como mero objeto sobre o qual exerce um poder.

O perto que a clínica poética-filosófica  propicia é um  chegar perto de realidades muitas vezes  nem nascidas ainda, como a paisagem potencialmente nas tintas, a música potencialmente no som, o poema potencialmente na palavra, a ideia potencialmente na mente. É chegando perto , com o corpo e com a mente,  dessas realidades em potência e não formadas ainda, é chegando perto delas para chegar perto de si mesmo,  que alguém se torna  pintor, músico, poeta, filósofo. E todos esses também são médicos. Não médicos que lutam contra a doença, mas médicos que potencializam a saúde do nosso ver, do nosso ouvir, do nosso pensar, do nosso sentir, sempre em função da potencialização do nosso existir.  




 



[1] Na Introdução de Crítica e clínica.

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