sexta-feira, 28 de julho de 2023

o tordo-cláudio

 

Foi em uma belíssima e inesquecível aula do professor e filósofo  Cláudio Ulpiano que ouvi essa história. Cláudio nos ensinava acerca de algo extraordinário que faz não um poeta , um educador ou  um libertário, mas a reunião de um poeta, de um educador e de um libertário  num único ser alado e canoro: o passarinho tordo.

O tordo  possui três tipos de canto. O primeiro ele canta quando quer marcar um território. Nesse caso, sempre acontece uma disputa, com dois ou mais tordos  rivalizando pelo  mesmo território. Sem precisarem brigar , o tordo de canto mais potente vence e toma conta   do território, sem que os outros tordos fiquem  ressentidos ou queiram se vingar.

O segundo canto o tordo canta quando deseja conquistar uma fêmea. Esse segundo canto é mais harmonioso e sutil,  entremeado por silêncios eloquentes acompanhados de posturas sedutoras. Mas no final é sempre a fêmea que escolhe qual tordo será seu companheiro amoroso.

 O terceiro canto o tordo canta em dois momentos do dia: quando o sol nasce e quando o sol morre . Na aurora, é canto de boas-vindas; no fim da tarde, é canto de despedida. 

Quando o sol se põe, na borda do céu perto do horizonte tudo fica colorido de púrpura. O púrpura nasce da composição da cor azul, a cor dos celestamentos ( diria   Manoel de Barros) , com o vermelho, cor da vida, cor do sangue ( não enquanto  é derramado na violência e barbárie, mas quando corre nas veias e irriga o corpo de oxigênio, alimento e vida ).

Esses  cantos dos limiares  são de gratidão ao sol: quando o sol se vai, por ter havido aquele dia, não importando  o que nele aconteceu;  quando um novo sol chega, trazendo com ele um novo dia. Enquanto os galos cantam apenas  o dia que vem,  o  tordo também canta grato à vida  que recebeu do dia que  vai, como os estoicos nos ensinando o  “Amor Fati”.

Quando o tordo assim canta, ele corre riscos. Pois soturnas aves de rapina ficam  à espreita para predar o tordo-libertário. Mesmo correndo  riscos, o tordo não se cala e , cantando, se horizonta ao céu-púrpura aberto e ilimitado.

A mesma arte  que  singulariza o tordo, também o põe à  mostra. Porém , mesmo sob ameaça de morte, o tordo não se esconde ou  cala   : ele persevera no seu cantar à vida , com o máximo de potência que pode.


“Inventar uma tarde a partir de um tordo”.

( Manoel de Barros )


“Não há nunca outro critério senão o teor da existência,

a intensificação da vida”.

 ( Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?”)


 "As coisas  da arte são sempre resultado de ter estado a     perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até  um    ponto que ninguém consegue ultrapassar". 

(   Rilke )







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