Qual é a melhor maneira de seguir os grandes
filósofos: repetir o que eles disseram ,
ou fazer o que ele fizeram,isto é, criar conceitos para problemas que
mudam necessariamente?
Deleuze e Guattari, O que é a
filosofia?
***
Falar ou escrever sobre Cláudio Ulpiano nos põe, como diria Manoel de
Barros, em “estado de rascunho”: um
“afloramento de falas” vem ocupar nossa voz.Somente como rascunho, anexatos, podemos conquistar alguma
consistência, mas sem perder o infinito. Abordar Cláudio só o podemos deixando
nascer em nós um sujeito coletivo de
enunciação: poli-fonia -
múltiplas vozes, heterogenia de expressão. Isto porque Cláudio Ulpiano assinou
seu nome para expressar singularidades e acontecimentos dos quais ele foi e é o
criador. O nome de Cláudio é a assinatura através da qual vemos paisagens,
personagens, acontecimentos, afetos, experimentações, devires, beleza, sujeitos
larvares, mundos por criar que nascem da terra
incognita da filosofia.
Em Cláudio, a filosofia estava tão íntima à vida que é nesta, e não em livros, que suas lições foram
escritas. É em minha vida que o leio, e na vida de muitos. É no mais íntimo, no
íntimo exterior, que vou buscar o que dele aprendi e aprendo.
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Segundo Deleuze, o intercessor é “aquele que
intercede a nosso favor”. O intercessor é aquele que intercede. Inter: ele se
coloca “entre”. Todo espaço de travessia é um espaço “entre”: espaço de
processos.
O intercessor se coloca diante de e a favor. Não a favor de si próprio, mas a
favor daquele que o tem como intercessor. Somos nós que nos damos
intercessores, mas é preciso que o intercessor seja diferente de nós mesmos. Do
contrário, seríamos nós mesmos intercedendo a nosso favor.O intercessor nos "desabre", como dizia Manoel de Barros. Quando nos damos um intercessor, o intercessor intercede a nosso favor
e nos faz alcançar realidades que não alcançaríamos sozinhos.O intercessor nos
tira do estar sozinho, mesmo que não exista ninguém à nossa volta. Não existe
um tipo de ser portando uma etiqueta e dizendo: “eu sou seu intercessor”.
Qualquer coisa pode ser um intercessor, desde que interceda a nosso favor, em
favor sobretudo daquilo que em nós crê e cria um intercessor. Um poeta pode ser
nosso intercessor. Ele intercede a nosso favor pondo-se diante de nós e diante,
também, da realidade que alcançamos através dele.Um intercessor nunca se põe de
costas , à frente ou atrás, mas sempre diante: diante de nós e diante do que
não conhecemos, mas que, através dele, nos pomos diante, com os olhos abertos,
despertos.
Dona Nadir, querida Professora Nadir lá do antigo
segundo grau, minha primeira intercessora a quem tudo devo, como gostaria que
essas palavras de gratidão a encontrassem.
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"A maior perfeição que podemos
alcançar para nós mesmos é servir
de instrumento para que os outros
possam conquistar a perfeição deles próprios".
Espinosa
Ele observava
muito como procedíamos, e parecia formar um conhecimento de cada um de nós a
partir da observação do que fazíamos, e não do que dizíamos. Por exemplo, havia
duas formas de lutarmos a capoeira entre nós. A primeira delas era simplesmente
uma brincadeira quase . Geralmente, quando observamos grupos de capoeira se
exibindo para um público mais amplo, é a essa forma de luta dançada que
assistimos. A segunda forma de luta, porém, parecia de fato algo mais sério. À
primeira vista, parecia uma luta de verdade para vencer o outro. Muitos
interpretavam dessa forma, e chegavam a golpear duramente seu parceiro de
disputa. Várias vezes eu observava o rosto do Mestre Joãozinho durante essas
lutas mais sérias.Via-o reprovar silenciosamente quem duramente golpeava mais,
e aparentava sair-se vitorioso.
Confesso que eu
não apreciava muito essas lutas mais sérias, mas não fugia delas. Elas nos
provavam de muitas formas ( e isso tudo eu aprendi depois, embora fosse um
conhecimento que nunca era dado diretamente pelo Mestre Joãozinho).
