quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O ímã de Espinosa

 

É equivocado atribuir a Espinosa um mero intelectualismo ou racionalismo férreo. Igualmente não é correto afirmar que existe apenas duas formas de amor nele: o da imaginação, sempre passivo, e o  do intelecto, atribuindo-se a  este a  única e confiável forma de amor ativo. É preciso ter mais do que lógica analítica na leitura de Espinosa, é necessário ter também sensibilidade  à sutileza de seu pensamento que se apoia igualmente  no corpo.

Na Quinta Parte da Ética, Espinosa nos fala do amor intelectual a Deus. Somente quando aprende a amar é que o intelecto alcança o que Espinosa chama de Deus,  o Absolutamente Infinito.

Esse amor não é sensível. Porém, é difícil ao intelecto aprender esse amor do qual apenas ele é capaz, pois é necessário que ele apreenda em si uma potência que vai além do mero raciocinar; é preciso que ele se faça, inteiro e não apenas em parte, intuição. Intuir é um contato imediato, sem mediação ou distância, com uma realidade. O amor intelectual a Deus leva o intelecto a apreender uma realidade que não é carcomida pelo tempo.

No entanto, esse amor intelectual não é o máximo que o amor pode , ele ainda é um grau do amor, não todo o amor. Segundo Espinosa, o valor desse amor intelectual está em nos fazer conhecer outro amor: o  amor para Deus ou o amor voltado para Deus.  O amor intelectual  atinge o conhecimento das essências enquanto objeto eterno do intelecto. Mas o amor para Deus é um amor voltado para aquilo que os olhos do corpo também veem.

Não é um amor apenas pelas essências, é um amor pelas existências também. De quais existências? Não desta ou daquela existência em particular, mas de todas as existências. Esse amor parte da imagem que o corpo apreende e sente, ele é duração. Contudo, o antecede o amor intelectual que apreende as essências eternas. Então, como se fosse o instante de um clarão que ilumina tudo, porém muito rápido ( e logo a escuridão retorna) , percebemos que não existem dois amores, existe um só, infinitamente múltiplo, porém. Enfim, sentimos de alguma forma que também dura a eternidade: "poeta é quem diz eu-te-amo a todas as coisas"(Manoel de Barros).

Imaginemos uma criança que nasce. A mãe a ama não apenas com a alma, ela a ama também com o corpo: seu corpo alimentou aquele pequeno corpo que agora nasceu dela. O amor também é a placenta, o leite e o colo. Contudo, a criança não se sabe amada de forma tão clara como a mãe o sente.   O amor da criança pela mãe demora a brotar, pois a própria criança ainda não tem a noção de si. Mesmo se a criança nascer com algum problema congênito que a fará crescer sem consciência, mesmo assim a mãe ainda a amará, se mãe de fato o for.

A criança foi gerada nesse amor, no amor. No entanto , o amor  dela pelo genitor demora a aparecer, esse amor  precisa de certo desenvolvimento da criança, desenvolvimento de seu corpo e de sua alma.  O amor que nascerá da criança  será um amor segundo que descobrirá um amor primeiro, o que o gerou.

Acontece algo semelhante no amor intelectual de Deus. Ele não é o amor que gerou o intelecto e tudo o que existe, ele é o intelecto se compreendendo como fruto daquele amor que o gerou primeiro, que é o Deus mesmo. Esse amor primeiro não o gerou e se separou, continua nele, pois o intelecto é um modo ou maneira de existir desse amor. Quando o gerado descobre o amor do gerador, é como uma novidade que ele o descobre, como se esse amor tivesse nascido no tempo. No entanto,  o amor do gerador e sua descoberta são  um só amor: embora infinito, é sempre em uma singularidade que ele é experimentado como se fosse uma novidade.

O amor voltado para Deus compreende a inseparabilidade entre Deus e amor. O amor voltado para Deus é o amor do gerado voltando-se para o genitor, como um ímã finito que, após saber-se ímã, o ímã que sempre fora,  é atraído para o Ímã Infinito que é sempre potência de atrair, nunca de afastar.

