O excesso de ciência,
tanto quanto o de ignorância,
desemboca em negação.
Balzac
Na ciência, a experiência é considerada
como um pequeno momento de “abertura” à realidade, realidade esta que se quer
conhecer e determinar. Nessa abertura, nesse “encontro”, a razão procura confirmar suas
hipóteses,hipóteses estas que ela cerziu e matutou em seus silolóquios consigo
mesma, ávida por desfazer suas dúvidas : ela tem a pretensão, a racional pretensão, de erigir certezas, regularidades , evidências,
leis,isto é, um mundo controlável,previsível,dominável,enfim, “desencantado”.
Na filosofia e nas artes,não se procede
por “experiência”, e sim por experimentação. A experimentação é o acontecimento que abre o pensamento àquilo que não pode ser circunscrito,
limitado, cercado.A experimentação descobre uma forma muito singular de
encantamento.
A experimentação é abertura radical ao encontro. A
experimentação cura o pensamento de sua loucura por hipóteses e interpretações a priori . A vida não
é uma hipótese,ela é uma matéria a experimentar e inventar. A experimentação não
é apenas um momento de abertura; diferentemente,ela é abertura que não pode ser medida por momentos,por mais
longos que sejam do ponto de vista do relógio: a experimentação dura intensamente
como afeto pelo incomensurável,posto que infinito. Ela é visão intuitiva da paisagem absoluta.
A experiência científica pode ser produzida e reproduzida em laboratórios,sempre
ao redor de um objeto; ela pode ser suscitada em um ambiente artificial , ou
acadêmico, passível de controle,visando minorar os riscos, as decepções,os
insucessos, as perdas. Já a experimentação poética,tal como o terceiro gênero
de conhecimento de Espinosa, prescinde de objeto, faz-nos agentes. Tudo pode ser
laboratório para ela: a perda,o insucesso, a dor, o cotidiano, o risco...mas
também a alegria,o amor, a coragem...A experimentação poética não existe para
confirmar fórmulas,mas para dar sempre nova forma ao informulável,ao
impensável,ao sublime.
Na filosofia se diz “anipotético” o que existe para além de
toda hipótese ou dúvida. Não se atinge o anipotético fazendo proliferar as hipóteses sobre ele.Como
ensina Bergson, as hipóteses se acercam do objeto, circundam-no,medem-no, mas
nunca entram, de um salto, em seu interior,ao passo que o anipotético constitui
o íntimo do ser do qual o objeto é só um invólucro. As hipóteses,ou as
dúvidas,não são escadas para se atingir o anipotético, assim como não é subindo
incontáveis degraus de uma escada que,chegando lá encima , se aprenderá a voar .Aliás,os
degraus da dúvida são sempre de descida ou subida, vez que conduzem ao cético pragmatismo ou ao ascético idealismo; mas
o voar,sobretudo o “voar fora da asa”, começa
sempre no chão,assim como a experimentação se inicia no horizontal desejo, e não na vertical razão.
O anipotético não existe para
desfazer as hipóteses, assim como a luz
não existe para negar a escuridão,mas para afirmar a ela mesma: é afirmando a
si mesma que a luz já desfaz a escuridão . Não é negando esta
última que a luz afirma o que ela já é,pois
se assim fosse, teríamos que supor que a escuridão existe tal como existe a
luz.Mas a escuridão é tão somente a ausência da luz; logo, a luz não existe
para negar sua ausência,mas para afirmar sua presença. Nesses assuntos, diz
Espinosa,não há debate ou persuasão: basta abrir os olhos para ver,sobretudo os
olhos do espírito.O que vale para a luz, vale para o conhecimento: este não é
um negar a ignorância,mas o afirmar a si mesmo como aquilo que desfaz toda ignorância,sobretudo a ignorância de um
conhecimento apenas hipotético.
O anipotético não vem depois de
esgotarmos as hipóteses,ele vem antes, assim como o dia vem antes da noite,pois
a noite , a noite poeticamente experimentada, pode ser o momento no qual ligamos a Terra à luz dos infindáveis dias que se
irradiam de cada distante estrela que vemos no céu, pois cada uma delas é um
sol que só conhece dia, o dia que ela mesmo produz. Sol e estrela são dois
nomes pelo qual atende o mesmo acontecimento ao mesmo tempo físico e espiritual,
corpo e idéia.
Dessa maneira, o dia assim
polifonicamente experimentado ,dia este
do qual o do nosso sol é uma expressão finita , este Dia infinito e multifacetado não é aquele que passa junto com as horas e se opõe à noite, como Apolo a Dioniso;
diferentemente, este Dia poeticamente multiplicado por sóis inumeráveis é o do carpe
diem : dia ilimitado , agenciamento
de Dioniso-Apolo. Este Dia pode ser experimentado em cada dia , fendendo os
limites deste, e nos deixando ver sua potência
e forma sem limites,sem contornos,posto
que em processo,”fontanamente”, como diria Manoel de Barros.Assim
experimentado, cada parte desse Dia é sempre uma Aurora,
como dizia Nietzsche.
O Cristo de Espinosa é expressão amorosa
desse Dia, desses infinitos dias que mesmo
sob a noite se pode ver , desde que não faça noite na alma que olha, pois é
desta última noite que se vale Mefistófeles em seus serviços sempre noturnos,mesmo que oferecidos em pleno meio-dia.Só há noite na alma que odeia.
É o anipotético que é primeiro, não o
hipotético. A verdade que a ciência hipotética alcança sempre vem depois da
dúvida, depois da crítica. A “verdade” anipotética é idêntica à experimentação
, ela é inseparável do sentido que a expressa e afirma ( que, além de crítico,
é também clínico). Há sempre uma angústia que acompanha os seres que creem nas hipóteses e na precedência da dúvida em relação à verdade, da escuridão em relação à luz. Mas nem sempre esta verdade alcançada pelo racionalista se torna apta para curar suas angústias: não raro, as aumenta, para o deleite e préstimos de Mefistófeles.
O conhecimento do anipotético é inseparável de uma experimentação poética da qual nasce um afeto de alegria que não duvida de si mesma,por mais simples,discreta e modesta que seja.
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