domingo, 22 de novembro de 2020

o osso, o arquivo e o documento

 

 No poema  “Escova”, Manoel narra um acontecimento que presenciou quando criança: ele viu dois homens sentados no chão “escovando osso”. No princípio, diz o poeta, “achei que aqueles homens eram loucos”  ficando assim no chão “escovando osso.” Mas ele olhou bem e viu que não podiam ser loucos aqueles homens, pois eles não escovavam de forma mecânica, fazendo por fazer ou por obrigação; havia neles um cuidado no escovar, como se o osso fosse um pergaminho antigo, um papiro, um mapa de um tesouro perdido. O poeta descobriu então que aqueles homens eram "arqueólogos": eles escovavam o osso para dele retirar a poeira, a sujeira, a craca. Num tempo muito antigo,  aquele osso fez parte de um esqueleto sob músculo e pele de um animal imenso. O osso era parte de um ser vivo que não existia à parte. Pois esse ser vivo era parte de um mundo  hoje extinto. Contudo, esse mundo não desapareceu totalmente, ele ainda  está vivo , “arquivado” no osso. O osso também pode ser um arquivo que guarda a origem de onde veio. "Arquivo” vem de “arqué”: “origem”. Esse osso também se torna um "documento". Essa palavra vem de “docere”, de onde nasce também “docente”: “aquele que ensina”. Arquivo e documento, o osso guarda sua origem que ensina não só sobre o passado, ensina também sobre nosso presente,  fazendo-nos compreender que nosso mundo é parte de um mundo maior do qual o mundo extinto também era uma parte, e que nosso próprio mundo também corre o risco de  ser extinto, sobretudo pela ignorância humana que se imagina um ser à parte da natureza, e assim a preda, destrói, queima , dizima.

Manoel diz que aprendeu a escovar também, só que as palavras: o poeta escova as palavras, retira delas a craca, a sujeira , o clichê, a torpeza, a estreita de visão, a opinião obscurantista, as verdades do ódio, o preconceito, a intolerância.... tudo isso que nas palavras colocou a mentalidade sem poesia, sem criatividade, sem empatia, sem conhecimento...mas que adora usar as palavras para fazê-las de arma de suas vis , preconceituosas e obscurantistas opiniões.

O poeta escova a palavra até achar de novo a semente dela, para assim fazer nascer dela poesia, sentido novo, reinauguramentos para que possamos vencer , agindo, os que nos querem extintos. A escova do poeta é instrumento ao mesmo tempo  crítico, clínico e criativo.




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