terça-feira, 30 de outubro de 2018

mitos


Às vezes, os simpatizantes do “coiso” o chamam de "mito". De certo modo, eles não estão errados. Pois mitos não são apenas Zeus, Hermes, Afrodite, Eros, Dioniso e outros. Também são mitos , por exemplo, os "Ciclopes" , que eram seres de um olho só na testa simbolizando “estreiteza de visão”. Os Ciclopes eram inimigos de Zeus, o deus da ética e da justiça, e de Eros, o deus do amor. Os Ciclopes, segundo Jung, simbolizam o que de besta bárbara ainda vive no homem, como sombra persistente mesmo hoje nesse mundo tecnológico, pois o Coiso-Ciclope também usa a tecnologia a serviço de sua visão estreita. Outro mito que parece simbolizar o “coiso” são as “Eríneas”, deusas do ódio e da vingança. Foram elas que despedaçaram “Orfeu”, o poeta que cantava a vida e a arte. Elas o despedaçaram pelo seguinte motivo: quando Eurídice morreu, o poeta Orfeu parou de cantar. Para os gregos, “Eurídice” também é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Então, as Eríneas queriam que Orfeu esquecesse a alma e servisse a elas, cantando assim a guerra , o ódio e a vingança, para ajudá-las a espalhar tais coisas pelo mundo. Como Orfeu se recusou a usar sua arte para servir a tal barbárie, as Eríneas o despedaçaram. Mas isso não fez morrer o poeta, pois seu filho de nome “Museu”, poeta como o pai, recolheu os pedaços que Orfeu se tornou e os reuniu novamente, fazendo surgir assim a primeira exposição do mundo, na qual não apenas Orfeu, como também Eurídice, a arte, a poesia, a cultura, enfim, a civilização estariam conservados e expostos como prova de que o Coiso-Eríneas não venceram definitivamente a arte, a poesia e a vida.



segunda-feira, 29 de outubro de 2018

as esferas celestes II

As mesmas forças que arredondaram a terra e as estrelas, também fizeram esféricos nossos olhos, e assim eles permanecem não importando o que de torto a gente veja. Creio que também são esféricas as ideias que em nosso pensamento são sois e estrelas e, como estas, servem para a orientação do nosso avançar, apesar da noite extrema.


quinta-feira, 25 de outubro de 2018

a fortaleza


No poema “Agroval”, Manoel de Barros narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em risco: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si. Entre seu abdômen e o chão úmido  a arraia inventa um “pantanal menor”, um pantanal de resistência. Para que a vida não morra, a arraia convida tudo o que vive para vir morar sob suas asas. Migram e se instalam ali não apenas bichos, instalam-se  também sementes e brotos de futuras flores, de tal modo que debaixo da arraia tudo o que vive acha um  ventre. Sob a proteção de tal Gaia, a vida continua, resiste, cresce, fortalece-se; sob o coração da arraia acontecem alianças, agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma  Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida. Pois lá fora, quando as águas secam,  os predadores  sorrateiros lucram com a morte, e ficam à espreita . Mas a arraia é forte, resistente, não a vencem  os predadores oportunistas. Não seria tal ação da arraia o modo como a própria  natureza nos ensina o que é a virtude ético-política  que Espinosa chamava de “fortaleza”? Não seria tal comunidade de resistência  pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais ,em luta  contra a tirania,   nomearam  Quilombo?

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”(Manoel de Barros)

“Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas”(Manoel de Barros)



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*"Agroval" é um neologismo criado pelo poeta e significa: "lugar onde se cultiva a vida".

