Deleuze dizia[1]
que uma das principais funções da poesia e da literatura é nos auxiliar a ver e
a ouvir . Para isso, a palavra poética-literária cria novos sulcos fora dos sulcos costumeiros.
A palavra “sulco”
é , em grego, “lira”. Essa palavra também designa o instrumento tocado por
Orfeu, o poeta originário. Os paralelos sulcos cavados na superfície da terra lembram as paralelas
cordas da lira. Há um paralelismo dos sulcos. Mente e corpo não têm primazia um
sobre o outro, eles são paralelos, ensina Espinosa. Realidades paralelas são
traçadas em espaços horizontados.
A palavra poética-literária nos leva a ver e a ouvir , mas ver e ouvir fora dos sulcos costumeiros do “ver e ouvir acostumados” , diria Manoel de Barros.
O artista-pensador cria novos sulcos fora dos sulcos do ver acostumado,
ele introduz novas cores e paisagens inauditas; ele também estende uma nova
corda na lira da nossa alma, para assim ampliar os sons de nossa música,
potencializar novos ritmos a serem ouvidos e cantados.
Do ponto de
vista do ver e do ouvir habituais, o poeta-pensador de-lira, isto é, ele cria
realidade fora da lira do ver e ouvir acostumado, “mesmal”.
Mas há duas formas de delírio. Há o delírio da arte que
nos faz ver e ouvir fora da lira-mesmal, delírio esse que cava novos sulcos,
estende novas cordas no instrumento pensante-senciente de nossa alma.Manoel de Barros chama esse delírio poético-artístico-pensante
de “delírio ôntico”. Em grego, “ser” se
diz “on”. O delírio ôntico produz novos
olhos e ouvidos para vermos e ouvirmos outras potencialidades de seres , de
estares, de devires... Criando essas potencialidades, sendo-as.
Já o delírio
mórbido é aquele da palavra acostumada que nada nos faz ver, a não ser uma absurda noite sem estrelas; que nada nos faz
ouvir , senão o lamento triste de uma
música saída de cordas atrofiadas. Em vez de ser lançada em novos sulcos, a semente cai numa terra árida,
infértil; no lugar de uma polifonia, o barulho ensurdecedor das várias
manifestações sonoras do niilismo e da pulsão de morte.
É por isso que a
palavra poética é uma clínica: ela opera em favor da saúde dos olhos e dos
ouvidos do nosso espírito por intermédio dos olhos e ouvidos do nosso corpo, de
tal modo que cada um , corpo e espírito, torna-se o novo sulco um do outro.
“Clínica”
significa: “chegar perto”. O bom médico chega perto de seu paciente para envolvê-lo
de cuidados, ao passo que o mau médico mantém o paciente afastado como mero
objeto sobre o qual exerce um poder.
O perto que a
clínica poética-filosófica propicia é
um chegar perto de realidades muitas
vezes nem nascidas ainda, como a
paisagem potencialmente nas tintas, a música potencialmente no som, o poema
potencialmente na palavra, a ideia potencialmente na mente. É chegando perto ,
com o corpo e com a mente, dessas realidades
em potência e não formadas ainda, é chegando perto delas para chegar perto de
si mesmo, que alguém se torna pintor, músico, poeta, filósofo. E todos esses também
são médicos. Não médicos que lutam contra a doença, mas médicos que
potencializam a saúde do nosso ver, do nosso ouvir, do nosso pensar, do nosso
sentir, sempre em função da potencialização do nosso existir.
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