Tal amor não é como o Eros grego, tampouco é um sentimento romântico. Talvez os poetas  latinos tenham sido os que melhor lhe inventaram um nome: "a-mor", que significa “não-morte”.




domingo, 15 de setembro de 2024

O tesouro do poeta Manoel de Barros

Ontem, visitando o Museu-Casa Quintal Manoel de Barros fui conhecer o seu "tesouro", pois em um dos quartos da casa onde viveu Manoel há um cofre no qual o poeta guardava seu tesouro. Cada um guarda em seu cofre a riqueza que preza, o bem que valoriza.

Esse cofre do poeta  tem um nome :  "nadifúndio". Enquanto o agro-necropolítico cultiva latifúndios obtidos com a destruição do Pantanal e outros biomas, Manoel guarda em seu cofre riquezas que são "nadas" para quem só cobiça dinheiro, fama, poder, destruição.

No cofre-nadifúndio , há o seguinte poema ( inédito) de Manoel:


"Não precisei de ler São Paulo , Santo Agostinho,

São Jerônimo, nem Tomás de Aquino , nem São

Francisco de Assis -

Para chegar a Deus.

Formigas me mostraram Ele.

(Eu tenho doutorado em formigas)"

 

Além do poema,  o poeta guarda em seu cofre, como seu maior tesouro,  um caracol e uma formiga.


(imagem: o cofre-nadifúndio do poeta e o seu tesouro)




Para quem quiser ver um pequeno vídeo com a "Oficina de Transfazer Natureza" ou "Lugar de ser Inútil" ( era assim que Manoel nomeou seu escritório) e o cofre-nadifúndio:





O paciente da janela

 

No último dia  de um curso de  Introdução à Filosofia que eu ministrava, uma aluna que nunca faltava  me entregou um papel e disse : “Professor, acho que tudo que  você falou no curso tem a ver com esta história”.

O texto não estava assinado, parecendo  ser uma daquelas história cuja autoria é da própria Vida.   A história dizia mais ou menos o seguinte:
Cinco pacientes   estavam numa enfermaria. A única comunicação da enfermaria com o mundo exterior era uma pequena janela, uma abertura para   luz  e  ar entrarem como  antídotos benfazejos ao sofrimento daquele lugar.

Mas  perto dessa janela cabia apenas uma maca, na qual ficava um dos pacientes. Esse paciente  passava o dia a narrar o mundo que via através da janela, ele não mantinha a janela como privilégio egóico apenas para si.

“Vejo daqui um mar azul de amplo horizontes,  vocês conseguem sentir  sua brisa?”  Apenas um dos pacientes dizia não conseguir sentir. Os outros três que a sentiam  “horizontavam-se” recriando um mar dentro da alma.

No outro dia, o paciente-narrador prosseguia: “Vejo  crianças brincando numa pracinha, vocês conseguem ouvir o riso delas?” Os três que sentiram  a brisa também conseguiam ouvir as crianças,  de tal modo que algo dentro deles brincava também e se regenerava.  O quarto paciente nada ouvia, parecendo ter a sensibilidade fechada.

E assim se seguiam os dias: com as palavras do paciente-narrador sendo mais do que palavras, sendo remédio.

Mas houve um dia em que ele estava mudo e de olhos fechados. Chamaram a enfermeira.  Ela constatou, sem surpresa, que ele não mais vivia. Ela disse que o paciente da janela era o mais doente dentre eles  ( embora ele , como um estoico, nunca  se queixasse...).

Havia agora um espaço vazio sob a janela. Combinou-se que o paciente com a sensibilidade embotada poderia ocupar tal lugar, desde que ele  continuasse as narrativas.  Então, perto da janela  esse paciente foi instalado.
Porém, ele olhava pela janela e nada dizia.  Indagado pelos outros porque nada narrava, ele respondeu : “Aqui diante da janela não há mar, crianças ou pracinha; há apenas um espesso muro  cinza”. Ele se limitava a repetir: “Há apenas um espesso muro cinza...”. Era verdade: sempre houve aquele muro.

Sua palavra se tornou a mais pobre que há: aquela que , resignadamente, apenas descreve o que está dado.

O muro cinza simboliza tudo aquilo que nos rouba a visão de horizontes, horizontes externos e internos , mesmo que ainda em esboço ( como o pássaro que Magritte libertou do ovo...).

O primeiro paciente usou as palavras para criar  uma linha de fuga  e transver o muro com sua “visão fontana”, como ensina Manoel de Barros. Palavras assim são mais potentes do que marretas...