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

espinosa e a saúde da mente




Em Espinosa, a palavra “emenda” (emendatio , em latim) tem dois  sentidos aproximados: curar e  regenerar .  É assim que o intelecto, ou mente,  conquista sua saúde: emendando-se. A mente se  emenda por intermédio de ideias e afetos ativos, compreendendo e agindo. A emendatio não é um processo apenas intelectual de ler livros, mesmo que sejam os livros de Espinosa. Emendar também é ligar-se, “desabrir-se”, como diz Manoel de Barros, conhecendo-se como parte : do cosmos, da natureza e da comunidade humana. O oposto da emendatio é o colocar-se como  um todo à parte, à parte sobretudo da comunidade humana,  como  dono  de uma  “Verdade” que não aceita alteridade. Não se cura a mente  sem curar também , e antes de tudo, o modo de vida , incluindo a vida social e coletiva.  “Mente” não é apenas razão , “mente” é a união do pensamento e do afeto . Depois, com a mente em saúde ,  pode-se então buscar seu aprimoramento ou aperfeiçoamento. Espinosa chamava de “Lógica” a esse aprimoramento. Em suas obras, ele anuncia que escreveria uma lógica , assim como uma medicina e uma dietética: estas para o aperfeiçoamento do corpo, aquela para o aperfeiçoamento da mente. Infelizmente, o filósofo faleceu antes de escrever tais obras. Para aperfeiçoar a mente é preciso, primeiro, curá-la, ligá-la à pluralidade aberta.E a isto Espinosa chamava de “ética”.  Sozinha, sem a ética, a lógica  não tem esse poder de abrir a mente. Ao contrário, uma mente doente pode valer-se da lógica para dar vazão à sua doença, fechando-se ainda mais em sua estreiteza mental, que gera um comportamento igualmente estreito. Uma mente doente  é uma mente intolerante,  antipoética e antifilosófica, enfim, antidemocrática. A lógica é apenas linguagem, simulação do pensamento. O pensamento é abertura. A mente doente, fechada em sua clausura, pode valer-se da mera linguagem para dissimular ou esconder sua loucura. Um rebanho de mentes doentes forma uma mentalidade fechada  que se retroalimenta ao fazer-se surda a toda lógica que não seja a da sua própria loucura. Quando a mente é doente, a mera linguagem pode ajudar a esconder essa doença, travestindo-a inclusive de discurso religioso ou político, ou a mistura dos dois. Quando a mente está em saúde  pela potência das ideias, ela aprende a expandir-se em cada palavra que expressa e em cada ação que seu corpo realiza, para assim ser remédio a serviço da saúde em sua luta contra a doença.



domingo, 21 de outubro de 2018

sofia e o general...


É impossível "chover para cima", ou as ondas nascerem na margem da praia e irem para o horizonte. Sabemos que é impossível acontecerem essas coisas porque compreendemos o que é natural acontecer: é natural a chuva vir de cima, é natural as ondas se formarem no horizonte e chegarem à praia. Sabemos da impossibilidade de “chover para cima” porque sabemos, primeiro, qual é a realidade da chuva, a sua maneira de ser. É conhecendo a realidade de alguma coisa que podemos saber de sua impossibilidade e , também, de suas possibilidades. Se sei que a realidade natural da chuva é cair do céu, antes que ela de fato caia penso sua possibilidade e me preparo :busco um guarda-chuva, limpo a calha ou ponho a planta na janela para ser molhada. Mas aquele que não conhece a realidade natural das coisas, volta e meia delira impossibilidades como se fossem possibilidades que sua imaginação crê serem mais reais do que a própria realidade que a ciência e a filosofia nos fazem compreender. Porém , é apenas na imaginação e na linguagem que a chuva pode “chover para cima”: se for em um poema, é apenas verso; mas se for em uma mente ignorante e supersticiosa, tal ideia confusa torna-se um perigo contra a própria existência, se os portadores de tal mente delirante se apossarem do Estado e da educação das crianças. Quando Espinosa dizia que “a democracia é o mais natural dos regimes”, ele quis fazer uma imagem semelhante àquela da chuva. Assim , é natural o homem ser livre e rebelar-se , cedo ou tarde, contra aqueles que vão contra essa sua natureza democrática. Os que combatem essa natureza democrática também combaterão a ciência, a filosofia e a liberdade de agir e pensar , pois ciência, filosofia e liberdade de pensamento são expressões daquela natureza democrática do homem e nos permitem compreendê-la e efetuá-la. Quando Espinosa afirma que "a democracia é o regime mais natural", não há otimismo nisso, tampouco idealismo. É a compreensão de uma necessidade semelhante àquela que faz a chuva vir do céu. Nesse sentido, democracia não é só voto, partido, parlamento. Democracia é, e sempre será, re-existência: religar o homem à existência, resistir pela existência, potencializando-a .





sexta-feira, 19 de outubro de 2018

- a tempestade


Dispo-me das roupas de cima.
Dispo-me das roupas de baixo.
Prossigo ainda me despindo da pele,
da carne, do sangue, dos ossos, dos nervos...
E assim, com a alma nua em pêlo,
com frio e saudade, mas sem medo,
saio à rua para enfrentar a tempestade.



quarta-feira, 17 de outubro de 2018

slogans...


