https://www.unirio.br/news/pesquisa-da-unirio-propoe-reflexao-sobre-a-obra-do-poeta-manoel-de-barros
É equivocado
atribuir a Espinosa um mero intelectualismo ou racionalismo férreo. Igualmente
não é correto afirmar que existe apenas duas formas de amor nele: o da
imaginação, sempre passivo, e o do
intelecto, atribuindo-se a este a única e confiável forma de amor ativo. É
preciso ter mais do que lógica analítica na leitura de Espinosa, é necessário
ter também sensibilidade à sutileza de seu
pensamento que se apoia igualmente no corpo.
Na Quinta Parte
da Ética, Espinosa nos fala do amor intelectual a Deus. Somente quando
aprende a amar é que o intelecto alcança o que Espinosa chama de Deus, o Absolutamente Infinito.
Esse amor não é
sensível. Porém, é difícil ao intelecto aprender esse amor do qual apenas ele é
capaz, pois é necessário que ele apreenda em si uma potência que vai além do
mero raciocinar; é preciso que ele se faça, inteiro e não apenas em parte,
intuição. Intuir é um contato imediato, sem mediação ou distância, com uma
realidade. O amor intelectual a Deus leva o intelecto a apreender uma realidade
que não é carcomida pelo tempo.
No entanto, esse
amor intelectual não é o máximo que o amor pode , ele ainda é um grau do amor,
não todo o amor. Segundo Espinosa, o valor desse amor intelectual está em nos
fazer conhecer outro amor: o amor para
Deus ou o amor voltado para Deus. O amor
intelectual atinge o conhecimento das
essências enquanto objeto eterno do intelecto. Mas o amor para Deus é um amor
voltado para aquilo que os olhos do corpo também veem.
Não é um amor
apenas pelas essências, é um amor pelas existências também. De quais
existências? Não desta ou daquela existência em particular, mas de todas as
existências. Esse amor parte da imagem que o corpo apreende e sente, ele é
duração. Contudo, o antecede o amor intelectual que apreende as essências
eternas. Então, como se fosse o instante de um clarão que ilumina tudo, porém
muito rápido ( e logo a escuridão retorna) , percebemos que não existem dois
amores, existe um só, infinitamente múltiplo, porém. Enfim, sentimos de alguma
forma que também dura a eternidade: "poeta é quem diz eu-te-amo a todas as
coisas"(Manoel de Barros).
Imaginemos uma
criança que nasce. A mãe a ama não apenas com a alma, ela a ama também com o
corpo: seu corpo alimentou aquele pequeno corpo que agora nasceu dela. O amor também é
a placenta, o leite e o colo. Contudo, a criança não se sabe amada de forma tão
clara como a mãe o sente. O amor da
criança pela mãe demora a brotar, pois a própria criança ainda não tem a noção
de si. Mesmo se a criança nascer com algum problema congênito que a fará
crescer sem consciência, mesmo assim a mãe ainda a amará, se mãe de fato o for.
A criança foi
gerada nesse amor, no amor. No entanto , o amor
dela pelo genitor demora a aparecer, esse amor precisa de certo
desenvolvimento da criança, desenvolvimento de seu corpo e de sua alma. O amor que nascerá da criança será um amor segundo
que descobrirá um amor primeiro, o que o gerou.
Acontece algo
semelhante no amor intelectual de Deus. Ele não é o amor que gerou o intelecto
e tudo o que existe, ele é o intelecto se compreendendo como fruto daquele amor
que o gerou primeiro, que é o Deus mesmo. Esse amor primeiro não o gerou e se
separou, continua nele, pois o intelecto é um modo ou maneira de existir desse
amor. Quando o gerado descobre o amor do gerador, é como uma novidade que ele o
descobre, como se esse amor tivesse nascido no tempo. No entanto, o amor do gerador e sua descoberta são um só
amor: embora infinito, é sempre em uma singularidade que ele é experimentado
como se fosse uma novidade.
O amor voltado
para Deus compreende a inseparabilidade entre Deus e amor. O amor voltado para
Deus é o amor do gerado voltando-se para o genitor, como um ímã finito que,
após saber-se ímã, o ímã que sempre fora,
é atraído para o Ímã Infinito que é sempre potência de atrair, nunca de
afastar.
