segunda-feira, 26 de outubro de 2015

as zonas de vizinhança



A história relata o que são o negro, a mulher, o índio...A ciência define seus objetos segundo uma identidade objetificada. A escola, a pedagogia e nossa percepção nos mostra o que é uma criança. A história, a ciência e nossa percepção têm um ponto em comum: elas fazem um recorte, para assim terem um objeto, uma identidade.
Mas Deleuze e Guattari dizem que um devir nada tem a ver com a história, com a ciência, com a percepção e seus esquemas de recognição. Primeiramente, um devir não é apenas conhecimento, um devir não existe pronto, ele não é um objeto, de conhecimento ou de percepção. Um devir só existe se for produzido, fabricado, desejado.O que é então um devir?
Primeiramente, não aceitar como dado o negro, a mulher, a criança, o índio.Tais seres fazem parte de e são um fluxo, um processo, que não é apenas histórico ou social.Há nesses seres, como em todos os seres, uma realidade ainda não formada ou conformada, uma realidade molecular. Deleuze e Guattari opõem o molecular ao molar. Molecular vem de molécula. A molécula de hidrogênio se compõe com a de oxigênio  e assim nasce uma realidade visível, perceptível,molar: a água. "Molar", por sua vez, significa "massa". O molecular não possui massa ou extensão, possui apenas intensidade. Toda realidade molecular é múltipla e heterogênea, ao passo que de homogeneidades são feitas as massas.
     O que o senso comum chama de realidade são sempre massas, molaridades.Porém as moléculas possuem também realidade própria, e esta realidade própria não pode ser plenamente conhecida se aplicarmos sobre ela a lógica do mundo molar.Assim, em tudo o que existe molarmente ( mulher, índio, negro...) há uma realidade molecular que não pode ser sentida e conhecida pela lógica das identidades molares.Contudo, somente podemos apreender o molecular que existe em algo se, antes de tudo, fizermos viver o molecular que existe em nós. "Eu" e "tu" são molaridades.Mas molecular é o nós. A molecularidade é uma multiplicidade.Uma multiplicidade é uma heterogeneidade não formada. Tudo o que não é ou não está  formado não se opõe, não é "dialético": ou se compõe ou escapa, foge ( em uma linha de fuga).A realidade molecular é sempre um deslimite. Para apreendê-la, precisamos nos colocar como forma em rascunho, como diria Manoel de Barros.
Devir-negro não é se identificar com a forma histórica ou sociológica do negro, mas descobrir no negro uma molecularidade que também tenho, eu que não sou negro. Descobrimos assim  uma zona que nos torna vizinhos: nossa relação se torna  de vizinhança. Em geral, moro em minha casa, e o vizinho na dele. Mas a zona de vizinhança não é minha casa ou a dele, pois ela é uma zona comum na qual , saindo de nossas casas, afirmamos o aberto como nosso teto e chão. A zona de vizinhança é um espaço exterior à casa, a toda casa, mas une minha casa à do vizinho e nos permite nos encontrar, nós que não temos o mesmo sangue, nós que não temos o mesmo sexo, nós que não temos a mesma religião, nós que não temos a mesma percepção.
Devir-negro, devir-mulher, devir-criança, devir-índio...é achar uma zona de vizinhança que me amplia para fora de minha casa, me faz habitar no mundo, ao mesmo tempo que liberta o negro, a mulher, o índio e  a criança da mera referência histórica ou sociológica. Do ponto de vista da história e da sociologia, os negros e as mulheres , por exemplo, têm suas lutas, suas libertações a serem travadas e conquistadas. Da perspectiva do devir-negro e do devir-mulher, porém, sua libertação também é a do branco e a do homem.E o devir-criança, por sua vez, pode libertar o adulto dos infantilismos de uma criança que não cresceu.
 A zona de vizinhança que constitui o devir-negro não é negro; a zona de vizinhança que constitui o devir-mulher não é mulher.Deleuze afirma que o devir é um rio que é mais veloz no meio e rói suas margens.As margens são os lugares onde prevalecem identidades que se opõem, como as identidades homem-mulher, branco-negro. O devir as rói, e as atrai para seu meio que as faz devir outra coisa. Por isso,  o devir é duplo: ele passa entre o negro e aquele que entra no devir negro. Não é o negro o sujeito do devir, nem a mulher, nem o índio. Sujeito é uma categoria histórica e sociológica, além de psicológica. É o devir que vem primeiro em todo devir. É a mudança que é primeira nas coisas que mudam ou precisam mudar.Negro, mulher...só se tornam livres se lhes anteceder um devir que os impeça de se tornarem padrões, modelos.Contudo, o devir não é um padrão ou modelo, mas o desfazer o lugar do modelo e do padrão, enfim, o lugar do poder, que é sempre um lugar ressentido, raivoso, triste...
Todo devir nasce de um agenciamento, de um encontro, de uma conexão entre seres diferentes, e que inventam uma zona de vizinhança que amplia ambos. Uma coisa são as lutas privadas que travo em minha casa, outra é a luta pela vizinhança, pelas questões de vizinhança. Eu sou uma casa, o outro é uma casa, mas o devir-outro é uma zona de vizinhança que passa entre eu e o outro, que faz de mim outro que eu, e faz do outro outro que ele: e o que nos tornamos não sabemos antes de nos tornar. Criamos uma realidade, uma realidade nova, para a qual não existia, antes de ela ser criada, a sua ideia pronta.
     O importante em todo devir não são os termos propriamente, mas o hífen. Este une, conquanto  separa. O hífen é o lugar de um crivo, de uma distância mínima onde vive e acontece o afeto.É por isso que o devir nunca é uma fusão homogênea que apaga as diferenças.O hífen expressa um terceiro indivíduo que, ao mesmo tempo, nasce dos dois termos que se encontram, mas que também  produz o devir em ambos, abrindo-os, potencializando-os.
       Nisto, como em  outras coisas, temos ainda muito o que aprender com os nômades:os espaços de vizinhança antecedem as casas, e quanto mais potentes são as zonas de vizinhança, menos muros precisam ter as casas.



Nenhum comentário: