Uma das melhores aulas de
minha vida recebi nas ruas de Ouro Preto. Ao sair para conhecer a famosa cidade
histórica, fui abordado por um guri de uns 12 ou 13 anos. Ele
vestia um sapato que já calçara muitos outros pés antes dos pés dele; e sua
calça , também muito usada, estava amarrada com barbante na cintura. Mas quando
olhei no rosto dele, vi a riqueza de um sorriso que expressava uma alegria que
vinha do lugar onde a vida resiste, tal como a alegria de que fala
Espinosa .
Havia nele uma dignidade
na postura e maneira de falar, bem como uma confiança em si mesmo nascida de
uma força que vinha de seu sangue, da luta de seus ancestrais. Pensei que ele
me pediria algo, mas na verdade ele queria me oferecer.
O guri se
oferecia para ser meu "intercessor" no conhecimento da
cidade de Ouro Preto. Enfim, ele se oferecia para ser meu professor
no conhecimento daquele patrimônio histórico. “Intercessor” significa: “aquele
que cria intercessões, abrindo os conjuntos fechados”. O intercessor nos
desabre e horizonta , diria o poeta Manoel de Barros.
Ao olhá-lo , me veio à
mente Chico Buarque e sua música "Meu Guri" , interpretada por Elza
Soares. A letra de Chico fala mais do que de um guri, fala de uma situação
social excludente que rouba dos guris o direito ao futuro. A voz de Elza é
canto de Gaia, voz da Terra-Mãe que chora a dor da injustiça que violenta seus
filhos . Ouvindo-a, revejo o guri de Ouro Preto caminhando ao meu lado, um
pouquinho à frente, feliz por me ensinar. Quem ama o que faz sente alegria, a
potência-alegria de que nos fala Espinosa. Com certeza, esse guri faria a Elza-Gaia
sorrir , assim como me fez.
Eu, “Professor Doutor”,
aceitei ser aluno do guri. Por meio da fala e explicações dele , a cidade
deixava de ser histórica: ela vivia , entrava em devir. Houve um momento em que
olhei para o menino e vi o libertário Zumbi dos Palmares; noutro momento, ele
parecia o poeta Cartola. Ali, o bisavô do menino foi escravo. Mas em seu
bisneto o bisavô se libertava no conhecimento que produz outra história : um
devir-memória dos acontecimentos que a História Oficial não conta.
O guri entrou numa mina
abandonada e me mostrou onde ficava o ouro que agora adornava o trono onde
estava sentado o Papa; ele adentrou numa igreja , subiu ao altar e abriu os
braços em cruz, e o Cristo nele eu vi, com a cor e a face do menino-Zumbi.
Por fim, ele me levou à
torre bem alta de uma igreja. De lá, ele me apontou sua simples casa: o morro
onde o guri morava parecia o Morro de Mangueira... Sobre a majestosa colina,
seu casebre estava mais alto e perto do céu do que todas as torres das igrejas.
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