Tal amor não é
como o Eros grego, tampouco é um sentimento romântico. Talvez os poetas latinos tenham sido os que melhor lhe
inventaram um nome: "a-mor", que significa “não-morte”.
Ontem, visitando o Museu-Casa Quintal Manoel de Barros fui conhecer o seu "tesouro", pois em um dos quartos da casa onde viveu Manoel há um cofre no qual o poeta guardava seu tesouro. Cada um guarda em seu cofre a riqueza que preza, o bem que valoriza.
Esse cofre do poeta tem um nome : "nadifúndio". Enquanto o
agro-necropolítico cultiva latifúndios obtidos com a destruição do Pantanal e
outros biomas, Manoel guarda em seu cofre riquezas que são "nadas"
para quem só cobiça dinheiro, fama, poder, destruição.
No
cofre-nadifúndio , há o seguinte poema ( inédito) de Manoel:
"Não
precisei de ler São Paulo , Santo Agostinho,
São Jerônimo,
nem Tomás de Aquino , nem São
Francisco de
Assis -
Para chegar a
Deus.
Formigas me
mostraram Ele.
(Eu tenho
doutorado em formigas)"
Além do poema, o poeta guarda em seu cofre, como seu maior
tesouro, um caracol e uma formiga.
(imagem: o
cofre-nadifúndio do poeta e o seu tesouro)
Para quem quiser ver um pequeno vídeo com a "Oficina de Transfazer Natureza" ou "Lugar de ser Inútil" ( era assim que Manoel nomeou seu escritório) e o cofre-nadifúndio:
No último
dia de um curso de Introdução à Filosofia que eu ministrava, uma
aluna que nunca faltava me entregou um
papel e disse : “Professor, acho que tudo que
você falou no curso tem a ver com esta história”.
O texto não
estava assinado, parecendo ser uma
daquelas história cuja autoria é da própria Vida. A história dizia mais ou menos o seguinte:
Cinco pacientes estavam numa
enfermaria. A única comunicação da enfermaria com o mundo exterior era uma
pequena janela, uma abertura para luz
e ar entrarem como antídotos benfazejos ao sofrimento daquele
lugar.
Mas perto dessa janela cabia apenas uma maca, na
qual ficava um dos pacientes. Esse paciente
passava o dia a narrar o mundo que via através da janela, ele não mantinha
a janela como privilégio egóico apenas para si.
“Vejo daqui um
mar azul de amplo horizontes, vocês
conseguem sentir sua brisa?” Apenas um dos pacientes dizia não conseguir
sentir. Os outros três que a sentiam “horizontavam-se” recriando um mar dentro da
alma.
No outro dia, o
paciente-narrador prosseguia: “Vejo
crianças brincando numa pracinha, vocês conseguem ouvir o riso delas?”
Os três que sentiram a brisa também
conseguiam ouvir as crianças, de tal
modo que algo dentro deles brincava também e se regenerava. O quarto paciente nada ouvia, parecendo ter a
sensibilidade fechada.
E assim se
seguiam os dias: com as palavras do paciente-narrador sendo mais do que
palavras, sendo remédio.
Mas houve um dia
em que ele estava mudo e de olhos fechados. Chamaram a enfermeira. Ela constatou, sem surpresa, que ele não mais
vivia. Ela disse que o paciente da janela era o mais doente dentre eles ( embora ele , como um estoico, nunca se queixasse...).
Havia agora um
espaço vazio sob a janela. Combinou-se que o paciente com a sensibilidade
embotada poderia ocupar tal lugar, desde que ele continuasse as narrativas. Então, perto da janela esse paciente foi instalado.
Porém, ele olhava pela janela e nada dizia. Indagado pelos outros porque nada narrava, ele
respondeu : “Aqui diante da janela não há mar, crianças ou pracinha; há apenas
um espesso muro cinza”. Ele se limitava
a repetir: “Há apenas um espesso muro cinza...”. Era verdade: sempre houve
aquele muro.
Sua palavra se
tornou a mais pobre que há: aquela que , resignadamente, apenas descreve o que
está dado.
O muro cinza
simboliza tudo aquilo que nos rouba a visão de horizontes, horizontes externos
e internos , mesmo que ainda em esboço ( como o pássaro que Magritte libertou
do ovo...).
O primeiro
paciente usou as palavras para criar uma
linha de fuga e transver o muro com sua
“visão fontana”, como ensina Manoel de Barros. Palavras assim são mais potentes
do que marretas...
