Título do artigo publicado na Revista Museu: "Museologia e mitologia"
Disponível em: http://www.revistamuseu.com.br/artigos/art_.asp?id=38265
(trecho)
Introdução
"Acervo" procede de "cérvix", que significa
"cervical", e assim é chamada a nossa coluna: coluna cervical.
No corpo, a coluna cervical sustenta a cabeça.Na cabeça está não apenas o
cérebro, pois nela também estão os pensamentos,as idéias, as inquietações. Um
acervo não tem sentido em si mesmo, ele não é um fim em si : como a coluna
cervical, ele deve ser um instrumento para servir de apoio a nossas idéias,
sonhos, desejos, experimentações.É com a ajuda da coluna cervical que a cabeça
se mantém erguida, para assim olhar o horizonte, e o mesmo deve nos
proporcionar um acervo, para assim ampliar, de forma rica, nosso conhecimento.Um acervo nunca deve ser
um fim, mas sempre um meio : meio de descoberta, de
conhecimento, de potencialização.O acervo não remete apenas ao passado: do
presente ele nos interroga sobre o futuro.
A mitologia grega é patrimônio cultural imaterial da humanidade, e não
apenas patrimônio exclusivo dos gregos de outrora.Enquanto patrimônio , a
mitologia não fala apenas do passado, ela toca
em questões que concernem à humanidade de não importa qual tempo.Como
dissemos, a mitologia é um patrimônio imaterial. Como conservar o imaterial?
Todo processo de conservação almeja dar aspecto perene ao que é conservado. A
conservação é , de certo modo, uma luta contra o tempo, para assim tentar preservar uma identidade ,
uma memória.
Todavia, o imaterial não é
tangível: ele não pode ser pesado ou mensurado, tampouco pode ser guardado em
vitrine. O imaterial somente pode ser preservado quando lhe damos vida, quando
o fazemos viver. E vida é movimento, calor, afeto, espaço e tempo. A perenidade
da vida é a sua constante reinvenção.
Onde vive o imaterial?
Onde ele pode ser conservado? O imaterial vive em nossa alma, e esta nunca é
uma vitrine. A alma é sempre abertura, encontro. Dar vida ao patrimônio
cultural imaterial é , ao mesmo tempo, aumentar a vida da nossa alma, para
assim fazê-la compreender que ela é parte desse patrimônio: sem ela esse
patrimônio não vive e nem faz sentido.Por isso, "a preservação do
patrimônio imaterial implica uma re-criação permanente"( Convenção
da UNESCO para a salvaguarda do patrimônio imaterial, aprovada em outubro de
2003).A essência do patrimônio imaterial é a construção do Sentido.
Esse patrimônio de que estamos falando não
vive apenas na alma de Homero ou Hesíodo, tampouco ele reside apenas na alma
grega. Esse patrimônio somente pode viver quando despertado: quando despertado
na alma daquele que com ele entra em contato, pois preservar esse patrimônio é,
ao mesmo tempo, potencializar a alma humana. Potencializar não apenas sua
capacidade de conhecer, como também, e sobretudo, a sua potência de sentir, de
fabular, de ludicizar sua existência. E este é o sentido fundamental da
educação, da qual a educação museal é parte integrante.
A origem das Musas está
associada a um acontecimento: a experiência de uma vitória. Não qualquer
vitória, não se trata de um vencer um inimigo apenas externo, pois muitas vezes
o inimigo se encontra dentro do próprio homem. Assim, não se pode compreender
perfeitamente toda a riqueza que está contida nas Musas se não se atenta para o
fato de que elas nasceram para co-memorar, e trazer novamente à memória,
o fato de uma vitória: a vitória sobre tudo aquilo que representa a guerra, a
violência, a ignorância, a incompreensão, o ódio, a avidez. As Musas celebram a
destruição do ódio e a construção da cultura, do pensamento e da arte. As
Musas são, ao mesmo tempo, preservação e criação, memória e imaginação,
passado e futuro.
Em geral, é sempre citado
o fato de que as Musas são filhas de Mnemósyne, a Memória. Todavia, perde-se
muito do que as Musas expressam quando não se ressalta que elas também são
filhas de Zeus, que é a divindade que expressa a justiça enquanto virtude
ética. Desse modo, musealizar algo
também é um ato ético. A patrimonização é igualmente a construção de uma
consciência ética."A dimensão política do projeto museal não se manifesta
somente no nível mais elevado, aquele que envolve o Estado; pois ela se
inscreve também em um contexto sócio-cultural e econômico , local e regional, e
em relação ao qual o museu interfere".[i]
1- Certa vez as
Musas passaram por uma pequena aldeia. Uma das características das Musas é que
elas fazem cantar. De “cantar” vem “encantamento”. As Musas transformam quem as
vê. Não há quem as veja e permaneça o mesmo. Como diz o poeta Manoel de Barros:
“Outra pessoa desabre em nós”. Uma pessoa melhor, posto que mais viva,
mais intensa, reconciliada com o devir da vida, e que percebe que vida e arte
são o mesmo. Segundo o mito, as Musas
não apareciam em qualquer lugar: elas se deixavam ver apenas onde existiam
fontes, fontes já visíveis e fontes ainda por descobrir; de tal modo que
muitos, sob o poder das Musas, achavam em si mesmos fontes e nascentes que nem
suspeitavam existir.É o que parece dizer Manoel de Barros , quando afirma que
“o poeta possui uma visão fontana”,
uma visão que é fonte do que vê, pois ela não vê apenas o já conhecido, ela vê
sobretudo o que ainda é apenas rascunho, e que nasce primeiro no desejo.