Este texto  não tem natureza religiosa ou teológica, é apenas “Análise do Discurso”. O uso de  uma ideia religiosa como slogan publicitário revela as contradições aberrantes do discurso do “coiso”.  Seu slogan político-publicitário prega: “Deus acima de todos”.  Porém, entre os cristãos, Deus tem outros dois nomes: “Amor” e “Pessoa”. A ideia de “dignidade da pessoa humana”, base dos Direitos Humanos que o “coiso” combate, é um valor da filosofia estoica absorvido pelo cristianismo e depois  incorporado à Constituição como um Princípio  . Se o Deus que o “coiso” prega  é o cristão, seria possível então substituir  a expressão “Deus acima de todos” por “o Amor acima de todos” ( embora o “Amor” possa soar falso quando é só  peça de publicidade, quando é apenas propaganda... ). Mas basta ouvir o que prega  o “coiso” , e ver o que fazem seus seguidores , para se perceber  que seu  “Deus” não atende por Amor ou Pessoa. Se não atende por esses dois nomes, o que é então esse “Deus” tornado slogan político-publicitário? Alguém que pregasse em nome daqueles dois nomes despertaria apoio de nazistas e da ku klux klan?
Além disso, quando o “coiso” cita a passagem bíblica ”Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”, ele se equivoca profundamente no sentido que dá à  ideia de “verdade” , opondo-a à  ideia de mentira ou falsidade  . O “coiso” parece ignorar, não por acaso,  que na mesma passagem bíblica a “Verdade”  em questão é  “Verdade do  Amor”: “Conhecereis o Amor e o Amor vos libertará”. Libertar  do quê? Antes de tudo, do ódio . O oposto do Amor-Verdade  cristão não é a mentira-falsidade, o oposto é o ódio em suas variadas faces, este é o sentido da   passagem bíblica que o “coiso” , por ignorância ou má-fé, não alcançou.
Quem lida com slogan publicitário sabe disto: slogan é  sempre instrumento de um comércio, não importa se de coisas ou de ideias. Mas slogans se tornam mera vendilhagem quando propalam propaganda enganosa.

(imagem: “Cristo expulsando os vendilhões  do Templo”, de Michelangelo)



(nome desta escultura: "Cristo sem-teto", do artista Timothy P. Schmalz  )

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

o encontro com o mestre


Dia desses, numa manhã muita bonita, vi passar um senhor bem idoso, porém firme e altivo.  Vê-lo fez reviver dentro de mim uma palavra que há muito  eu não  dizia. Foi a “potência-alegria” de que fala Espinosa o que senti ao saber   que tal palavra  ainda em mim  vivia , à espera  de reencontrar aquele a quem ela designa e nomeia. Essa palavra não estava escrita no meu cérebro onde se acumulam teorias, ela  estava guardada em meu coração ,lugar do Afeto,  junto à lembrança dos seres que conheci e que me tornaram o que sou. Foi então do coração que a palavra veio subindo, já com pleno sentido, embora ainda sem se vestir com o som. Quando ela chegou à minha boca, tornou-se voz e chamou: “Mestre!!!”.  Aquele senhor era um querido  professor que tive há muito tempo. Ele me reconheceu , sorriu e estendeu a mão para  mim, encontrando  a minha que já lhe estava estendida  desde a primeira aula dele que assisti .  Não sei ao certo quanto tempo conversamos, o durar do afeto não o mede relógios. Quando nos despedimos, fiquei parado vendo-o ir, e pensei: ”Será que ele sabe o quanto foi importante em minha vida?” Antes de ele ir, olhei  seu rosto e tive a impressão de que ele também estava a   recordar-se do mestre que teve e que o inspirou a ser mestre, e por isso ele entendia minha gratidão. E esse outro mestre do mestre, se vivo estiver, também deve estar se lembrando, hoje,  daquele que o fez mestre. Pois hoje é dia não exatamente de nos lembrarmos de nós mesmos , mas daqueles que nos fizeram ser o que somos, professores. É sempre o aprender que vem primeiro. O autêntico professor gosta de ensinar porque, antes, amou aprender com aquele que lhe ensinou  lições que não  estão apenas  em livros. Creio  que nos tornamos professores quando o mestre que nos fez mestre não vive  apenas fora, ele passa a viver  dentro da gente, e com ele continuamos a aprender mesmo  enquanto ensinamos. Assim,  apenas  sob certa perspectiva aquele meu antigo mestre se afastava de mim,  sob outra perspectiva ele nunca de mim saiu  desde que , com suas aulas, em minha vida entrou , passando a viver na companhia de  outros queridos  mestres que igualmente entraram  em mim e me tornaram o que sou : a  Professora Nadir ( minha primeira professora de filosofia e quem me libertou), o  inesquecível Cláudio Ulpiano, o generoso Luiz Alfredo Garcia-Roza , o grande Gerd Bornheim e o sábio   Junito Brandão : “O melhor de mim sou Eles”(Manoel de Barros)











