Alvaiade
Erguer-se... como se ergue
a aurora do seio da noite.
Homero, Ilíada.
Há
um livro de Nietzsche intitulado “Aurora”.Talvez seja um dos títulos mais belos
já dados a um livro.A aurora não é mais
a madrugada,a alta madrugada insone, mas também ainda não é o dia, a manhã do
despertar. A aurora é um limiar,uma fronteira.A aurora é um começo que começa antes que o dia comece.As manhãs nascem,os dias começam. Mas a aurora é recomeço.Não o recomeço do dia que atrás dela finda, e sim recomeço de haver sempre o começo de um dia novo,nunca antes vivido.A aurora está entre o que se viveu e o que se viverá , e a ambos vivemos enquanto dura o Viver da aurora.
Ninguém
consegue determinar quando a aurora começa, a aurora não tem horário. Diz-se “cinco
da madrugada”, “seis da manhã”...Mas a que horas começa a aurora? Em qual ela
termina?Será que a aurora não tem começo e fim, apenas meio?
Quando
ela desponta,porém, sentimos a presença do novo. Isto é a aurora:o novo dia que
já se mostra antes mesmo da manhã estar clara.A aurora nos pede olhos que não
são os do despertar.Os olhos do despertar nascem quando se abrem os olhos que
estavam dormindo.Já os olhos que vêem a aurora se tornam aurora também.Este é o
poder da aurora:quem por ela se afeta se torna aurora também.O mundo que os
olhos da lagarta vêem não é o mesmo que verão os olhos da borboleta: os mundos mudarão porque mudarão,antes,os olhos. É no interior
do casulo que se fabrica a aurora dessa nova visão e,com ela, um mundo novo. A
aurora não é mais a promessa da obra , ela é a obra que se inicia.A aurora
desfaz todos os monstros com os quais a noite zombou de nós.A aurora não é a
nitidez da ideia clara,lógica, ela é a intuição poética do que nos desperta o
pensar.A aurora é o embrião,o feto, o sujeito
larvar que já vive antes das horas nas quais a ciência encontra seus objetos
e métodos.
A
aurora surge no horizonte, ela é o começo como horizonte.É belo ver as
estrelas na abóbada escura e verticalmente alta, mas o que dizer da visão da
aurora? Ver a aurora é abrir-se para uma visão que nos horizonta.
Algumas
pequenas multidões se reúnem para ver o sol morrer ao fim da tarde, e para tal
espetáculo batem palmas. Mas a aurora se dá em silêncio, e quem a vê não olha
só para fora. Muitos vivem atarefados com seus dias, outros se anestesiam em
suas noites. Mas quem já viveu a sua aurora?
A
filosofia teve sua aurora. Nesta aurora ela se mostrou como poesia, pois era
poeticamente que pensavam os pré-socráticos. Depois, veio a manhã da filosofia: a Grécia
Clássica de Platão e Aristóteles.Todavia, a luz clara, apolínea, esqueceu-se da aurora dionisíaca de que nasceu.O meio-dia da filosofia adveio com o sol da
razão a pino: tal foi o Iluminismo. Mas este também passou: veio a noite, uma
noite como epílogo, fim.Essa noite filosófica, noite das ideias, coincidia com o inicio da sociedade
desencantada, burguesa,filisteia,utilitária. A esta noite-fim,a esta noite-ocaso,
não se seguiria uma aurora. Seguiram-se duas guerras mundiais e mais a ameaça
de uma terceira, a derradeira. Talvez por isso que Hegel, o filósofo que escreveu sob tal
noite, teria dito que a filosofia deveria ser como a coruja que vê e voa , apesar do escuro.A
coruja tem olhos para ver na escuridão.
Contudo, essa visão histórica ,que culmina com
a noite,advém da ideia de que a aurora termina quando começa a manhã, como se a
finalidade da aurora fosse morrer para que nascesse a manhã.Nascida a manhã
onde a razão tem sua vigília, desapareceria o mundo onírico , mundo das Musas,
que o antecedeu.O erro da história,o seu “mais longo erro”, é começar sempre da
manhã, pois lhe faltam olhos para ver a aurora.Os olhos que vêem a aurora são
os “olhos de descobrir”, a visão que a capta é a “visão fontana”.
Todavia,
a aurora não está no passado: ela é o futuro, o futuro que já começa.A aurora é
o virtual que se atualiza. Se imaginarmos que a aurora está no começo enquanto mero passado, nos
desesperaremos com a noite-fim, com a noite-angústia, com a noite-morte. Mas se
compreendermos ,como Nietzsche compreendeu, que a aurora é futuro, a veremos
como aquilo que desfaz a noite, inclusive a terrível noite de uma época que se
imagina não precisar mais de auroras, pois se compraz com os crepúsculos e
outras derrisões.
Concebida como advento do futuro, a aurora se transforma na terra natal que está na origem. Como diz Manoel de
Barros,”quem se aproxima da origem se renova”. A origem não está no passado, a
origem do dia novo é a aurora como dimensão da terra natal. “Natal” diz respeito
ao nascimento.O natal não é o "inato".O racionalista Descartes acreditava que as ideias nos são inatas, pois já nasceríamos com elas.O inato seria aquilo com o qual já nascemos,ao passo que o natal,segundo Deleuze, é onde nascemos, ele é o que nos faz nascer: ele está tanto dentro quanto fora.As ideias inatas já existiriam prontas,elas não nascem.Já o natal nasce junto com aquilo que dele nasce,ele que nunca deixa de nascer enquanto o experimentarmos como a aurora que nos faz aurora de nós mesmos. A aurora é a terra natal , ela é o “minadouro” de sentidos, ela é “forma
em rascunho”.
O futuro assim concebido não é um mero presente que virá, para assim virar passado, mas a compreensão de que sempre haverá outro tempo que virá, não importando o quão interminável seja este tempo presente aparentemente sem futuro. Assim como a aurora antecede a manhã, é este futuro que nunca será dado, mas criado, que antecede todo presente dado. É a aurora que nos ensina: para os que criam e inventam,é o futuro que vem antes, não o passado. Como escreve Manoel:"A percepção vê, a memória revê, a imaginação poética transvê", isto porque ela é a aurora do mundo que vê.
O futuro assim concebido não é um mero presente que virá, para assim virar passado, mas a compreensão de que sempre haverá outro tempo que virá, não importando o quão interminável seja este tempo presente aparentemente sem futuro. Assim como a aurora antecede a manhã, é este futuro que nunca será dado, mas criado, que antecede todo presente dado. É a aurora que nos ensina: para os que criam e inventam,é o futuro que vem antes, não o passado. Como escreve Manoel:"A percepção vê, a memória revê, a imaginação poética transvê", isto porque ela é a aurora do mundo que vê.
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