Manoel de Barros
A água pode apagar o fogo. Mas a
água não existe com a finalidade de apagar o fogo. Basta ela existir como água,
basta ela ser o que é, para o encontro dela com o fogo destruir este último.Esta
destruição de uma outra existência, que nasce da simples afirmação de si próprio, nada tem a ver,contudo,com um ódio: o teria se
imaginássemos que ela o destrói por alguma finalidade, o que resultaria em
considerar a água como boa e o fogo como mau. A água é: é sendo água que dela
resultam certos efeitos, como o matar a sede, o apagar o fogo, etc. Estes efeitos se explicam pela essência da água, pela sua maneira de ser.A água não
escolheu ser água: ela simplesmente o é e se esforça para continuar sendo.Disto procede sua alegria
e júbilo.Alegria e júbilo de água que ama ser o que é, e que ,portanto,não
sente a menor falta ou carência de ser outra coisa,mesmo o ouro.Sendo água,
sendo o que já é, a água já é livre, e seria um absurdo supô-la querer ser
outra coisa; ou já sendo água,querer no entanto ainda sê-lo. A água não existe como
um todo à parte, ela existe como parte de um todo que não é apenas água, pois é também fogo.
O que vale para água vale igualmente
para tudo o que existe,incluindo o homem. O homem não pode escolher ser um
homem, pois ele já o é antes de toda escolha.Ele pode, sim, escolher ser um
lobo, ou uma hiena,ou uma cascavel, e imitar o comportamento destes seres,
sendo ainda um homem. Mas a escolha por ser tais coisas não o torna tais seres,
e sim o diminui enquanto homem, embora ele imagine que o aumente.O homem livre
não escolhe ser homem, ele simplesmente afirma o ser que já é:ele se afirma
como maneira ou modo do ser que não é apenas homem, pois também é a cascavel,o
lobo , a hiena, mas não como tais seres são quando os quer imitar um homem que
ignora o que é ser homem.
O "querer" é uma atividade da vontade,
e esta faculdade se move no âmbito das escolhas. A questão da escolha introduz
o tema da "finalidade", na qual a liberdade é precedida, imaginariamente, por um ato de escolha. Mas assim como a água
não pode escolher não ser água, já o sendo, o homem também não pode escolher
ser um homem, já o sendo, já o sabendo. Este é o ponto: para escolhermos entre uma
coisa ou outra, é necessário que saibamos o que uma coisa ou outra são. É
necessário, antes de toda escolha,o pensar. Se já sei,pelo pensar, o que é um
homem, também existirei como um, pois não existe pensar autêntico separado de um
modo de vida.
A ontologia, o plano do que já se
é, antecede o da moral, que é o da escolha finalística, imaginária.E o que já
se é , o plano da ontologia, envolve sempre um grau de potência.Quando
imaginamos que o que somos,ou o que seremos, depende de um ato da vontade, isto
ocorre porque ainda não compreendemos, e experimentamos, a potência libertária
do desejo, que é sempre mais próxima ao corpo e à vida do que a vontade.Esta é instrumento
apenas da alma, ao passo que o desejo o
é do espírito e do corpo.
Quando escolhemos um caminho,
podemos depois constatar que erramos na escolha, se orgulhosos não formos. Muita teimosia pode preceder ao reconhecimento do erro. E
quanto mais poder se tem, mais o erro pode ser sustentado como se fosse acerto.
Porém, pode vir o momento, cedo ou tarde, em que as palavras, ou o dinheiro, não mais podem criar cenários que escondam o
vazio que rodeia o outrora decidido.Pode-se ter a vontade de ser muitas coisas, mas se deseja sempre o que já se é.Ter a vontade de ser algo não requer nenhum esforço: basta inteligência e imaginação; mas afirmar o desejo não se faz sem esforço ( o conatus), tal como toda obra singular que é precedida pelo esforço do treino, do exercício ( e não há menos alegria e júbilo no esforço do rascunho do que na obra pronta, pois esta é também rascunho, no infinitivo).
Quando passamos ao desejo, à
potência,já nos achamos no caminho. O caminho não precede os passos.Não se
afirma o caminho sem afirmar também os passos, sobretudo aqueles que devemos
dar com nossas próprias pernas.É um caminho, no entanto, que não se percorre
sem riscos,pois nele não existem placas de sinalização dizendo para onde
devemos ir, nem “parapeito ou baliza”, como diz Deleuze.
Os passos que o percorrem não são apenas os dados com
as pernas, pois também o pensar é um passo que também se liga aos de nossas
pernas, e pensa o rumo de ambos.Esse caminho se rascunha sem que lhe pré-existam
modelos prévios de verdade,embora ele já possua sua verdade que nunca é prévia
ao percurso, ao processo, já que é uma
verdade imanente ao pensar e agir que a engendram como aquilo que os põe de
acordo consigo mesmos, e de resto com toda a natureza.
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