terça-feira, 28 de outubro de 2014

o que é o comum?

O comum é aquilo que é igual tanto no todo quanto nas partes.É Espinosa que nos fornece essa definição.O comum não nasce da mera associação de indivíduos. Estes somente se associam mediante um contrato, contrato este que eles são obrigados a seguir, pois o descumprimento do mesmo pode acarretar alguma sanção ou prejuízo.  O pressuposto dos contratos é a primazia do indivíduo.
O comum não nasce de contratos ou receio de prejuízos.Quando nasce um comum, cada indivíduo se torna parte do comum que os agencia. Equivocadamente, sempre imaginamos o todo como um conjunto fechado.E dentro dele imaginamos seus componentes.O todo seria o continente e os componentes seriam o conteúdo.Imaginamos ainda que apenas os componentes estabelecem relações, e que o todo-conjunto sempre permaneceria o mesmo, independentemente das relações de seus componentes.Imaginamos até mesmo um conjunto vazio, sem componentes.Mas nada disso traduz o que Espinosa chama de comum.O comum não existe como um conjunto . O comum nasce das relações: ele é a própria relação.Os contornos de um comum vão até onde alcança o nosso poder de agir e de pensar.O conhecimento, por exemplo, é como uma gaiola que nos encerra em padrões imutáveis existindo em limites delimitados ou é algo que nos amplia?Ampliar-se pelo conhecimento não é aumentar o tamanho físico de nosso corpo, tampouco aumentar a extensão das coisas que podemos dizer nossas, como propriedades privadas; o conhecimento nos amplia pelas conexões que ele nos possibilita, tornando-nos  partes de infinitas coisas: parte da pólis, parte do planeta, parte da noosfera, parte do infinito, parte das descobertas que nós mesmos fazemos, enfim,parte do conhecimento mesmo que nos amplia.
A amizade nasce de um contrato? O amor se mantém por um contrato? E mesmo a justiça, ela é garantida apenas pelos contratos?Amizade, amor, justiça, conhecimento...são noções comuns. São várias as causas que fazem nascer o comum, mas a mais forte é a alegria.Ao contrário,muitas relações tristes somente se mantêm pelos contratos que as obriga.
 Para Espinosa, a alegria é um aumento do nosso poder de agir, do nosso poder de existir. Assim, o comum não nasce para nos limitar, tal como o contrato, mas para nos expandir.Há uma dimensão do afeto na instituição do comum. E destruir o comum é destruir parte de nós mesmos.O comum nasce do agencimento, não da associação ou união.
O comum não nasce no exterior dos indivíduos , assim como os contratos que dependem do Estado e de suas polícias; o comum nasce na imanência dos indivíduos, em seus desejos.
Segundo Espinosa, o todo é maior que a mera soma de suas partes. Assim, quanto mais afirmamos o comum, mais existimos nele, ele que sempre nos aumenta. Mas o comum não existe apenas nele ou nas partes, ele existe tanto nele quanto nas partes. Por exemplo, o conhecimento como o comum que liga professor e alunos não existe apenas nele mesmo, como um céu inatingível, tampouco existe apenas no professor; o conhecimento existe nele mesmo, no professor e também no aluno. O conhecimento não existe apenas naquele que ensina, ele existe também naquele que aprende; e mesmo aquele que ensina, enquanto parte do conhecimento, aprende também com o ensino enquanto todo que é mais do que ele. O comum não é um território com cercas delimitadas, ele é um  processo: nele há lugar para a invenção,invenção do conhecimento e de nós mesmos.
A amizade que une Pedro e Paulo não está apenas em Pedro ou em Paulo, está em ambos e mais na própria amizade enquanto ideia comum que os torna amigos.Pedro é parte de Paulo enquanto ambos são partes da amizade, pois o comum não existe sem partes.Um conjunto pode existir sem componentes, como conjunto vazio, mas não pode existir amizade sem amigos, amor sem amantes, ensino sem professor e aluno.
O amor que liga Pedro e Maria não está apenas em Pedro ou em Maria, mas está em ambos enquanto eles são partes, partes singulares,do amor que os agencia. Pedro não ama Maria por obrigação e nem mantém o laço por obrigação, a não ser que reduzamos o amor a um contrato, inclusive um contrato apenas moral.
Não se deve confundir indivíduo e singularidade.Por se oporem como átomos isolados, os indivíduos somente se unem mediante contratos que eles realizam por suas respectivas vontades.A primazia do indivíduo o faz existir como um todo à parte: onda sem mar,mão sem braço,nuvem sem céu, fruto sem árvore.Mas somente quando produz o comum que também o produz, o indivíduo devém singularidade, pois é somente como parte de um comum  que podemos nos singularizar.Singularizar-se não é enrijecer nossos contornos de acordo com uma identidade,mas descobrir que são as relações que nos constituem também intimamente.E toda relação que singulariza é composta de três, e não de dois. Ela é constituída por aqueles que se agenciam e mais o comum que dá sentido ao agenciamento.
Quando entre os indivíduos não existe um comum que os agencia, eles passarão a existir de tal forma que um quererá impor ao outro a sua maneira de ser, o que dará nascimento a esperança de reconhecimento por mero reconhecimento e medo de rejeição, o que acaba por fomentar ódios recíprocos, mantidos ocultamente ou explicitamente.
O comum não é o mero consenso nascido da semelhança da opinião de indivíduos.O comum é a criação de um terceiro indivíduo do qual me torno parte, não como indivíduo, mas como singularidade.Ou seja, produzimos o comum enquanto potencializamos nossa diferença.Pois potencializo minha diferença quando a faço parte, parte ativa, de uma diferença ainda maior.Somente as diferenças se agenciam : na e pela diferença.São as diferenças que nos assemelham, não a identidade.É uma ilusão profunda imaginar que existe uma ideia geral de amizade, uma ideia geral do amor, uma ideia geral do ensino, que passarão a ser impostas então como padrão ou modelo.O comum não é uma ideia geral.Assim, existem mil maneiras diferentes de se produzir a amizade, o amor, o conhecimento....Um museu produz uma ideia de conhecimento totalmente diferente da escola formal.Mas entre o museu e a escola existe ainda um comum: o conhecimento como ideia plural que cada um realiza de forma diferente.O comum não é paradigmático, ele é sintagmático.
O comum não é um mero efeito, ele é causa: a amizade nos torna amigos, o conhecimento nos torna agentes do conhecimento ( não só o professor é agente, o aluno também o é). O comum não o é apenas em relação a almas, ele também envolve os corpos. Nasce não apenas uma alma comum entre os amigos, nasce igualmente um corpo comum, corpo que não é apenas fisiológico ou orgânico, mas corpo afetivo, qualitativo e intensivo.É um corpo onde ambos se apoiam para agir.

O corpo tem por virtude a ação. Assim, um amigo é aquele que podemos reconhecer pelas ações, assim como se reconhece pelas ações um professor e um aluno, desde que também exista a educação como o comum que também liga suas almas. O comum não concerne apenas à alma ou ao corpo, mas aos dois. 

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