Encantados por aquela
visita, os homens da aldeia começaram a cantar. Esqueceram as tristezas, as
derrotas, as decepções, as intrigas, as invejas, a cobiça; esqueceram de si
mesmos, encontraram a si mesmos, e começaram a cantar. Cantaram durante o dia e
durante a noite; durante mais um dia e outra noite; e mais outro dia...e outro...e outro...e outro...Não mais comiam
ou bebiam, nada lhes faltava. Não tinham mais carências, pretensões e
esperanças na felicidade prometida apenas para
amanhã. Pois eles já tinham tudo, e esse tudo não era uma coisa, mas um
processo, um afeto: o cantar a vida, o
cantar tudo aquilo de que ela é feita, toda a sua multiplicidade e
heterogeneidade; cantar sem motivo, sem data especial. Apenas cantar por terem
visto as Musas.
Então, aos poucos
emudeceram. Sem perceberem, forçaram um limite, transpuseram a fôrma humana.
Morreram.
Ao verem aqueles corpos
inertes, as Musas lhes concederam uma metamorfose: os transformaram em cigarras. Quem ouve as cigarras pode
sentir um pouco do encantamento que lhes gerou uma metamorfose. Ao contrário
dos passarinhos, que mesmo presos em gaiolas continuam a cantar, as cigarras
morrem se forem aprisionadas: elas somente cantam em liberdade, pois elas
cantam a liberdade. Elas cantam de graça.
As Musas sempre eram
acompanhadas pelas Graças. Estas eram três irmãs que sempre andavam de mãos
dadas, nunca ficavam sozinhas. As Graças eram a alma de toda beleza. As Graças
lembravam aos homens de que as coisas mais importantes não podem ser compradas.
Não se pode comprar uma amizade, não se pode comprar um amor, não se pode
comprar uma alegria, não se pode comprar um dom. Essas coisas ganhamos de
graça, desde que nos cultivemos para nos tornar dignos delas. Em uma conversa gratuita muitas vezes
aprendemos coisas que não conseguimos aprender quando estudamos algo de forma obrigatória. A desgraça é a ausência
da graça. Não apenas recebemos uma graça, também somos capazes de ofertá-la. E
quem mais oferta a graça mais rico fica: fica cheio da graça.
A razão profunda de um
museu ser uma instituição sem fins
lucrativos reside no fato de que ele guarda e cuida de bens que não têm preço.
Como indagam André Gob e Noémie Drouguet , "o papel econômico na gestão
dos museus atualmente não corre o risco
de o fazer perder sua alma?".[ii]
Os poetas e os artistas em
geral são essas cigarras nascidas da metamorfose de um encantamento. E é isso
que se espera de um museu : que ele seja
um lugar de encantamento e metamorfoses.
2-Na Grécia Antiga vivia Orfeu. Poeta, Orfeu cantava suas poesias,
mais do que as escrevia. E assim ele mais do que as recitava: ele as vivia.
"Orfeu" significa: "o que toca a lira", o músico que exerce
a arte da lira. A lira é um instrumento constituído por cordas singularmente diferentes, cujo tocar exige sutil percepção
das combinações heterogêneas, suas convergências e divergências.Muitos comparam
a alma à lira : assim como esta , a alma é constituída de diferentes “cordas” (
o desejo, a imaginação, a razão, a memória...), cujo tocar adequado requer um
autoconhecimento que demanda esforço e tempo.A riqueza de alma, a sua
saúde, é o seu tocar em harmonia: esta
nos protege das mil formas de loucura que podem eclodir quando nosso ser de-lira
( "delirar" é , literalmente, “sair fora da lira”, o que acontece
quando a alma, alienando-se, não consegue mais encontrar sua harmonia ).Era com
sua lira, com sua alma, que Orfeu cantava.
A palavra "poesia"
provém de "poiésis", que significa, em grego, "produção".
Sob essa perspectiva ,a palavra poesia tem um sentido bem maior do que sua
associação habitual a poemas. Para os
gregos , o termo “tekné” (de onde deriva “técnica”) também significa “produção”
ou “fabricação”. Todavia, a técnica produz coisas em razão de uma utilidade ,
com ênfase no produto ( objeto) e sua função,
ao passo que a poesia revela também o produtor ( “o quem das coisas”,
como dizia Guimarães Rosa) , seus desejos, seus sonhos, sua imaginação ( pois
tudo que o homem cria é fruto do seu desejo e está
inserido em um contexto, em um modo de vida). .A técnica é criatura do
homem,mas por vezes também se transforma em sua senhora e dona, quando o aliena
e o submete a uma visão instrumental da vida ( como o mostra Chaplin no filme Tempos
Modernos).
[i] André Gob e
Noémie Drouguet, La muséologie:
histoire, développements, enjeux actuels,Paris, Armand Colin, 2011, p. 76.
[ii] Ibid,
p. 18.
[iii]
Poema “Apontamentos”, livro: O eu profundo e os outros eus, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 2006.
[iv] ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma
psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição, p. 70.
[v]
“Polifonia” é uma ideia da arte barroca, sobretudo a música, e significa:
“múltiplas vozes”.
Outras referências:
BRANDÃO,
Junito. Mitologia grega – vol.
I. Petrópolis:Vozes, 1998.
CHAGAS, Mario. Os Museus na Sociedade Contemporânea: Um
Olhar Poético. III Encontro Regional da América Latina e Caribe-CECA/ICOM Museus
e Patrimônio Intangível - o patrimônio intangível como veículo para a ação
educacional e cultural. : FAAP, 2004, v. , p. 17-30.
GUARNIERI, Waldisa Rússio Camargo. “Exposição: texto
museológico e o contexto cultural”, Waldisa
Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional
/ Org. Maria Cristina Oliveira Bruno. ICOM – Brasil, Pinacoteca do Estado de
São Paulo, Volume 1- 1ª Edição, 2009.
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