terça-feira, 25 de julho de 2023

o poeta e os fluxos...

 

No livro "O guardador de águas", o poeta Manoel de Barros diz que aprendeu  a guardar águas. Não ouro, dinheiro ou posses, mas águas. Guardar também é cuidar.

As águas não são exatamente coisas, elas são fluxos. Cuidar dos fluxos é o oposto de construir cercas ,  gaiolas , muros ( literais ou simbólicos).  Os fluxos são sempre desterritorializados e desterritorializantes : “não se pode ‘passar régua’ neles”, afirma o pensador-poeta Manoel.

Para guardar fluxos é preciso também  ser um. Ser fluxo não é ser “líquido”. Os líquidos são “volúveis-voláteis” ( como a liquidez do Capital destes “tempos líquidos”...). Os fluxos correm entre as pedras , e nunca se submetem ao poder delas , vencidos. 

O líquido é um estado contrário ao sólido, que nega o sólido; assim como o sólido, enquanto estado, também é uma negação do líquido. Apesar de opostos, sólido e líquido são estados, isto é , enfraquecimento ou despotencialização do fluxo: por enrijecimento de uma identidade , no caso do sólido; por tornar a diferença um clichê , no caso do líquido. Os fluxos não são estados :  eles são devires...

 O líquido se acostuma parado, “mesmal”, se o  aprisiona   uma  cisterna. Mas um fluxo é feito o sangue nas veias:  se não   avançar, perece.  Os fluxos ou inventam linhas de fuga ou secam e morrem -  e a secar resistem com toda força que podem.

 Os fluxos somente podem ser guardados em espaços  abertos. E abertos se tornam a sociedade, a mente e o afeto se um fluxo de vida os atravessa.

Os fluxos nascem de fluxos, não de coisas enrijecidas. O rio amazonas não nasceu da geleira no alto dos Andes parada, mas da geleira devindo fluxo, pingando, correndo, fluindo...até alcançar o horizontado mar para também sê-lo.

O fluxos  somente podem ser guardados em um espaço aberto, sem limites determinados, cujas margens sejam limiares que por dentro se podem expandir.

Guardar as águas é guardar-se nelas, como necessária arte dos (re)descobrimentos: "estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir."( Clarice Lispector, “A descoberta do mundo”). A fonte é a indistinção entre o receber e o ofertar.

A fonte guarda as águas que por ela fluem, que por ela fogem, que a ela afetam. Ela guarda doando, e por isso é fonte, uma vez que guarda as águas que recebeu e recebe do fluxo infinito, como ensina Espinosa (o guardador de infinitos).

O fluxo é fluido, mas não é sem força ou volúvel; ele é firme, possui consistência, porém não é rígido. Pedras não  vencem o  avançar de um fluxo ,  enquanto pulsar a fonte da qual ele transborda.

 

“Quem anda no trilho é trem de ferro.

Sou água que corre entre pedras:

liberdade caça jeito.” ( Manoel de Barros)

 

“A cisterna contém; a fonte transborda. “(William Blake)




 



9 comentários:

cauepizindim disse...

Elton.
Eu gostaria de contar contigo para realizar uma pequena grande tarefa que, não tem hora nem lugar mas tem um vir-a-ser.
Posso contar?

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Boa noite. É sobre qual assunto?

cauepizindim disse...

Bom dia.
Uma ideia para crianças expressarem suas ideias...

Esse contar:
é o ponto de partida de um projeto de construção coletiva de um livro infantil que falará sobre a água e o que ela é e representa para nós e para todo o planeta vivo. Gostaria de contar com você. Conte essa história para uma criança. Crie, escreva, desenhe, grave, filme, registre as reações, faça um depoimento ou de algum modo participe dessa construção. Mas somente se você quiser...

Crianças poderão ensinar histórias aos adultos e adultos poderão contar esses contos aos pequenos. Vamos aprender que cada gota d’água, cada poça, rio, lago, mar, oceano, enfim toda água é uma só água no planeta; por mais que tenha viajado no tempo ou pelos continentes, ou na imaginação.

cauepizindim disse...

Todos que contribuírem com materiais para o projeto:

serão coautores do livro;

 poderão participar no processo de seleção dos contos a serem publicados, na forma de conselho editorial;

poderão indicar uma entidade benemerente a ser contemplada no rateio de eventuais verbas oriundas de comercialização desses direitos autorais;

deverão renunciar a quaisquer direitos de propriedade intelectual sobre os materiais que venham a ser aproveitados para publicação e ou divulgação.

cauepizindim disse...

