Eu pertenço de andar atoamente.
Manoel de Barros
A arte barroca também é a arte das fugas. Bach, o grande mestre barroco, faleceu praticamente debruçado sobre uma Arte da Fuga que ele desejava produzir, deixando-a inacabada. As fugas se fazem a partir de uma linha que faz variar um tema, produzindo neste um sentido novo. A fuga implica um tema. A fuga é uma composição contrapontística. Fugir é , tanto na arte como na vida, compor-se com outro elemento em fuga, um outro ponto ou voz, de tal modo que é sempre compondo-se que se foge, e nunca isolando-se. Para haver a relação contrapontística, é necessário um tema comum aos elementos em fuga, tema este que os une em suas diferenças.
A fuga é uma repetição do tema expressa nos pontos diferentes em fuga. E todo ponto que foge, o faz em contraponto com outro que expressa o mesmo tema que o primeiro, mas em uma variação que se relaciona assimetricamente com o primeiro. A relação contrapontística da fuga é um agenciamento. É por isso que toda fuga é polifônica: ela possui múltiplas vozes, e cada uma diz o mesmo tema de forma diferente. Somente de forma contrapontística é que uma voz tem o que dizer. Isso a livra de emitir uma mera opinião que a isola ou a põe em choque com outras vozes, sem composição. O amor, a amizade e toda forma de relação somente potencializam aqueles que os vivem, e não os adoecem, quando se tornam temas para fugas que se fazem em ponto e contraponto, em composição.Quem assim vive, sua voz não emite mais uma opinião meramente pessoal ou egóica, uma vez que ela se torna a expressão de um tema que somente de forma polifônica, agenciado, se pode dizer e viver o sentido.
Deleuze e Guattari definem o desejo como linha de fuga .O desejo é contrapontístico, polifônico. O tema a partir do qual o desejo produz sua linha de fuga é sempre a vida. A vida é o tema para fugas polifônicas para aqueles que se afirmam no agenciamento que aumenta ainda mais a potência do desejo e, com ele, a potência da própria vida como tema. A linha da linha de fuga nunca se fecha em um contorno: ao contrário, ela impede que o tema se feche nele mesmo. A fuga não vem de fora do tema, ela lhe é imanente, e constitui o ponto onde o tema se expande, diferenciando-se internamente, aumentando de potência. A fuga não é um mero fugir ou escapar: ela faz fugir o próprio tema, desterritorializando-o em relação a si mesmo.Ao contrário do louco, que cria mundos paralelos, o artista/criador inventa mundos sem paralelo:"Inventar aumenta o mundo", já dizia Manoel.
Deleuze e Guattari querem dizer que onde há o desejo sempre há uma linha de fuga que faz variar o tema que imaginávamos o mesmo. Assim, o desejo é produção de novas possibilidades para o que imaginávamos nunca poder ser de outra forma, a começar por nós mesmos.
Triste é aquele que quer fugir de si mesmo. E quem a isso quer, não faltam os meios: o prazer alienado e narcísico, os fanatismos religiosos ou de mercado ( ou a combinação de ambos) para isso servem; as anestesias ( químicas , sociais , midiáticas, políticas...) também funcionam para quem quer fugir de si mesmo, bem como as MBA’s em autoconhecimento ,ministradas por seus gurus e mestres bem pagos ; igualmente podem servir para fazer fugir de si mesmo o vender-se em troca das medalhas, dos títulos, das propriedades e bens, dos afetos e favores que fazem a glória de Mefistófeles. Em contraste, a prática de afirmação de si e autêntico autoconhecimento é linha de fuga que amplia e potencializa o que verdadeiramente somos. No autêntico autoconhecimento, somos o tema e a variação do tema, nascendo dessa variação um novo tema.O autoconhecimento, como virtude da alma, da qual nascem a generosidade e a salut, não é meio para obtenção de medalhas ou prêmios, pois a virtude, a virtu, é o próprio prêmio, assim como o verdadeiro prêmio do autêntico músico não se mede por quantos discos ele vende, mas pela potência de variação que ele foi capaz de produzir em um tema ,com o qual ele se liga sem interesse, apenas por afeto e amor à música.E isto que não se pode quantificar com números constitui a verdadeira riqueza.
A fuga sem um tema que com ela fuja é um mero fugir de si mesmo, ao passo que um tema sem uma fuga que o faça variar é como uma identidade rígida, máscara mortuária.Fugir não é se afastar, mas fazer avançar a partir de onde se está. E é sempre em um processo que estamos.Uma coisa é fugir de si mesmo, outra é fazer fugir si mesmo lá mesmo onde estamos, para assim fazermos do nosso existir uma singular expressão do Existir da Natureza em seu infinito variar.Como dizia Espinosa, este variar infinito é o tema que nos deve afetar na produção de nossa linha de fuga.
A lagarta é o tema, ao passo que a borboleta é a fuga.A letra é tema, mas o espírito é fuga. Tema é o prazer, embora fuga seja o desejo. A fuga não é sair para o exterior de um tema, mas fazê-lo variar a partir de um fora que lhe é imanente. Entre a variação e o tema se estabelece uma relação que não é de cópia ou imitação, pois se trata de uma relação assimétrica, na qual a variação, como repetição, produz uma diferença em relação à diferença que constitui o tema. É por isso que uma variação de um tema nasce a partir de uma dramatização espaço-temporal que a torna um acontecimento que nunca acontece duas vezes igual. Disso sabem Coltrane, Charlie Parker, Pixinguinha, Bach, Vivaldi, bem como aqueles que se sentam à mesa de um autêntico partido alto e agenciam suas vozes , singularizando-as, na polifonia contrapontística de uma kizomba. Poli-fonia: múltiplas vozes. E este múltiplo nasce dentro da voz que se singulariza, compondo-se. Somente assim , polifonicamente, uma voz tem realmente o que dizer ou o que cantar.
Cada variação é como um ser novo que nasce e, através dele, é o próprio tema que renasce. Isso vale para o barroco, para o jazz , para o chorinho, para o partido alto e para a própria vida. Os grandes músicos nos mostram que a variação de um tema não é um mero tocar ao acaso, tampouco o reproduzir passivo de um tema. O tema não é uma forma Exata, da qual a variação seria uma inexatidão refém da contingência. O tema e sua variação são as duas metades de um anexato como obra em processo, afirmando a si mesma. Um tema é passível de incontáveis variações. Isto porque um tema possui uma realidade intensiva que não se pode contar ou determinar numericamente. Por isso, um tema é sempre novo a cada variação que o afirma : cada variação afirma a si mesma ao mesmo tempo em que produz a variação do tema.
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