domingo, 9 de janeiro de 2022

Manoel, Espinosa & Lucrécio

 

O maior sábio da Grécia não foi Sócrates, Platão ou Aristóteles. O maior sábio foi Tirésias. Ele não se tornou sábio competindo para ser o “Dono da Verdade”  ou querendo ter opinião acerca de  tudo. Tirésias se tornou sábio   a partir de algo que ele viu e viveu .

Assim  aconteceu : atrás da casa de Tirésias passava um rio. Do rio vinha a água que ele bebia e o alimento que pescava. Até que um dia Tirésias se fez uma pergunta: “De onde vem esse rio? Onde fica seu minadouro?”.

Tirésias resolveu então  ir contra a corrente no esforço para achar a nascente. Somente  indo contra a corrente  se pode achar  nascentes, de rio ou de ideias . A fonte nunca vive no “acostumado” , no “mesmal”.

Não demorou para alcançar  partes onde o rio, embora o mesmo, já não lhe era conhecido : viu em suas margens flores que nunca tinha visto, ouviu passarinhos dos quais não sabia o nome. 

Enquanto prosseguia, não via trilhas ou pegadas. Sentindo-se correndo riscos, Tirésias   hesitou, quase abortando sua “linha de fuga”. Até que ele olhou à frente e viu alguém a se banhar na fonte da qual o rio nascia. Era Atena, a deusa da sabedoria. Ela estava nua...

A  sabedoria precisa às vezes se banhar  em fluxos  para reinventar-se nova. Nas academias  , a sabedoria se veste de  teorias. Ela nunca se mostra nua   nesses lugares. Quem a conhece apenas  vestida pode  até se tornar  um teórico , mas nunca será  um pensador-poeta que sabe  chamar Atena  pelo seu verdadeiro nome: Sofia.

Tirésias então percebeu que ao se despir das teorias é como poesia que a sabedoria se mostra a quem  teve que se perder  para achá-la.

A   autêntica sabedoria  é fonte que renova a si mesma  para que em nós  não seque a vida.

                                                                                                                                                

“A palavra abriu o roupão para mim:

ela quer que eu a seja.” (Manoel de Barros )

 

“A filosofia deve ser ensinada  junto com a poesia, para assim agirmos como o médico cuidadoso  que , visando melhor  curar seu paciente, mistura   o remédio amargo junto com o mel.” (Lucrécio)

 

( Quando Espinosa morreu,  religiosos  fanáticos invadiram o lugar onde o filósofo morava em busca dos muitos “livros perigosos” que, segundo eles, Espinosa teria escrito  com o “Diabo”. Eles queriam tacar fogo nesses livros. Porém, no quarto modesto do filósofo, alugado na casa de uma família simples, os intolerantes  encontraram poucos livros. Um deles estava aberto sobre a mesinha de estudos de Espinosa, era o livro “Sobre a natureza das coisas”, do poeta-filósofo Lucrécio. Do livro saiu uma luz potente, luz do conhecimento  libertário, que pôs para correr os obscurantistas  ignorantes...)




Acabou de ser lançada  esta edição bilíngue . Na   Apresentação do livro, intitulada “Ver com Lucrécio”, Brooke Holmes escreve: “[Lucrécio] ataca o cerne da política do medo que está por trás dos nacionalismos racializados e dos fascismos genocidas.” E no Prefácio  (“Lucrécio, nosso contemporâneo”), Thomas Nail afirma: “voltamos a Lucrécio hoje (...) como se ele fosse um sopro de vida nova na vanguarda do século XXI.”



Quando Lucrécio nos ensina sobre os átomos, ele compreende essa realidade primeira de forma muito diferente do mero mecanicismo. Para Lucrécio, o que explica os átomos não é eles serem unidades mínimas da matéria, como se fossem indivíduos ou egos isolados. Para falar dos átomos, Lucrécio emprega as expressões "corpos generativos", isto é, corpos que têm a potência para gerar, e "sementes das coisas", pois os átomos não são pedras , eles são sementes. Na mitologia, a protetora das sementes, para que essas nunca sequem ou percam sua fertilidade, essa protetora é Vênus, uma das manifestações do Feminino Ancestral. Quando começa o poema, Lucrécio pede o auxílio a Vênus, para que essa, dando-lhe as mãos, o auxilie a percorrer os caminhos infinitos da Natureza, sem se perder, e para "na imensidão viajar em espírito e mente" ( verso 74 do poema). Assim, de mãos dadas com Vênus seguem Epicuro,  Lucrécio, Espinosa... oferecendo a mão libertária deles também para nós.

Para Lucrécio, e esse é o primeiro dos Princípios da Natureza, algo real não pode ter vindo do nada, pois do nada nada vem. O nada não tem dimensão real, o nada é a projeção do medo que nasce da mente que não compreende.

Assim, tudo o que é real vem de uma semente, e a própria mente se torna uma semente, uma semente da qual germinam ideias, quando compreende a natureza e a si mesma, pois não há como a mente compreender a natureza sem compreender, ao  mesmo tempo ,a si mesma.

Além dessas sementes das coisas, Lucrécio também nos fala do vazio e do clinâmen. Sementes-átomos, vazio e clinâmen: eis os princípios dos quais tudo nasce.

O vazio não é a mesma coisa que o “nada”. O nada se opõe ao ser, ao passo que o vazio é co-presente ao ser , aos átomos-sementes. É no vazio que os átomos-sementes se movem. 

Ao se moverem , os átomos são capazes de pequenos “desvios”. Esses desvios são mudanças na direção sem que nada da direção antiga possa explicar. Nesses desvios de trajetória, o átomo-semente desabrocha nova direção , encontrando-se com outro átomo-semente que se movia num trajeto diferente, de tal modo que esse desvio produz um corpo composto cujo movimentos passam a ser comuns e coordenados. Todos os corpos compostos têm na sua origem um desvio originário, e não um plano prévio ou cartilha .

Os átomos são como sementes, o vazio é o terreno no qual os átomos-sementes são lançadas, ao passo que o desvio-clinâmen é o germinar da semente da qual aflora toda  vida complexa e múltipla que nossos olhos veem e nossa sensibilidade toca, ao ser também tocada pela Natureza-Vênus, ao mesmo tempo Natura Naturante e Natura Naturada.

 

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O livro de Lucrécio foi escrito em versos, ao mesmo tempo filosofia e poesia. Na forma, o livro lembra a "Odisseia", de Homero. Mas na odisseia filosófica de Lucrécio o personagem não é Ulisses, e sim Epicuro, o filósofo atomista que ensinava em jardins. Sempre me lembro de Epicuro quando ouço o verso de Caetano :"Os átomos todos dançam🎵..."







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