“Nenhum de nós é ‘O’ médico, somos companheiros de enfermaria.”
(Sêneca)
"O que é a
ficção? O que é essa verdade que tem a face da mentira?"
(Dante)
( “ A clarividência”, de Magritte)
Na maioria dos
países democráticos, a festa da Independência é um acontecimento que expressa
os diversos segmentos da sociedade, sendo vivida como uma festa cultural plural
, pois toda independência deve ser comemorada em alegria .
No Brasil, os
milicos se apropriaram da data da Independência, como se eles fossem os tutores
e donos, ontem e hoje, de nossa Independência.
Segundo o
filósofo Espinosa, um processo de independência ( seja a independência de um
indivíduo, seja a independência de uma coletividade) nunca é um processo acabado
e absoluto. Todo processo de independência autêntico vem acompanhado de
dependências também.
Por exemplo, o
aluno depende inicialmente do professor para conquistar sua autonomia do pensar
próprio; e o professor, por sua vez, depende do aluno para partilhar seus
conhecimentos; o amigo depende do amigo para viver a amizade e crescer como
pessoa; o Brasil depende de outros países para trocas comerciais e culturais;
enfim, a humanidade depende da água, do ar, do clima, das florestas, enfim, do
planeta terra.
Indivíduos ou
nações, não somos seres isolados existindo como um todo à parte, e é por isso
que sempre haverá alguma forma de dependência.
Mas há dois
tipos de dependência: a dependência que serviliza e rouba a autonomia de uma
das partes, cujo modelo é a relação tirano-servo (Espinosa nomeia esse tipo de
dependência como “mau encontro”) , e existe a dependência na qual há trocas,
mútuas ajudas, partilhas, agenciamentos, de tal modo que ambas as partes se
autonomizam juntas, sem servilismos e tirania ( são os “bons encontros”).
Nos maus
encontros são gerados tristezas, ódios, preconceitos, ignorâncias, enfim,
impotências; já nos bons encontros são produzidos conhecimentos e
autoconhecimentos, alegrias, saúdes, ideias, enfim, potências.
A humanidade
interdepende de si mesma para construir-se autônoma, uma autonomia que se
exerce também com solidariedade e cooperação.
Uma festa que
seja realmente de uma Independência conquistada e alimentada cotidianamente
pelas nossas práticas , deveria ter um desfile não com canhões , tanques e
milicos sisudos marchando uniformizados ( que fomentam, na verdade, servis
dependências...).
Uma festa da
Independência realmente democrática deveria ter um desfile semelhante ao das
Escolas de Samba, porém reinventado; no qual as alas seriam compostas por povos
indígenas, quilombolas, moradores das periferias, educadores e educandos, os
diversos movimentos de minorias, artistas... E os únicos uniformes seriam
apenas os das crianças representando as escolas públicas.
No texto A origem da geometria[1],
Michel Serres nos fala da origem egípcia da geometria e sua influência
sobre a filosofia grega. Tales e Platão dão o testemunho do diálogo inaugural entre a Grécia e o Egito, entre a pólis e a paisagem desértica, entre a escola
filosófica e o plano abstrato e liso[2] do deserto, enfim, entre o pensamento
filosófico e uma parte do mundo na qual África e Ásia fazem vizinhança.
É certo que todo monoteísmo é filho do deserto. Porém, não são o mesmo
deserto o de Moisés e Maomé e o que viu
nascer a geometria em torno das pirâmides. O deserto teológico-político é mais
hostil, pedregoso , carente de oásis...Neste tipo de deserto, o medo desperta a
imaginação reativa que, fomentada pela palavra de ordem dos profetas, passa a delirar oásis no além. Já o deserto que viu nascer a geometria
lembra um oceano branco e aberto , espelho na terra do amplo céu.
O deserto teológico-político é sobrecodificado pelas “estrias da Lei”, ao
passo que o deserto liso é espaço
nomádico: a presença de um sol sem nuvens projetando as sombras das pirâmides sobre a tela plana do
deserto, como uma lousa sem bordas,
criou um espaço abstrato propício à desterritorialização do pensamento
em relação a todo empírico dado, para a mente então se reterritorializar sobre
si mesma e criar sua linguagem
geométrica solar, apolínia. Não é uma linguagem fruto do medo e que exige obediência a profetas, é uma linguagem que
emancipa o pensamento e o ilumina com a ciência.
