quinta-feira, 2 de outubro de 2014

a língua das mariposas




Para brilhar e ter luz própria 
é preciso ter caos dentro de si.
Nietzsche

Segundo Espinosa, a pior fase da vida é a infância. Isso acontece não por algum problema intrínseco a essa fase. Na verdade, essa fase é difícil por que é nela que mais dependemos das coisas e seres que nos vêm de fora. Mais especificamente, essa fase é aquela na qual a criança mais depende da qualidade dos adultos que a cercam.Não é apenas fisicamente que a criança não pode fugir dos maus encontros , psiquicamente também ela está indefesa. 
"Criança"= "aquele que crê". O pior da infância é que, nela, somos pura crença, a crença no seu estado mais impoluto. É por isso que essa fase é a da inocência.O inocente é, sobretudo, aquele que crê.Enquanto na criança a inocência é sua condição vivente, no homem que se instrui , desenvolve sua inteligência e obtém poder a inocência é o estado mais difícil para  ele alcançar.Os homens da inteligência, como Descartes, consideram mais racional a dúvida.Os homens da inteligência não brincam, embora apreciem jogar, sobretudo xadrez.A inteligência converte tudo em jogo de xadrez, mesmo quando se trata de amar.O xadrez é o jogo símbolo da inteligência: solitariamente, entregue aos seus solilóquios de cálculo e artimanha, o homem da inteligência almeja derrotar o outro.Todos já devem ter notado isto:os que jogam xadrez ficam sérios, circunspectos, graves. Eles estão em guerra, em litígio, em competição.Ganhar é derrotar o outro.
"Crer" e "criar" provêm de um mesmo termo latino: "creare". Assim , criar é uma forma de crer. Ninguém mais do que a criança cria,inventa, pois ninguém mais do que ela crê. Para ela, não há realidade que não seja inventada, como para o poeta; "tudo o que não invento é falso".
Não se deve confundir inocência com ingenuidade. Os ingênuos creem em tolices. As tolices são as verdades do momento, como os aparelhos de último tipo que amanhã já serão sucata.Mas o que é verdadeiramente novo, diz o poeta, "nunca vira sucata".
O filme espanhol "A língua das mariposas" narra , entre outras coisas, a relação íntima entre o criar, o crer, a inocência e a educação.Em espanhol, "mariposa" é o termo correspondente a "borboleta". Por isso, o título mais adequado seria "A língua das borboletas".As borboletas, seres que voam, nasceram de seres que rastejam:"nas miudezas do chão foram encontradas as origens do voo"( Manoel de Barros). Nas borboletas, a língua é um fio, como o de Ariadne, que fica enrolado e imperceptível. Assim é, no homem, a sua sensibilidade: um fio que poderia libertá-lo dos labirintos que ele mesmo constroi e  nos quais muitas vezes se perde, quando não crê na potência da sensibilidade, na potência do inútil, do gratuito e da inocência.Entre perdoar um culpado ou crucificar um inocente a história nos mostra que poucos homens do poder e da inteligência escolheriam a primeira opção, pois lhes parece que ser alguém inocente é sempre uma presunção  filosófica, ao passo que ser alguém culpado é uma evidência pragmática. Todavia, e este é mais um caso em que Freud parece ter razão, tais homens na verdade medem os outros com sua própria régua.A inteligência cria os labirintos dos quais só a sensibilidade pode nos salvar. "Salvar" não como "salvação", mas como "salut", saúde.
Entretanto, a língua somente se desenrola na singularidade de um encontro: é diante do néctar que a língua da borboleta deixa de ser língua para se tornar meio de exploração e instrumento de afirmação de uma vida que ousou voar. Engana-se quem se fia na aparente fragilidade das borboletas: sabe-se que elas são capazes de viajar milhares de quilômetros atrás das flores que contém o melhor néctar, assim como o poeta , ao se desterritorializar, sem bússola e parapeito,  aprende a se alimentar do  néctar que produziu Homero, Hesíodo, Proust, Lima Barreto, Cartola...E mesmo "As flores do mal" têm seu néctar.O néctar é o sentido que une afeto e ideia, corpo e espírito.Borboletas e poetas não sobrevivem onde apenas se vê o nu e homogêneo cimento, embora seja neste que o objetivista crê erguer suas evidências.
É na singularidade do encontro, do bom encontro, que a sensibilidade se une ao pensar para dessa forma ampliar aquilo que somos e podemos ser, se coragem tivermos.












2 comentários:

João disse...

Um dos meus filmes prediletos! A primeira vez que assisti foi numa de suas aulas de Filosofia. Coragem para todos nós!
Forte abraço, João

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Obrigado, João!
Abraços,