domingo, 15 de junho de 2014

o futebol antifascista






“Filho mais velho não pode ter medo”. Quando criança,  ouvi isso de meus pais. “Você tem que ser exemplo para seus irmãos menores”. Eu puxava a fila. Atrás de mim,quatro irmãos. Todos pequenininhos e que iam cantando e brincando atrás de mim,eu também pequeno.Eles nem olhavam para onde iam, pois sabiam que eu olhava, e que tinha que olhar, embora eu também brincando,mas atento ao que poderia pôr a brincadeira em risco. Em tudo tive que ir à frente,muitas vezes sem ter meus pais à frente abrindo o caminho.
 Porém, com seis para sete anos uma amizade me fez experimentar o inverso do que até então eu conhecia.Na verdade, essa amizade foi a primeira que fiz em minha vida.  Ele se chamava Edinho e era cerca de 4 anos mais velho que eu. Ele não  era apenas  meu melhor amigo, ele era também o  irmão que eu escolhi para ter. O irmão mais velho do irmão mais velho.Ele era um grande garoto, e não apenas eu gostava dele. Ele também tinha vários irmãos.Ou melhor,irmãs.Ele era o filho do meio entre quatro irmãs. Então, eu era para ele o irmão mais novo que ele queria ter. Sobretudo para jogar bola, Edinho era louco por futebol . Como ele foi meu primeiro amigo e, até certo ponto,herói, eu aprendi dele esse afeto, esse gosto pela bola. Só havia um problema:Edinho era botafoguense. Meu pai era flamenguista roxo. Creio que era nesse único ponto que meu pai temia minha amizade com aquele garoto. Ainda mais porque eu já começava a me dizer botafogo. Ganhei até uma camisa desse time (dada, é claro,pelo Edinho).Houve uma vez em que o botafogo ganhou de 6x0 do flamengo. Ali,pensava eu, virei botafogo totalmente, e era isso  algo irreversível, como um fato da natureza.
Até que meu pai me chamou para ir ao maracanã,o velho maracanã( naquela época nem tão velho...). Fomos assistir a  um flamengo e bonsucesso, se não me falha a memória.Àquela época, os times do subúrbio tinham boas equipes.
 O maracanã estava cheio:40 mil pessoas, no mínimo. E isto para ver um flamengo e  bonsucesso...Vejam bem :bonsucesso.Um bairro que hoje só aparece nos jornais nas páginas policiais, e isto quando aparece.
O jogo não estava fácil.O primeiro tempo terminou 0x0. O que mais me chamou a atenção no jogo ,além dos doces e guloseimas que passavam nas mãos dos vendedores, era a destreza e agilidade do goleiro do bonsucesso. Um grande goleiro.Um acrobata.Infelizmente, não lembro o nome dele. Começou o segundo  tempo. E eu, cada vez mais botafogo.O jogo continuava difícil. A torcida ,impaciente.
Até que aos 15minutos dessa etapa complementar começou a se aquecer um jogador do flamengo. Ele era muito jovem,um garoto.Ele se aquecia ao lado do campo.Enfim , o garoto se preparava  para  entrar.Foi então que meu pai me disse algo em um tom de ordem,tom este  que não era muito comum ouvir de sua boca. Ele me disse: “meu filho, não tire os olhos desse garoto....”. Eu nada disse ,  apenas confrontei mentalmente a frase que ouvi do meu pai com a imagem que meus olhos viam, e não conseguia ver sentido naquela ordem, ainda que cheia de esperanças.Sim, havia nas palavras do meu pai uma expectativa,como se ele tivesse me trazido ali para ver aquele momento. Contudo, a imagem que eu via era uma decepção:o garoto era magrinho,franzino mesmo,o uniforme o engolia, literalmente. E ainda por cima, pensei comigo, “ele é loirinho! O flamengo nunca teve jogador bom loirinho....”
 Até que o garoto tocou na  bola.Foi um simples toque,uma dominada, e o mundo passou a ter outro sentido. Uma qualidade não se explica pelo acúmulo de quantidades. Se a sopa é ruim, ela não melhora com o acúmulo de colheradas. Mas se a sopa é boa,uma simples colherinha dela que provemos  já nos faz sentir que ela é boa, pois o bom está na qualidade, e a qualidade nada tem a ver com a quantidade, desde que se tenha gosto para sentir. Então,neste primeiro toque já se pôde ver a qualidade que ele tinha.Ele depois ergueu a cabeça como um rei e  fez um lançamento.Que lançamento!... Ele havia antevisto algo que ninguém viu.Ele anteviu o acontecimento em sua virtualidade. Ele jogava também nesse outro plano no qual só existem ideias e imaginações, e estas se conjugam para entrarem no espaço-tempo sob a forma de um movimento plástico que o corpo inventa, surpreende,emociona,vence. O corpo se torna o pincel,  o  instrumento de uma  criação plástica que foi antevista pelos olhos do espírito conjugados com os olhos do corpo."E ninguém sabe o que pode um corpo", ensina Espinosa. Víamos um artista criando, e o campo era sua oficina, seu ateliê.Aquele garoto me fez ver que ali havia uma forma de arte que aperfeiçoava o esporte.Logo depois ele mesmo fez um segundo gol  e nos deu a vitória. Sim, eu já falava “nós” e não mais “eles” ao pensar no flamengo.
Esse garoto me fez esquecer as habilidades acrobáticas do jogador do bonsucesso. Ele me fez  esquecer também meu colega Edinho e seu botafogo...O nome desse jogador ainda garoto era Artur,o mesmo nome do rei  protagonista de fantásticas narrativas criativas ,mais do que de guerras sangrentas .Mas todos já começavam a chamá-lo por um nome simples,como simples  é todo grande. Chamavam-no simplesmente Zico. Aquele foi um dos primeiros jogos profissionais dele. Como meu pai freqüentava  muito o maracanã, já o tinha visto jogar em alguma preliminar. Sai do maracanã olhando as cores vermelho e preto com olhos diferentes.Ao fim do jogo, retornava o povo às ruas,cantando.
E enquanto meu pai me conduzia pelas mãos na saída, eu olhava para ele e,em silêncio,dizia para mim mesmo: “Meu pai sabe tudo...”Eu estava convertido.Não apenas  ao flamengo, mas à arte que um artista , o Zico, mostrou.Esse aspecto do futebol não aliena.Ao contrário, singulariza, potencializa.

Baudelaire dizia: “Seja um poeta, mesmo em prosa”.Zico ampliou esse idéia,e nos  ensinou; “seja um artista,mesmo com a bola”. Essa arte que o futebol pode ser é um elemento da nossa cultura,mais do que um simples esporte. Tal arte expressa o nosso mais genuíno patrimônio: a criatividade.E essa arte nada tem a ver com FIFA,com copa, com corrupção. Confundir essas duas coisas é mortal, e não apenas para o futebol, como para a própria ação que se pretende política, pois se estaria confundindo a potência ( potentia) com o poder ( potesta).


























2 comentários:

João disse...

Bonita essa história, Elton! Não à toa o Zico é ídolo de todas as torcidas. Se em vez de artista fosse um soldado, ainda que um general, do time multicampeão, era bem diferente.

Elton Luiz Leite de Souza disse...

E tudo isso aconteceu mesmo...
Um abraço,