 

“Nenhum de nós é ‘O’ médico, somos companheiros de enfermaria.” 

(Sêneca)

 

"O que é a ficção? O que é essa verdade que tem a face da mentira?"

(Dante)





                                                   (  “ A clarividência”, de Magritte)

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Sobre a Independência

 

Na maioria dos países democráticos, a festa da Independência é um acontecimento que expressa os diversos segmentos da sociedade, sendo vivida como uma festa cultural plural , pois toda independência deve ser comemorada em alegria .

No Brasil, os milicos se apropriaram da data da Independência, como se eles fossem os tutores e donos, ontem e hoje, de nossa Independência.

Segundo o filósofo Espinosa, um processo de independência ( seja a independência de um indivíduo,  seja a independência de uma coletividade)  nunca é um processo acabado e absoluto. Todo processo de independência autêntico vem acompanhado de dependências também.

Por exemplo, o aluno depende inicialmente do professor para conquistar sua autonomia do pensar próprio; e o professor, por sua vez, depende do aluno para partilhar seus conhecimentos; o amigo depende do amigo para viver a amizade e crescer como pessoa; o Brasil depende de outros países para trocas comerciais e culturais; enfim, a humanidade depende da água, do ar, do clima, das florestas, enfim, do planeta terra.

Indivíduos ou nações, não somos seres isolados existindo como um todo à parte, e é por isso que sempre haverá alguma forma de dependência.

Mas há dois tipos de dependência: a dependência que serviliza e rouba a autonomia de uma das partes, cujo modelo é a relação tirano-servo (Espinosa nomeia esse tipo de dependência como “mau encontro”) , e existe a dependência na qual há trocas, mútuas ajudas, partilhas, agenciamentos, de tal modo que ambas as partes se autonomizam juntas, sem servilismos e tirania ( são os “bons encontros”).

Nos maus encontros são gerados tristezas, ódios, preconceitos, ignorâncias, enfim, impotências; já nos bons encontros são produzidos conhecimentos e autoconhecimentos, alegrias, saúdes, ideias, enfim, potências.

A humanidade interdepende de si mesma para construir-se autônoma, uma autonomia que se exerce também com solidariedade e cooperação.

Uma festa que seja realmente de uma Independência conquistada e alimentada cotidianamente pelas nossas práticas , deveria ter um desfile não com canhões , tanques e milicos sisudos marchando uniformizados ( que fomentam, na verdade, servis dependências...).

Uma festa da Independência realmente democrática deveria ter um desfile semelhante ao das Escolas de Samba, porém reinventado; no qual as alas seriam compostas por povos indígenas, quilombolas, moradores das periferias, educadores e educandos, os diversos movimentos de minorias, artistas... E os únicos uniformes seriam apenas os das crianças representando as escolas públicas.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

os dois desertos

 

No texto A origem da geometria[1],  Michel Serres nos fala da origem egípcia da geometria e sua influência sobre a filosofia grega. Tales e Platão dão o testemunho  do diálogo inaugural entre a Grécia  e o Egito, entre a  pólis e a paisagem desértica, entre a escola filosófica e o plano abstrato e liso[2] do deserto, enfim, entre o pensamento filosófico e uma parte do mundo na qual África e Ásia fazem vizinhança.

É certo que todo monoteísmo é filho do deserto. Porém, não são o mesmo deserto o de  Moisés e Maomé e o que viu nascer a geometria em torno das pirâmides. O deserto teológico-político é mais hostil, pedregoso , carente de oásis...Neste tipo de deserto, o medo desperta a imaginação reativa que, fomentada pela palavra de ordem dos profetas,  passa a delirar oásis no além.  Já o deserto que viu nascer a geometria lembra um oceano branco e aberto , espelho na terra do amplo céu.

O deserto teológico-político é sobrecodificado pelas “estrias da Lei”, ao passo que o deserto liso  é espaço nomádico: a presença de um sol sem nuvens projetando as  sombras das pirâmides sobre a tela plana do deserto, como uma lousa sem bordas,  criou um espaço abstrato propício à desterritorialização do pensamento em relação a todo empírico dado, para a mente então se reterritorializar sobre si mesma  e criar sua linguagem geométrica solar, apolínia. Não é uma linguagem fruto do medo e que exige  obediência a profetas, é uma linguagem que emancipa o pensamento e o ilumina com a ciência.