Ecos dessa geometria lisa criada pela própria natureza chega até
Espinosa, que a reinventa. Pois em Espinosa
a Natureza não está contida ou limitada pelas formas
geométricas-apolínias, como a interpretou Platão; ao contrário, são as formas
geométricas que estão contidas e são explicadas pela Potência Incontível ,
“Dionisíaca”, da Natureza.
___________
[1] Capitulo do livro Hermes : uma filosofia das ciências.
[2] “Lisa” , segundo Deleuze & Guattari, é toda realidade que é
fluxo, devir; já “estriada” significa uma realidade codificada, estratificada,
hierarquizada.
Eu ainda não havia despertado
totalmente, mas já sentia no ar a presença
de um novo dia que nascia. De repente, ouvi um som agudo provocado por
um bater de asas agitado e aflito que
passou roçando meu rosto. Abri então os
olhos: era uma pequena mariposa que se
aprisionou em meu quarto ainda um pouco escuro.
Não sei se era
uma jovem mariposa aprendendo
seus primeiros voos, sem confiança
ainda; ou se era, ao contrário, uma
mariposa já muito vivida querendo fugir do mundo, desiludida. O que sei é que
ela rodopiava atônita e perdida, como se tivesse presa num labirinto cujo centro era um vazio .
Levantei
da cama rápido querendo arranjar um jeito de auxiliar a mariposa a se
libertar daquele rodamoinho angustiante
que ela mesma criou para se atar.
Fui
à janela e a abri toda para que entrasse
a luz. Foi então que vi o dia...Que dia! Após uma noite
de chuva e frio , o céu abria-se
todo azul , enquanto o sol aquecia de novo tudo o que é vivo.
Com cuidado, cheguei perto da
mariposa e apenas lhe disse ( com a franqueza dos amigos que desejam o
bem um do outro) : “Com um dia desse, com essa amplidão para explorar voando,
você vem se enclausurar em meu quarto com medo!?Quem me dera ter suas asas...”
Juro: a mariposa foi acalmando
seu rodopiar aflito , reorientou suas
asas para novo sentido , parou de antecipar na imaginação os perigos,
emendou-se. Tomou coragem e atravessou
a janela, foi pro mundo, aceitou da liberdade o risco.
(Este filme, “A língua das mariposas”,
é apenas uma sugestão)
Na maioria dos países democráticos,
a festa da Independência é um acontecimento que expressa os diversos segmentos
da sociedade, sendo vivida como uma festa cultural plural , pois toda
independência deve ser comemorada em alegria .
No Brasil, os milicos se
apropriaram da data da Independência, como se eles fossem os tutores e donos,
ontem e hoje, de nossa Independência.
Segundo o filósofo Espinosa, um
processo de independência , seja a independência de um indivíduo seja a
independência de uma coletividade, nunca é um processo acabado e absoluto. Todo
processo de independência autêntico vem acompanhado de dependências também.
Por exemplo, o aluno depende
inicialmente do professor para conquistar sua autonomia do pensar próprio; e o
professor, por sua vez, depende do aluno para partilhar seus conhecimentos; o
amigo depende do amigo para viver a amizade e crescer como pessoa; o Brasil
depende de outros países para trocas comerciais e culturais; enfim, a
humanidade depende da água, do ar, do clima, das florestas, enfim,
do planeta terra.
Indivíduos ou nações, não somos
seres isolados existindo como um todo à parte, e é por isso que
sempre haverá alguma forma de dependência.
Mas há dois tipos de dependência: a
dependência que serviliza e rouba a autonomia de uma das partes, cujo modelo é
a relação tirano-servo (Espinosa nomeia esse tipo de dependência como “mau
encontro”) , e existe a dependência na qual há trocas, mútuas
ajudas, partilhas, agenciamentos, de tal modo que ambas as partes se
autonomizam juntas, sem servilismos e tirania ( são os “bons encontros”).
Nos maus encontros são gerados
tristezas, ódios, preconceitos, ignorâncias, enfim, impotências; já nos bons
encontros são produzidos conhecimentos e autoconhecimentos,
alegrias, saúdes, ideias, enfim, potências.
A humanidade interdepende de si
mesma para construir-se autônoma, uma autonomia que se exerce também com
solidariedade e cooperação.