     (uma primeira contribuição a este trabalho coletivo)
 



Era uma vez... uma nuvem que juntou tanta água até ficar vertendo pelas bordas (trans bor dan te).

Ia começar a chover...    
   (chover imaginação)

Uma gotinha de água estava na beira da nuvem e olhava para a terra com receio de pular. Receio é um medo pequeno que nem dá tremedeira (mas deixa a gente em dúvida se faz ou não faz a coisa que está pensando fazer). A gotinha já sabia o que tinha lá embaixo, mas estava escuro e não dava para ver quase nada. Além disso, o ambiente na nuvem ficou um pouco tenso e agitado. Tinha um tal de empurra dali e empurra daqui, esfrega-esfrega, e com o atrito as gotinhas foram ficando eletrizadas. Vez ou outra caía uma gota da nuvem antes da hora de chover.

Aí foi que surgiu um clarão de luz e, com grande barulho, um raio se lançou em direção ao chão iluminando o caminho. Nessa hora a gotinha gritou – Ninguém solta a mão de ninguém! – e pulou de mãos dadas com as gotinhas mais próximas (na hora de pular dá um medinho e a gente pega na mão de quem está ao nosso lado). Não deu para saber se foi uma coragem repentina, se foi o empurra-empurra, ou se foi um susto com o trovão, mas ela foi a primeira a pular; não levando em conta as gotas que caíram, sem querer, antes da chuva.

O clima era de aventura e as expectativas cresciam na imaginação das gotinhas.  Os raios eram ligeiros e a luz deles se apagava até que um novo raio surgisse.



cauepizindim disse...

 – Espera um pouco, segura a história aí enquanto a gente pensa uma coisa... Quando a luz ofusca a visão da gente e depois se apaga, parece que a escuridão volta maior do que os olhos lembram.

– Será que a escuridão come a luz dos raios? E fica maior e maior cada vez que come mais luz?

– Ou será que, enquanto passa ligeira diante dos nossos olhos, é a luz que come a escuridão?

 – Éééé?!...

– Por que é que quando a luz passa atrás das coisas a gente vê um pedacinho de escuridão se escondendo na sombra? Por quê?

– Vamos voltar para a história da gotinha de água? Ou devemos chamá-la de gota de chuva, agora?

– Por enquanto vou chamando de gotinha para ter mais intimidade.

cauepizindim disse...

A gotinha vinha caindo de mãos dadas com as outras ao sabor do vento, até que chegou o vento-ventania e espalhou todas no ar. Foi uma gritaria geral
– Ninguém solta a mão de ninguém!!!

E novamente e outra vez... e mais gotinhas repetiam – Ninguém solta a mão de ninguém!

(em coro) – Ninguém solta a...

Tinha gotinha que não conseguia se segurar e era levada na ventania até que alguma outra pegava firme a mão dela. Tinha gotinha surfando nas folhas e gravetos, em qualquer coisa que o vento trouxesse. Houve até quem pegasse carona nas asas dos passarinhos que voavam desorientados. Assim foi, até que nossa amiga gotinha e sua turma chegaram às folhas mais altas, das árvores mais altas, dos montes mais altos.

cauepizindim disse...

Porém, a história não termina assim. Tudo virou uma grande brincadeira de criança. As gotas d’água escorregavam nas folhas lisinhas e caíam nas próximas folhas; parecia um tobogã após outro. Era só escorregar e cair na folha que estivesse logo abaixo até chegar ao chão. Acho que foi assim que inventaram o toboágua.

Por último, mas não por fim, chegaram ao chão e, em meio às folhas caídas, formaram logo uma poça de água para receber com abraços as gotinhas que iam chegando depois. E, nessa grande reunião que acontecia ali, começaram a perguntar àquela mesma gotinha que havia liderado o grande salto – O que faremos daqui em diante? – ao que ela respondeu:

– Ainda não sei, mas como até aqui foi uma aventura muito emocionante, podemos seguir juntas nos divertindo. Ninguém larga a mão de ninguém! 

Mas só se vocês quiserem!!!

cauepizindim disse...

Caso não encontre uma criança pra contar esse conto, procure dentro de si mesmo. Em algum canto, esquecido, haverá alguém para aumentar um ponto.