Ecos dessa geometria lisa criada pela própria natureza chega até Espinosa, que a reinventa. Pois em Espinosa  a Natureza não está contida ou limitada pelas formas geométricas-apolínias, como a interpretou Platão; ao contrário, são as formas geométricas que estão contidas e são explicadas pela Potência Incontível , “Dionisíaca”, da Natureza.

 

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[1] Capitulo do livro Hermes : uma filosofia das ciências.

[2] “Lisa” , segundo Deleuze & Guattari, é toda realidade que é fluxo, devir; já “estriada” significa uma realidade codificada, estratificada, hierarquizada.




domingo, 8 de setembro de 2024

A mariposa

Eu ainda não havia despertado totalmente, mas já sentia no ar a presença  de um novo   dia que nascia.  De repente, ouvi um som agudo provocado por um bater de asas agitado e aflito  que passou roçando  meu rosto. Abri então os olhos:  era uma pequena mariposa que se aprisionou em meu quarto ainda um pouco escuro.

 Não sei se era  uma  jovem mariposa aprendendo seus primeiros voos,  sem confiança ainda; ou se era, ao contrário,  uma mariposa já muito vivida querendo fugir do mundo, desiludida. O que sei é que ela rodopiava atônita e perdida, como se tivesse presa   num labirinto cujo centro era um vazio .

 Levantei  da cama rápido querendo arranjar um jeito de auxiliar a mariposa a se libertar daquele rodamoinho angustiante  que ela mesma criou para se atar.

Fui   à janela e a abri toda para que entrasse  a luz. Foi então que vi o dia...Que dia! Após  uma noite  de chuva e frio , o céu abria-se   todo  azul , enquanto  o sol aquecia de novo tudo o que é vivo. 

Com cuidado, cheguei perto da mariposa  e apenas lhe disse  ( com a franqueza dos amigos que desejam o bem um do outro) : “Com um dia desse, com essa amplidão para explorar voando, você vem se enclausurar em meu quarto com medo!?Quem me dera ter suas asas...”

Juro: a mariposa foi acalmando seu  rodopiar aflito , reorientou suas asas para novo sentido , parou de antecipar na imaginação os perigos, emendou-se. Tomou coragem e atravessou    a janela, foi pro mundo, aceitou da liberdade o risco.


(Este filme, “A língua das mariposas”,  é apenas uma sugestão)







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Na maioria dos países democráticos, a festa da Independência é um acontecimento que expressa os diversos segmentos da sociedade, sendo vivida como uma festa cultural plural , pois toda independência deve ser comemorada em alegria .

No Brasil, os  milicos se apropriaram da data da Independência, como se eles fossem os tutores e donos, ontem e hoje, de nossa Independência.

Segundo o filósofo Espinosa, um processo de independência , seja a independência de um indivíduo seja a independência de uma coletividade, nunca é um processo acabado e absoluto. Todo processo de independência autêntico vem acompanhado de dependências também.

Por exemplo, o aluno depende inicialmente do professor para conquistar sua autonomia do pensar próprio; e o professor, por sua vez, depende do aluno para partilhar seus conhecimentos; o amigo depende do amigo para viver a amizade e crescer como pessoa; o Brasil depende de outros países para trocas comerciais e culturais; enfim, a humanidade depende da água,  do ar, do clima, das florestas, enfim, do planeta terra.

Indivíduos ou nações, não somos seres isolados existindo  como um todo à parte, e é por isso que sempre haverá alguma forma de dependência.

Mas há dois tipos de dependência: a dependência que serviliza e rouba a autonomia de uma das partes, cujo modelo é a relação tirano-servo (Espinosa nomeia esse tipo de dependência como “mau encontro”) , e existe  a dependência na qual há trocas, mútuas ajudas, partilhas, agenciamentos, de tal modo que ambas as partes se autonomizam juntas, sem servilismos e tirania ( são os “bons encontros”).

Nos maus encontros são gerados tristezas, ódios, preconceitos, ignorâncias, enfim, impotências; já nos bons encontros são produzidos conhecimentos e autoconhecimentos, alegrias,  saúdes,  ideias, enfim, potências.

A humanidade interdepende de si mesma para construir-se autônoma, uma autonomia que se exerce também com solidariedade  e cooperação.

