A riqueza é uma coisa, já a pobreza é outra. Ninguém as confunde. Sempre desejada, à riqueza é associada
a felicidade; já a pobreza é temida e rejeitada , pois lhe são atribuídas incontáveis
dificuldades. Parece que ninguém duvida que elas se oponham. Mas é possível
algo nascer da união delas?
Segundo narra Platão, que
reinventa o mito à sua maneira, o filho da riqueza com a pobreza
se chama exatamente Eros, o Amor. Foi a pobreza, a mãe do Amor, que
tomou a iniciativa, e furtou da riqueza um
rebento.No mito, a riqueza ( o deus Poros)
é uma divindade que se basta, ou que crê se bastar e nada lhe faltar; a pobreza
( a deusa Pênia ou Penúria) está sempre
a carecer de algo. Decidida, ela quis ter um filho com a riqueza , a quem nada falta , de que nada
carece. Houve então uma noite, um torpor, uma embriaguez, uma inconsciência, um
encontro de ambos e, de repente, ela estava grávida. Desse encontro nasceu Eros,
o Amor. Entretanto, o Amor não é uma média entre a riqueza e a pobreza,tampouco
uma fusão; diferentemente, ele é um acontecimento que dará à riqueza e à pobreza
um novo sentido.
Como o pai ,o Amor é
rico, mas de uma riqueza distinta daquela que fazia de Poros o deus da riqueza.
Como a mãe, o Amor também é pobreza;todavia,não se trata de uma pobreza por
carência,como a da Penúria;a pobreza do Amor é a de nunca estar completo, se a si mesmo o Amor
faltar. E esta também é sua riqueza: apenas
de si mesmo precisar.
O Amor, Eros, é a riqueza
de nunca se estar completo, de se ser sempre “forma em rascunho”, como diria o
poeta. A pobreza do amor não é exatamente a dependência ou a mera carência,
como psicanaliticamente se interpreta, pois atribuir-lhe a mera carência é
confundi-lo com sua mãe, esquecendo-se do
que lhe imprimiu o pai, a riqueza.Mas a riqueza que Eros porta e oferece não é
a de seu pai ( que é a riqueza que crê nada lhe faltar, a riqueza da auto-suficiência,
que pode ensejar insensibilidade pelo outro, bem como arrogância e pretensão
acerca de si mesmo).A riqueza do amor é que ele liga tudo a tudo por intermédio
dele mesmo.Diante dessa riqueza, mesmo a riqueza do seu pai se torna pobreza. A
riqueza do Amor é o próprio desejar, e não o desejado como aquilo que falta. E
esta riqueza também é a de uma pobreza :
pobreza enquanto um não depender de nada
que possa causar servidão ao luxo, ao supérfluo,
à ostentação. A pobreza do amor é uma riqueza : riqueza do amor de não lhe
faltar.
Assim compreendida, a
riqueza do amor não é o desejo da riqueza; a sua pobreza não é a que carece da
riqueza ou de meios. Sua riqueza é de ser meio para uma existência que faz do
Afeto , e não da mera posse material, o seu maior recurso.
Foi essa essência híbrida e mestiça do Amor que fez Plotino atribuir-lhe , séculos
depois, uma natureza tripla: Eros é, ao mesmo tempo, um Deus, um Daimon e um
movimento da alma (em Platão, o Amor não é uma divindade, ele é apenas um
Daimon).
Das três naturezas do
Amor, a que mais mistério tem é a sua existência como Daimon.O Daimon é um ser
intermediário que liga os homens ao divino: o Daimon liga o que nasce e morre ao que é eterno. Já o
amor enquanto movimento da alma é tido por ser algo volúvel, circunscrito às
circunstâncias, como todo movimento. Para Plotino, porém, somente quando a alma
não consegue encontrar ou se agenciar ao Daimon, somente nessa situação é que o
amor é passageiro,volúvel, circunstancial, e se confunde com o prazer físico
despertado pela beleza dos corpos. Quando
essa experiência do amor também é
guiada pelo Daimon, que não é apenas físico, os movimentos da alma se tornam
consistentes,intensos,uma vez que aos movimentos que a alma sente é ligada uma
experiência de se conectar ao que não depende das circunstâncias, que é a
natureza de Eros enquanto divindade ou Ideia.
Assim, para Plotino o Amor,
Eros, não é apenas uma divindade, tampouco apenas um Daimon, e também não é
apenas um movimento passageiro da alma (
e do corpo). Eros, o Amor, é essas três realidades ao mesmo tempo, embora
Plotino acentue que é o amor enquanto
intermediário, o Daimon,que realmente cumpre o papel de metamorfose, e liga os
movimentos da alma ao que só é aprendido pela parte mais imaterial de nossa
alma, o pensamento. O Amor é triádico:o Amor é movimento, é caminho e é
pensamento. Nesse último aspecto, pensar também é uma atividade que se liga ao
Afeto. O amor também é uma forma de tornar vivo o pensamento, uma vez que o
Amor, além de movimento e caminho, também é uma Ideia.O Amor é o caminhar(
movimento), o caminho ( Daimon) e o onde
chegar ( a Ideia).E sabemos se chegamos quando o caminhar se faz sem cansaço,
como o do livre nômade, e nunca quer parar.Descobrimos então que a Ideia também
é movimento, que o movimento também é ideia, e que a Ideia também é caminho:
caminho que nos leva ,antes de tudo, a nós mesmos.
Assim, é o Amor ( Daimon) que liga o amor (
movimentos de nosso corpo e nossa alma) ao Amor ( enquanto realidade divina ou
Ideia).É o Amor que liga o amor ao Amor.Somente o Amor tem por intermediário
ele mesmo, somente ele é seu próprio meio: se ele pode carecer dele mesmo,
também é apenas ele que pode completar-se.
E a lição mais surpreende
Plotino deixa para o final. O filósofo Plotino diz ter aprendido essa lição com
Orfeu, o poeta. A referida lição, dada sem livros ou ciência, consiste em um mistério
que a inteligência não compreende e jamais compreenderá: essas três expressões
do Amor são, no entanto, um único ser. Movimentos da alma, Daimon e Amor
enquanto Ideia são três expressões de uma única realidade. Quem
a isso descobre, e o vive, experimentará nos movimentos de sua alma a própria
eternidade do que é sem fim, pois é sempre meio.
É a essa dimensão do Amor que Espinosa chama de salut ou beatitude. Em latim, não por acaso, beatitude nasce de um
termo que significa exatamente “riqueza”.
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