No poema “Invenção” ( 2010b, p. 151), o poeta dialoga com um menino que nasceu do seu lápis: "inventei um menino levado da breca para me ser", diz o poeta, "passarinhos botavam primaveras em suas palavras", "(...) ao fim me falou que ele não fora inventado por esse cara poeta/ porque fui eu que inventei ele" . O "eu” deste último verso não é um eu lírico, ele é um sujeito coletivo como lugar da invenção.Ele é o “eu” do menino que o poeta inventou para (re) inventá-lo, empoemá-lo ( 1989), enfim, para terapeutá-lo ( 1996).Há um elo ,uma distância mínima, um hífen entre o poeta e o menino. Tal distância não é a do julgamento, não é a distância do afastamento; trata-se de uma distância que possibilita o afeto, o contágio, o ser tocado: é a distância intensiva de quem , como o poeta, "escreve com o corpo" ( 1992, p. 212).
O menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve” ( 2010b, p.147). O menino que inventa o poeta se torna um intercessor: “A liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças"( 2010d, p.469) , como exercício de ser criança ( 1999).
A distância mínima que possibilita a invenção não pode ser medida com régua: ela é a origem, a fonte, que está sempre no meio, como espaço de comunhão, de “imitagem”. Processo semelhante experimentou Clarice: “Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco” (LISPECTOR, 1984, p11). Talvez nosso poeta experimentasse algo parecido quando afirmou: “Nossa linguagem não tem função explicativa, só brincativa” (2011). Entre o menino e o poeta há uma distância mínima onde ocorre um contágio, um afeto , uma transubstanciação (1992, p320), uma epifania, um devir-criança, enfim. Este intervalo não é um espaço vazio, ele é o lugar das “raízes crianceiras” ( 2010b, p 187).
Na natureza há dois tipos de raízes: as arborescentes e as rizomáticas (DELEUZE E GUATTARI,1980). As primeiras possuem raízes fixas, ao passo que as segundas são constituídas por raízes que se movem, e que fazem da planta um autêntico andarilho, um Andaleço de espaços lisos de itinerâncias. Filosofias ortodoxas sempre fizeram da árvore um modelo ideal de sistema: raízes fincadas em um solo fixo ( seja este solo a Razão ou Deus), um tronco rígido , a Física, ligando as raízes aos diversos galhos, que são as disciplinas sustentadas dogmaticamente pelo tronco. Descartes, o racionalista, é o exemplo mais célebre de uma filosofia arborescente. Em Deleuze e Guattari, diferentemente, as formações rizomáticas inspiram uma pop’filosofia ( DELEUZE E GUATTARI,1980 ). O rizoma é constituído por raízes formando uma multitudo, um espaço sem centro, uma anarquia coroada. O rizoma não é uma semente, um fruto ou uma flor. Ele é uma raiz que brota de si como se fosse uma semente, ele guarda em si sua continuidade à maneira de um fruto, ele desabrocha para fora como só faz uma flor.Ele é sua própria semente, fruto e flor, sem deixar de ser raiz.Ele é plenamente raiz, e como tal o rizoma cresce. Enquanto no modelo arborescente as disciplinas são compartimentadas e segmentadas, o rizoma inspira uma produção de conhecimento trans e interdisciplinar.A essência do rizoma é se expandir: expandir-se como raiz, sem para tal necessitar de semente, fruto ou flor.Os rizomas são plantas sem “existidura de limites” ,tal como a matéria da poesia de Manoel de Barros. São plantas de conectividade, agenciamento, encontros, afetos. Como em Manoel de Barros, os rizomas são as raízes crianceiras , são as raízes da invenção.
Referências
- Obras de Manoel de Barros consultadas:
Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda edição).
Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org. Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.
Outras referências:
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.
BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica em Manoel de Barros. Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.
CAVALCANTI,Ana Símbolo e alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo : Annablume, 2005
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.
_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.
_____________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.
LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.
PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2006.
RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.
SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.
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