Uma festa que seja realmente de uma Independência conquistada e alimentada cotidianamente pelas nossas práticas , deveria ter um desfile não com canhões , tanques  e milicos sisudos marchando uniformizados ( que fomentam, na verdade, servis dependências...).

Uma festa da Independência realmente democrática deveria ter um desfile semelhante ao  das Escolas de Samba, porém reinventado; no qual  as alas seriam compostas por povos indígenas, quilombolas, moradores  das  periferias, educadores e educandos, os diversos movimentos de minorias, artistas... E  os únicos  uniformes seriam apenas os das crianças representando as escolas públicas. 

 


sábado, 7 de setembro de 2024

A origem do sentido

 

A palavra “semântica” vem do grego “sema”, que também costuma ser traduzido por “signo” ou “sinal”. Signo ou sinal é tudo aquilo cuja presença aponta ou sinaliza para outra coisa . Por exemplo, a palavra “casa” é o signo que “representa” ( re-apresenta) a casa concreta.

Na Grécia antiga quando alguém morria o corpo era cremado. Mas o fogo não consumia tudo. E antes que ele se extinguisse totalmente, as últimas chamas eram apagadas com água e vinho. A água para apagar o fogo, e o vinho para co-memorar, criar memória, daquela vida. Morte não é apenas despedida, também é celebrar que houve aquela vida.

Ao fim do rito, restavam apenas os fragmentos dos ossos alvos se destacando sobre o fundo das cinzas. Esses fragmentos eram recolhidos e guardados numa pequena urna, que então era plantada no seio da terra. Para os Gregos , colocar a urna no seio da terra era um processo semelhante ao plantar a semente , para que dela brote outra vida. Para os Gregos, só a vida é absoluta, nunca a morte. “Ab-soluto”: o que não é soluto, o que não se dissolve.

Depois , era confeccionada uma pequena tabuleta com o nome da pessoa ali plantada e um epíteto , isto é, uma pequena frase semelhante a um verso que expressasse e traduzisse a vida daquele cujo nome estava escrito na tabuleta, que então era afixada sobre a  terra onde a urna foi plantada.

A tabuleta “sinalizava” e dava a conhecer uma vida, agora ausente. A tabuleta era uma presença que sinalizava uma ausência. Os gregos chamavam essa tabuleta de “sema”, pois ela era um signo que representava uma vida ausente.

Isso talvez ajude a compreender a enigmática frase  de Platão na Carta Sete, na qual o filósofo afirma que a filosofia  não pode ser escrita, a não ser secundariamente. Pois a filosofia nasce de uma experiência originária do filósofo com  a Ideia que o torna filósofo, sem a mediação de signos. O texto escrito é o relato dessa experiência ou experimentação transcendental. A filosofia é expressão da alma e corpo vivos expressos sobretudo pela palavra viva , e não pela palavra escrita como sinal que aponta para uma ausência, para uma morte.

A palavra “sema” é prima da “palavra “soma”, que em grego significa “corpo” ( como em “psicossomático”).Assim o sema é o corpo da palavra ( ou significante) , ao passo que a alma da palavra é seu sentido, que  aponta ou sinaliza para o ser ausente que a palavra re-apresenta.

Mas acontece algo diferente com a palavra do poeta, pois a palavra poética potencializa ainda mais o sentido. A palavra poética não re-apresenta algo ausente , ela faz com que se torne presente nela uma existência que se torna absoluta.

“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que a  seja”, explica-se o poeta Manoel de Barros. A palavra poética abre-se para o poeta amorosamente, para que a poesia que o poeta escreve não seja apenas re-apresentação do mundo, mas criação de outros mundos cujo sentido não se esgota apenas na palavra. É por isso que o poeta também diz: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, pois poesia não é representação do mundo dado , mas criação de outros mundos possíveis.  O poeta também diz que “escreve com o corpo”, o corpo vivo que não é apenas carne e osso, mas também espírito tangível que também é fogo. Não como aquele fogo que destroi e consome, como o fogo do ritual funerário, mas sim fogo que aquece e ilumina, chama que é da vida. Fogo assim é o Princípio ou Arqué de tudo, ensina Heráclito.


Este texto tem como principal referência a Introdução escrita por Jean-Pierre Vernant para este livro: