Foi em uma belíssima e inesquecível
aula do professor e filósofo Cláudio
Ulpiano que ouvi essa história. Cláudio nos ensinava acerca de algo
extraordinário que faz não um poeta , um educador ou um libertário, mas a reunião de um poeta, de
um educador e de um libertário num único
ser alado e canoro: o passarinho tordo.
O tordo possui três tipos de canto. O primeiro ele
canta quando quer marcar um território. Nesse caso, sempre acontece uma
disputa, com dois ou mais tordos
rivalizando pelo mesmo
território. Sem precisarem brigar , o tordo de canto mais potente vence e toma
conta do território, sem que os outros
tordos fiquem ressentidos ou queiram se
vingar.
O segundo canto o tordo canta quando
deseja conquistar uma fêmea. Esse segundo canto é mais harmonioso e sutil, entremeado por silêncios eloquentes
acompanhados de posturas sedutoras. Mas no final é sempre a fêmea que escolhe
qual tordo será seu companheiro amoroso.
O terceiro canto o tordo canta em dois
momentos do dia: quando o sol nasce e quando o sol morre . Na aurora, é canto
de boas-vindas; no fim da tarde, é canto de despedida.
Quando o sol se põe, na borda do céu
perto do horizonte tudo fica colorido de púrpura. O púrpura nasce da composição
da cor azul, a cor dos celestamentos ( diria
Manoel de Barros) , com o vermelho, cor da vida, cor do sangue ( não
enquanto é derramado na violência e
barbárie, mas quando corre nas veias e irriga o corpo de oxigênio, alimento e
vida ).
Esses
cantos dos limiares são de
gratidão ao sol: quando o sol se vai, por ter havido aquele dia, não
importando o que nele aconteceu; quando um novo sol chega, trazendo com ele um
novo dia. Enquanto os galos cantam apenas
o dia que vem, o tordo também canta grato à vida que recebeu do dia que vai, como os estoicos nos ensinando o “Amor Fati”.
Quando o tordo assim canta, ele corre
riscos. Pois soturnas aves de rapina ficam
à espreita para predar o tordo-libertário. Mesmo correndo riscos, o tordo não se cala e , cantando, se
horizonta ao céu-púrpura aberto e ilimitado.
A mesma arte que
singulariza o tordo, também o põe à mostra. Porém , mesmo sob ameaça de morte, o
tordo não se esconde ou cala : ele persevera no seu cantar à vida , com o
máximo de potência que pode.
“Inventar uma tarde a partir de um tordo”.
( Manoel de Barros )
“Não há nunca outro critério senão o teor da existência,
a intensificação da vida”.
( Deleuze &
Guattari, “O que é a filosofia?”)
"As coisas da arte são sempre resultado de ter estado
a perigo, de ter ido até o fim em uma
experiência, até um ponto que ninguém consegue
ultrapassar".
( Rilke )
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