A história relata o
que são o negro, a mulher, o índio...A ciência define seus objetos segundo uma identidade objetificada. A escola, a pedagogia e nossa percepção nos mostra o que é uma
criança. A história, a ciência e nossa percepção têm um ponto em comum: elas
fazem um recorte, para assim terem um objeto, uma identidade.
Mas Deleuze e
Guattari dizem que um devir nada tem a ver com a história, com a ciência, com a
percepção e seus esquemas de recognição. Primeiramente, um devir não é apenas
conhecimento, um devir não existe pronto, ele não é um objeto, de conhecimento
ou de percepção. Um devir só existe se for produzido, fabricado, desejado.O que
é então um devir?
Primeiramente, não aceitar como dado o negro, a mulher, a
criança, o índio.Tais seres fazem parte de e são um fluxo, um processo, que não é
apenas histórico ou social.Há nesses seres, como em todos os seres, uma realidade ainda não formada ou
conformada, uma realidade molecular. Deleuze e Guattari opõem o molecular ao
molar. Molecular vem de molécula. A molécula de hidrogênio se compõe com a de
oxigênio e assim nasce uma realidade
visível, perceptível,molar: a água. "Molar", por sua vez, significa "massa". O molecular não possui massa ou extensão, possui apenas intensidade. Toda realidade molecular é múltipla e heterogênea, ao passo que de homogeneidades são feitas as massas.
O que o senso comum chama de realidade são sempre massas, molaridades.Porém as moléculas possuem também realidade própria, e esta realidade própria não pode ser plenamente conhecida se aplicarmos sobre ela a lógica do mundo molar.Assim, em tudo o que existe molarmente ( mulher, índio, negro...) há uma realidade molecular que não pode ser sentida e conhecida pela lógica das identidades molares.Contudo, somente podemos apreender o molecular que existe em algo se, antes de tudo, fizermos viver o molecular que existe em nós. "Eu" e "tu" são molaridades.Mas molecular é o nós. A molecularidade é uma multiplicidade.Uma multiplicidade é uma heterogeneidade não formada. Tudo o que não é ou não está formado não se opõe, não é "dialético": ou se compõe ou escapa, foge ( em uma linha de fuga).A realidade molecular é sempre um deslimite. Para apreendê-la, precisamos nos colocar como forma em rascunho, como diria Manoel de Barros.
O que o senso comum chama de realidade são sempre massas, molaridades.Porém as moléculas possuem também realidade própria, e esta realidade própria não pode ser plenamente conhecida se aplicarmos sobre ela a lógica do mundo molar.Assim, em tudo o que existe molarmente ( mulher, índio, negro...) há uma realidade molecular que não pode ser sentida e conhecida pela lógica das identidades molares.Contudo, somente podemos apreender o molecular que existe em algo se, antes de tudo, fizermos viver o molecular que existe em nós. "Eu" e "tu" são molaridades.Mas molecular é o nós. A molecularidade é uma multiplicidade.Uma multiplicidade é uma heterogeneidade não formada. Tudo o que não é ou não está formado não se opõe, não é "dialético": ou se compõe ou escapa, foge ( em uma linha de fuga).A realidade molecular é sempre um deslimite. Para apreendê-la, precisamos nos colocar como forma em rascunho, como diria Manoel de Barros.
Devir-negro não é
se identificar com a forma histórica ou sociológica do negro, mas descobrir no
negro uma molecularidade que também tenho, eu que não sou negro. Descobrimos assim uma zona que nos torna vizinhos: nossa relação se torna de vizinhança. Em geral, moro em minha
casa, e o vizinho na dele. Mas a zona de vizinhança não é minha casa ou a dele,
pois ela é uma zona comum na qual , saindo de nossas casas, afirmamos o aberto
como nosso teto e chão. A zona de vizinhança é um espaço exterior à casa, a
toda casa, mas une minha casa à do vizinho e nos permite nos encontrar, nós que
não temos o mesmo sangue, nós que não temos o mesmo sexo, nós que não temos a
mesma religião, nós que não temos a mesma percepção.
Devir-negro, devir-mulher,
devir-criança, devir-índio...é achar uma zona de vizinhança que me amplia para
fora de minha casa, me faz habitar no mundo, ao mesmo tempo que liberta o negro,
a mulher, o índio e a criança da mera
referência histórica ou sociológica. Do ponto de vista da história e da
sociologia, os negros e as mulheres , por exemplo, têm suas lutas, suas
libertações a serem travadas e conquistadas. Da perspectiva do devir-negro e do
devir-mulher, porém, sua libertação também é a do branco e a do homem.E o devir-criança, por sua vez, pode libertar o adulto dos infantilismos de uma criança que não cresceu.
A zona de vizinhança
que constitui o devir-negro não é negro; a zona de vizinhança que constitui o devir-mulher
não é mulher.Deleuze afirma que o devir é um rio que é mais veloz no meio e
rói suas margens.As margens são os lugares onde prevalecem identidades que se
opõem, como as identidades homem-mulher, branco-negro. O devir as rói, e as
atrai para seu meio que as faz devir outra coisa. Por isso, o devir é duplo: ele passa entre o negro e
aquele que entra no devir negro. Não é o negro o sujeito do devir, nem a
mulher, nem o índio. Sujeito é uma categoria histórica e sociológica, além de
psicológica. É o devir que vem primeiro em todo devir. É a mudança que é primeira
nas coisas que mudam ou precisam mudar.Negro, mulher...só se tornam livres se lhes anteceder um
devir que os impeça de se tornarem padrões, modelos.Contudo, o devir não é um
padrão ou modelo, mas o desfazer o lugar do modelo e do padrão, enfim, o lugar
do poder, que é sempre um lugar ressentido, raivoso, triste...
Todo devir nasce de
um agenciamento, de um encontro, de uma conexão entre seres diferentes, e que
inventam uma zona de vizinhança que amplia ambos. Uma coisa são as lutas
privadas que travo em minha casa, outra é a luta pela vizinhança, pelas questões
de vizinhança. Eu sou uma casa, o outro é uma casa, mas o devir-outro é uma
zona de vizinhança que passa entre eu e o outro, que faz de mim outro que eu, e
faz do outro outro que ele: e o que nos tornamos não sabemos antes de nos
tornar. Criamos uma realidade, uma realidade nova, para a qual não existia,
antes de ela ser criada, a sua ideia pronta.
O importante em todo devir não são os termos propriamente,
mas o hífen. Este une, conquanto separa. O hífen é o lugar de um crivo, de uma
distância mínima onde vive e acontece o afeto.É por isso que o devir nunca é
uma fusão homogênea que apaga as diferenças.O hífen expressa um terceiro
indivíduo que, ao mesmo tempo, nasce dos dois termos que se encontram, mas que
também produz o devir em ambos, abrindo-os, potencializando-os.
Nisto, como em outras coisas, temos ainda muito o que aprender com os nômades:os espaços de vizinhança antecedem as casas, e quanto mais potentes são as zonas de vizinhança, menos muros precisam ter as casas.
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