(Como minha querida Professora Nadir não escreveu livros, posto esta imagem que me fez lembrar dela  , com o trecho de um poema de seu poeta preferido. Na foto,  Stheffany Rafaela, moradora de uma comunidade do Recife, que transforma em sala de aula as vielas de sua comunidade. Foto: Aldo Carneiro/Pernambuco Press).

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

o anel de giges


Há um livro de Platão no qual ele narra a história de um anel que tinha o poder  de deixar seu portador “invisível”  aos olhos dos outros. Trata-se do “Anel de Giges”. Mas o sentido simbólico dessa história é mais do que o mero se tornar invisível fisicamente. Pois não era apenas seu portador que desaparecia fisicamente ao outro, era o outro também ( enquanto valor ético e político) que desaparecia para o portador do anel.  A posse de tal anel se tornava uma prova ética e política para saber o que alguém pensava realmente do outro , das regras e  do elo social. Muitos aproveitavam a invisibilidade provocada pelo anel para dar vazão a seus impulsos bárbaros : furtavam, roubavam, torturavam e  ofendiam  os outros. Creio que essa história do Anel de Giges simboliza também o que propaga o  discurso fascista: deixar o fascista “invisível” aos olhos dos  valores éticos e democráticos, para  que seu comportamento não se paute mais pelas regras que organizam , democraticamente, a visibilidade política. Não havendo mais regras que o freiem, tendo-se furtado aos valores que visibilizavam o conviver democrático,  o fascista imagina que ser livre é não ter mais barreiras éticas e políticas, tampouco religiosas,  para destruir o outro. Na verdade, o Anel de Giges não ocultava quem o colocava; ao contrário,    ele tornava público, política e eticamente,  o que cada um traz dentro de si: se saúde ou doença, se amizade ou ódio, se vida ou morte, se humanidade ou barbárie.



terça-feira, 9 de outubro de 2018

o poder teológico-político


Conforme argumenta Espinosa em seus livros sobre política, um dos maiores inimigos da democracia é o poder teológico-político. O que caracteriza o teológico é que ele se apoia em um livro que considera sagrado: o Alcorão, para os muçulmanos; o Talmud, para os judeus; a Bíblia, para os cristãos. O que fundamenta um Estado livre é que seu poder provém de uma Constituição laica livremente instituída , podendo ser emendada ou substituída por outra mediante uma assembleia constituinte, obra humana, fato este que não pode acontecer com o Texto que fundamenta a teologia. O poder democrático nunca é teológico, porém o poder teológico, saindo de sua esfera própria, pode ambicionar ser político, mas nunca será democrático. Ao contrário, o poder teológico-político verá na democracia um inimigo a ser destruído em nome de Deus. Mas qual Deus? De qual religião? E aqui está o que revela a impossibilidade de um poder teológico-político se manter a não ser com a força ( não a de Deus, mas a das armas bem humanas, demasiado humanas...). Na democracia, a Constituição é um texto que todos seguem , mesmo os que pensam diferente, como liberais e socialistas. Mas judeus, cristãos e muçulmanos seguem livros sagrados diferentes que lhes conferem uma identidade religiosa incomunicável com a religião diferente da sua . Então, quando um poder teológico quer se tornar também poder teológico-político, ele quer na verdade não apenas desfazer a essência da política, que é pautar-se em uma Constituição livremente instituída que preserva a diversidade, como também afirmar-se como  religião única. Assim, quando o poder teológico, saindo da esfera que lhe é própria ( a esfera subjetiva-privada) ,  quer se tornar também poder político , correm risco não apenas a democracia e os partidos, como também as outras religiões que, mais cedo ou mais tarde, também serão perseguidas ( no Brasil , os católicos ,os espíritas e as religiões de matriz africana). As outras religiões serão perseguidas logo depois dos artistas, filósofos, educadores, enfim, os democratas.



domingo, 7 de outubro de 2018

os lobos...


Os piores inimigos da democracia, segundo os gregos, não eram os Persas. Os piores inimigos da democracia estavam na própria Grécia. A democracia é, antes de tudo, uma visão do homem e do poder. O pilar da democracia era a seguinte ideia: o homem é um “animal político”, um “ser da pólis”. A palavra “pólis” é mais do que a mera cidade enquanto espaço físico.  A pólis é a  comunidade humana  na qual quem é comandado também comanda, diretamente ou por intermédio de um representante seu, que pode ser destituído caso não respeite as regras estabelecidas em comum. Os inimigos da democracia não aceitavam tal “igualdade natural” entre os homens. Para esses inimigos, o homem não seria um ser  capaz de autogovernar-se ; o homem seria, segundo eles,  um “animal de rebanho”. Como todo animal de rebanho, o homem precisaria de um “pastor”. É o pastor quem ordenaria  o que o homem deveria fazer, pensar, dizer, enfim, ser. Sem o pastor, o homem se perderia.  “Liberdade é maldição”, apregoa o pastor que governa o rebanho não por eleição ou escolha, mas devido à pretensa desigualdade natural dos homens: a maioria nasceu para ser rebanho, enquanto uns poucos, os “eleitos”, nasceram para ser pastor. Ao ouvir certa vez um defensor de tal “servidão natural” , um filósofo indagou: “na democracia, podemos destituir um mau governante, mas o rebanho não pode destituir um mau pastor. Na democracia, é a defesa da liberdade e da justiça o que une os homens livres; já o pastor mantém  o rebanho  unido  fomentando o medo e o ódio aos lobos. Mas  o pastor cuida do rebanho  porque tem um interesse que escamoteia : ele quer   tosquiar o rebanho  e depois vender sua carne no mercado.  Quem é o pior predador: o que preda apenas o corpo , como o lobo, ou o que preda o corpo e a alma?” . Ameaçando, o antidemocrata perguntou: “qual teu nome!?”  O filósofo respondeu: “Sou Diógenes, a quem chamam ‘Cão’, pois farejo toda espécie de lobo: os que uivam  e os que falam, os de verdade e os dissimulados ”.



sábado, 6 de outubro de 2018

a edificação


A filosofia não é apenas conceito. A filosofia também é desejo de produção de um modo de vida não resignado e não fascista, e só a mera teoria ou erudição não conseguem isso. Além dos conceitos, alguns filósofos enfatizavam certas condutas a aprender. Assim é, por exemplo, a "exortação" nos estoicos , ou a "crítica" em Nietzsche, ou ainda a "fortaleza" em Espinosa. Talvez tenhamos perdido essa dimensão pré-filosófica da filosofia , mais “clínica” e política ( não no sentido partidário) do que teorética e acadêmica. De todas as disposições filosóficas, talvez a mais extraordinária seja a “edificação”. É sobretudo em Epicteto que a edificação alcança sua necessidade: quando se está perdido, “sem chão e sem teto” , a edificação é a mais necessárias das artes a aprender, dela dependendo nossa sobrevivência em épocas de terror e ocaso, como foi aquela em que viveu Epicteto, muito parecida com os dias que correm. A ideia de “edificação” vem da arte de construir. Em toda edificação, seja a de um “edifício” ou a de si próprio, parte-se de um território, de um meio. Depois, prepara-se um começo, um plano para pôr de pé mais do que paredes. Edificar não é fazer subir um muro apenas. Edificar é pôr de pé um edifício, um espaço onde se habita, se vive, se resiste, se congrega, se recebe os amigos, se divide o alimento, se descansa da batalha de ontem e se renovam as forças para a batalha de amanhã . No deserto, edificam-se fortalezas. Na guerra, fronts. E quando nos querem escravos, são Quilombos que precisamos construir. Edificar é a arte de pôr de pé. Quando rastejar, curvar, prostrar , ajoelhar...são os comportamentos servilmente adaptados a esta sombria época, edificar-se é fazer-se morada sempre aberta onde a insubmissão possa abrigar-se , manter-se viva e resistir.Para Epicteto, "edificação" é o verdadeiro nome da educação autêntica.



quinta-feira, 4 de outubro de 2018

aos meninos impossíveis

Quando eu era criança, bem criança, meus pais eram pobres, porém podiam me dar de presente carrinhos simples  . Eu recebia tais brinquedos e os guardava, feliz e agradecido. Mas esses brinquedos e outros  não me faziam falta, pois eu gostava era de brincar com as próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados . Por exemplo, gostava de pegar o chinelo de meu pai e fazer de carrinho. Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava nada, pois estava em meus olhos a fonte de vê-lo outra coisa diferente desta que todos viam. Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube brincar com o sentido.
Quando eu era criança , portanto, havia o carrinho de brinquedo e o brinquedo que eu inventava com a própria realidade.  Brincar com o carrinho de plástico era bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente.
Hoje, penso que ser educador ou artista  é retornar àquele lúdico alegre e inocentemente subversivo, para assim reinventar novo sentido para esse real dado. Com alegria espinosista e peraltagem manoelina, quem sabe subverter  aquilo que os pouco imaginativos chamam de mundo objetivo , tristemente acostumado.
Já crescido, achei este poema do Jorge de Lima  me mostrando que eu não estava sozinho:



O mundo do menino impossível
(Jorge de Lima)

Fim da tarde, boquinha da noite
com as primeiras estrelas
e os derradeiros sinos.

Entre as estrelas e lá detrás da igreja
surge a lua cheia
para chorar com os poetas.

E vão dormir as duas coisas novas desse mundo:
o sol e os meninos.

Mas ainda vela
o menino impossível
aí do lado
enquanto todas as crianças mansas
dormem
acalentadas
por Mãe-negra Noite.
O menino impossível
que destruiu
os brinquedos perfeitos
que os vovós lhe deram:
o urso de Nürnberg,
o velho barbado jagoeslavo,
as poupées de Paris aux
cheveux crêpes,
o carrinho português
feito de folha-de-flandres,
a caixa de música checoeslovaca,
o polichinelo italiano
made in England,
o trem de ferro de U. S. A.
e o macaco brasileiro
de Buenos Aires
moviendo da cola y la cabeza.

O menino impossível
que destruiu até
os soldados de chumbo de Moscou
e furou os olhos de um Papai Noel,
brinca com sabugos de milho,
caixas vazias,
tacos de pau,
pedrinhas brancas do rio...

“Faz de conta que os sabugos
são bois...”
“Faz de conta...”
“Faz de conta...”
E os sabugos de milho
mugem como bois de verdade...

e os tacos que deveriam ser
soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de couro...

E as pedrinhas balem!
Coitadinhas das ovelhas mansas
longe das mães
presas nos currais de papelão!

É boquinha da noite
no mundo que o menino impossível
povoou sozinho!

A mamãe cochila.
O papai cabeceia.
O relógio badala.

E vem descendo
uma noite encantada
da lâmpada que expira
lentamente
na parede da sala...

O menino pousa a testa
e sonha dentro da noite quieta
da lâmpada apagada
com o mundo maravilhoso
que ele tirou do nada...

Chô! Chô! Pavão!
Sai de cima do telhado
Deixa o menino dormir
Seu soninho sossegado!

terça-feira, 2 de outubro de 2018

- orfeu, eurídice & manoel


Certa vez Orfeu, ainda deitado na cama pela manhã, vê Eurídice sentada diante da penteadeira penteando-se e cantarolando baixinho uma canção , um  ritornelo. Ela apenas se olha, não se julga ou mede, tampouco se compara a alguém ausente. Ela está plenamente ali, nos gestos do seu corpo, não sendo apenas um corpo, porém. Orfeu fica paralisado olhando...Eurídice se percebe olhada,  vira-se e, assustada, pergunta: “O que foi!?”, parando de fazer o que fazia. Orfeu então lhe pede: “Repete o que você estava fazendo!...” , “Mas o que eu estava fazendo?”, “Você se  olhava sem ser narcisicamente,  estava em si plenamente, mas transbordando, cantarolando...”. “Era assim que eu estava fazendo?”, tenta Eurídice repetir o que fizera. “Não, não é assim que era...”, diz Orfeu. Por mais que  Eurídice  tentasse, ela não conseguia repetir , de forma programada, o que vivera de forma espontânea, sem distância com a vida.
Orfeu  percebeu então que vira o que se chama de “graça” (não no sentido religioso), cujo o contrário é a des-graça. A graça  é  uma espontaneidade que não se  explica por outra coisa senão por si mesma. As crianças a vivem o tempo todo, os adultos se esqueceram dela...A graça acontece não quando a gente quer. Não é pelo querer que se alcança esse estado. Ao contrário, o viver posado e “acostumado” nos afasta dele : quando tentamos dominar ,de fora,  esse acontecimento, estranhamente percebemos que ele  se parece com nada... Na mitologia , “Eurídice”, o par de Orfeu, também é um dos nomes da alma ,   como  também são “Psiquê” e “Pneuma” (“Sopro”) . Assim, é poeta quem canta com a alma em graça, existindo sem separação com o existir, sem precisar de  mais nada.