Primeiramente, era preciso procurar como parceiro de luta alguém que fosse um
“igual”, ou seja, alguém que tivesse um poder assemelhado ao nosso. E isso
exigia de nós uma constante e renovada observação das capacidades dos outros,
de seus avanços e virtudes, mas também de seus pontos fracos. E era a partir
das virtudes e pontos fracos dos outros que nós devíamos fazer uma idéia das
nossas próprias virtudes e fraquezas. Superando um igual, superaríamos a nós
mesmos. Porém, quem escolhia lutar com um mais fraco , nada mais do que
fraqueza estaria demonstrando. E quem, ao contrário, buscasse medir-se com um
mais forte, estaria dando provas de que era um pretensioso. Por isso, nada mais
difícil do que saber tratar um diferente como igual ; e nada mais fácil do que
, àquele que desconhece seu poder, subestimar um superior ou destratar um
inferior.Isso tudo fazia parte do aprendizado de como se conduzir na observação
de nós mesmos diante daqueles que são mais capazes do que nós, por já estarem
em um nível superior, ou daqueles que nos são inferiores (por ainda não terem
alcançado o mesmo patamar onde estávamos). Mas para distinguir estes daqueles
era preciso, antes, sabermos em que patamar estávamos, e isso não se fazia
apenas com o conhecimento de nossas virtudes. Fazia-se necessário saber também
nossas fraquezas. E isso nós aprendíamos muitas vezes ao preço de derrotas.
Mas um dos
últimos aprendizados que tive, e dos mais importantes, tinha como suporte o
rosto de desaprovação do Mestre Joãozinho diante daqueles que, nas lutas mais
sérias, golpeavam o adversário e , aparentemente, venciam a luta. Certo dia,
então, tomei coragem e perguntei diretamente ao Mestre Joãozinho o motivo
daquela desaprovação. Parecendo esperar que alguém lhe perguntasse isso ,
embora ele cuidasse para que seu rosto não fosse enfático nas expressões de
reprovação ( na verdade, ele sempre esperava que nós soubéssemos perceber as
sutilezas...), o Mestre me disse mais ou menos as seguintes palavras: “ A
essência da luta é demonstrar poder. Mas o verdadeiro poder não está em vencer
o outro com um golpe violento, e sim mostrar ao outro que poderíamos vencê-lo
se quiséssemos, mas que disso não precisamos para afirmar nosso poder. A
vitória não consiste em vencer o outro, mas a nós mesmos. A luta de brincadeira
nos prepara para essa luta séria. Mas essa luta séria tem como objetivo nos
preparar para as lutas da vida”.
Estas foram umas das últimas palavras que
ouvi do Mestre Joãozinho. Para tristeza de todos nós, ele foi morto com um tiro
nas costas ( só mesmo dessa forma se poderia derrubá-lo...) , quando saía à
noite do trabalho . Até hoje não se sabe quem foi o covarde que o golpeou
assim.
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Hoje me veio à boca uma palavra que há muito eu não dizia. Andam me faltando as oportunidades para dizê-la, embora também fossem raras as oportunidades para dizê-la na época em que eu , como aluno, a dizia - pois a disse a poucos, pouquíssimos. Eu mesmo, não sei se merecendo, já fui designado recentemente por essa palavra, pois hoje sou professor. Embora seja honroso ser por esse nome chamado, nada se iguala a poder ter alguém a quem chamar por esse nome, que será sempre o professor do professor, fazendo-nos não esquecer que o aprender precede todo ensinar.
Hoje, como dizia, eu caminhava pela rua quando vi, vindo na minha direção, um senhor de cabelos muito brancos, como neve a adornar altos picos. Aliás, creio que apenas em homens elevados, e que auxiliam os outros a se elevarem, deveria nascer tal cobertura branca. Não obstante sua vida muito vivida, tal senhor se mostrava altivo, e seu olhar parecia estar lá naquele lugar que somente o espírito desperto alcança, e onde sempre há coisas novas para ver , descobrir e colher. Quando ele estava bem perto, pude enfim dirigir-me a ele, dizendo a tal palavra que há muito eu não dizia: “Mestre!”. Quando a dizemos a quem a merece, nada há de submissão em seu sentido. Ao contrário, merece esse nome quem ajuda a despertar , como dizia Espinosa, no olho de cada um o olhar que lhe é próprio, olhar este que nos ajuda a ver para além de nós mesmos.
Então, o Mestre me viu, reconheceu-me e sorriu. Estendeu-me a mão, encontrando a minha que já estava em sua direção. Trocamos poucas palavras. Mas nem precisavam muitas. Ele se foi, e segui meu caminho tendo agora a companhia de suas lições que ainda estavam em mim como se eu as tivesse escutado ontem, embora eu as tenha ouvido há mais de vinte anos, pois quanto mais o tempo passa mais se aviva em nós o que tem valor e mereceu ser aprendido .
Pensei comigo: “será que ele sabe o quanto suas aulas foram importantes para mim?”.
2 comentários:
Parabéns, Elton! Seus alunos de hoje e de ontem (os de amanhã ainda não sabem) sempre se lembram de você com o carinho que devemos aos mestres que ensinam a aprender.
Muito obrigado, João!
Disse aquilo do fundo do coração: é bom ser chamado de mestre, embora exista sempre a dúvida se merecemos ser assim chamados, mas é melhor ainda ter alguém a quem chamar de mestre, e assim o chamamos sem a menor dúvida.
Grande abraço,
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