Uma festa que seja realmente de uma
Independência conquistada e alimentada cotidianamente pelas nossas práticas ,
deveria ter um desfile não com canhões , tanques e milicos sisudos
marchando uniformizados ( que fomentam, na verdade, servis dependências...).
Uma festa da Independência
realmente democrática deveria ter um desfile semelhante ao das Escolas de
Samba, porém reinventado; no qual as alas seriam compostas por povos
indígenas, quilombolas, moradores das periferias, educadores e
educandos, os diversos movimentos de minorias, artistas... E os únicos
uniformes seriam apenas os das crianças representando as escolas
públicas.
A palavra “semântica” vem do grego “sema”, que também costuma ser
traduzido por “signo” ou “sinal”. Signo ou sinal é tudo aquilo cuja presença
aponta ou sinaliza para outra coisa . Por exemplo, a palavra “casa” é o signo
que “representa” ( re-apresenta) a casa concreta.
Na Grécia antiga quando alguém morria o corpo era cremado. Mas o fogo não
consumia tudo. E antes que ele se extinguisse totalmente, as últimas chamas
eram apagadas com água e vinho. A água para apagar o fogo, e o vinho para
co-memorar, criar memória, daquela vida. Morte não é apenas despedida, também é
celebrar que houve aquela vida.
Ao fim do rito, restavam apenas os fragmentos dos ossos alvos se
destacando sobre o fundo das cinzas. Esses fragmentos eram recolhidos e
guardados numa pequena urna, que então era plantada no seio da terra. Para os
Gregos , colocar a urna no seio da terra era um processo semelhante ao plantar
a semente , para que dela brote outra vida. Para os Gregos, só a vida é
absoluta, nunca a morte. “Ab-soluto”: o que não é soluto, o que não se
dissolve.
Depois , era confeccionada uma pequena tabuleta com o nome da pessoa ali
plantada e um epíteto , isto é, uma pequena frase semelhante a um verso que
expressasse e traduzisse a vida daquele cujo nome estava escrito na tabuleta,
que então era afixada sobre a terra onde
a urna foi plantada.
A tabuleta “sinalizava” e dava a conhecer uma vida, agora ausente. A
tabuleta era uma presença que sinalizava uma ausência. Os gregos chamavam essa
tabuleta de “sema”, pois ela era um signo que representava uma vida ausente.
Isso talvez ajude a compreender a enigmática frase de Platão na Carta Sete, na qual o filósofo
afirma que a filosofia não pode ser
escrita, a não ser secundariamente. Pois a filosofia nasce de uma experiência
originária do filósofo com a Ideia que o
torna filósofo, sem a mediação de signos. O texto escrito é o relato dessa
experiência ou experimentação transcendental. A filosofia é expressão da alma e
corpo vivos expressos sobretudo pela palavra viva , e não pela palavra escrita
como sinal que aponta para uma ausência, para uma morte.
A palavra “sema” é prima da “palavra “soma”, que em grego significa “corpo” ( como em “psicossomático”).Assim o sema é o corpo da palavra ( ou significante) , ao passo que a alma da palavra é seu sentido, que aponta ou sinaliza para o ser ausente que a palavra re-apresenta.
Mas acontece algo diferente com a palavra do poeta, pois a palavra poética
potencializa ainda mais o sentido. A palavra poética não re-apresenta algo
ausente , ela faz com que se torne presente nela uma existência que se torna
absoluta.
“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que a seja”, explica-se o poeta Manoel de Barros. A
palavra poética abre-se para o poeta amorosamente, para que a poesia que o
poeta escreve não seja apenas re-apresentação do mundo, mas criação de outros
mundos cujo sentido não se esgota apenas na palavra. É por isso que o poeta
também diz: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, pois poesia não é
representação do mundo dado , mas criação de outros mundos possíveis. O poeta também diz que “escreve com o corpo”,
o corpo vivo que não é apenas carne e osso, mas também espírito tangível que
também é fogo. Não como aquele fogo que destroi e consome, como o fogo do
ritual funerário, mas sim fogo que aquece e ilumina, chama que é da vida. Fogo
assim é o Princípio ou Arqué de tudo, ensina Heráclito.
Este texto tem como principal referência a Introdução escrita por
Jean-Pierre Vernant para este livro: