Apesar
de invisível, e de quase não notarmos
sua presença, o ar pesa, o ar tem peso. Quando ele se desloca, por exemplo, é
capaz de mover corpos. Segundo os físicos, de nossa cabeça e costa até o
último estrato da atmosfera terrestre há uma quantidade de ar imensa, cujo peso
equivale a duas toneladas! Se fôssemos até o fundo do mar e houvesse quantidade
de água semelhante sobre nós, simplesmente seríamos esmagados pela pressão , pois
a água pesa mais do que o ar. Mas o ar também pesa. A criança quando começa a
se pôr de pé é a esse peso imenso que ela, pouco a pouco, ergue
sobre as costas. Ela o faz porque não o levanta apenas com os músculos ou com a
vontade, tampouco com o “livre-arbítrio".Ela levanta esse peso com a potência vital de uma crença que desconhece o
impossível. A criança que se ergue expressa uma afirmação incondicional, sem a qual a vida não venceria tudo
aquilo que a desafia. Os cientistas
afirmam que o período da vida no qual fomos mais potentes corresponde
àquele onde éramos fetos, embriões. E mesmo a criança nascida vence desafios
que derrotariam o adulto. Somos mais fortes quando ainda somos “formas em rascunho”,diria o poeta Manoel de
Barros. E assim permanece o poeta mesmo
quando adulto: como forma em rascunho.
O
filme “Gravidade” se passa em uma
paisagem incomum: a órbita da terra, um
espaço limítrofe entre o conhecido e o desconhecido, o ordinário e o
extraordinário. Três astronautas se encontram na seguinte missão: consertar a
lente do telescópio Hubble. Eles se acham entre duas realidades: a terra e o
infinito.
Há
três formas básicas de enquadramento no cinema : o close ( ou primeiro plano),
o plano médio (ou plano psicológico) e o plano americano ( ou grande plano).
Neste último, em geral o personagem aparece imerso em um fundo que o engloba.
No faroeste, por exemplo, há esse grande plano quando são mostradas carruagens
atravessando o deserto árido. Em
filmes urbanos, é o anonimato dos grandes prédios que constituem o fundo onde
se desenrolará a cena com os personagens. O fundo mostrado passa informações e
contextualizações sociais, históricas ou
geográficas. Ele ajuda a situar a história.
Mas
e quando o fundo é o “sem fundo”? E quando o fundo é o infinito desconhecido? O
infinito não é histórico ou social. Ele não é uma paisagem. O infinito não é um
céu que vemos da terra. O infinito é, por isso mesmo, “abstrato”, pois nele não
há nenhuma codificação ou estrato. “Ab-strato” :o que existe fora dos estratos.
No filme, este é o fundo: o que não tem limites e não pode ser enquadrado, em
todos os sentidos. É com esse fundo desconhecido que os personagens são confrontados. Em vários
momentos, o filme mostra o close de um rosto imediatamente circundado por um
mistério que não se pode conhecer, e esse mistério exterior, do lado de fora,
reflete-se no próprio rosto e realça a intensidade do afeto que desfaz os
mundos conhecidos, tanto o mundo físico
quanto o psicológico.
Um
dos personagens vê ao fundo a terra, e nada vê de sua vida conhecida. O céu se
torna um fundo abstrato que põe em primeiro plano tudo o que ocorre na terra lá
embaixo. Um acidente ocorre: satélites destroçados por mísseis russos se tornam
projéteis disparados que destroem tudo o que encontram pela frente. Apenas uma
astronauta sobrevive. No entanto,sua alma encobre um drama vivido.O fundo
eterno do céu silencioso acentuou o drama que ela vivera na terra, pois ela
perdera sua filha ainda criança, e esse acontecimento a fizera maldizer a vida. Ir para o espaço foi a forma
que ela encontrou de ir “para o espaço”, de “sair do ar” , mas o sofrimento a
acompanhou e a fez perceber que ir ao
espaço foi a forma que ela buscou de tentar fugir da vida. Sob o fundo eteno e escuro,tudo se
fazia claro.O efeito do contato imediato com o infinito foi um contato direto dela com os conteúdos
psíquicos mais íntimos: a amplidão do espaço ampliava o que havia de pequeno em
seu íntimo,como se o próprio telescópio Hubble estivesse apontado para ela.Mas
olhar para esse íntimo ampliado ela não o podia como cientista, que só vê o que
está diante e pode ser medido; e assim ela descobriu que sua ciência era uma
forma de ignorância.
Quando subimos ao alto da montanha, aumentamos
nossa visão do horizonte. E mais ainda a aumentamos se voamos muito acima do
chão.Porém,quando o astronauta sai dos limites da terra, ele próprio adentra a um horizonte absoluto
que nunca se desfaz, pois tudo se torna horizonte absoluto. E a vida cotidiana,
aquela na qual imperam os gestos, os
hábitos,os costumes...tudo isso some e se torna tão ou mais distante do que as
estrelas. O horizonte absoluto opera uma desterritorialização que nos faz ver a
Terra. Curiosamente, a terra não aparece mais sob os pés: ela surge sempre no
filme acima das cabeças dos astronautas, ela aparece mais como idéia do que
como realidade tangível.A terra surge de forma inseparável da maneira como cada astronauta a pensa.
Sozinha,
presa a uma nave que ela mal sabia como
dirigir, ela decide morrer(desligando o oxigênio que nutre a cabine). Na nave chegam apenas as ondas de um rádio amador,uma vez que o contato com a Nasa se perdeu totalmente. Sons simples alcançam a nave:um cachorro que late, uma criança que
chora e o pai que canta uma música de ninar. Intensamente tocada por esses simples sons, a astronauta também começa cantar, e assim ela produz para si um ritornelo.Lágrimas
saíam de seus olhos e, com a ausência da gravidade,formavam pequenos espelhos
esféricos e translúcidos que gravitavam ao redor dela ,como ao redor da nave
gravitavam as estrelas.Nos sons que vinham da terra, e que nasciam da cena mais
comum e simples, nesses sons vinha mais
do que o sentido habitual de tais fatos: nos sons vinha o sentido da terra, cujo sentido nunca é
dado, dado que ele existe para ser criado. Opera-se então na astronauta uma clínica cuja terapia a
própria vida fornecia, e nada mais. Ela
decide lutar pela vida e se arrisca a voltar à terra. O infinito fez-lhe uma clínica,o
infinito que também é choro e canto do mais simples ser vivente.
A nave adentra a atmosfera e cai no mar perto
da costa . A nave afunda rapidamente , porém a astronauta consegue se soltar e
sobe à superfície, e não foi apenas à superfície do mar que ela retornou .Ela
sobe e respira profundamente, novamente ela respirava como quando nasceu.Ela
nada de costas olhando para cima. O infinito escuro , abstrato como fundo, não pode
ser mais visto: ela vê um céu azul com nuvens. Ela chega à praia e ali fica
deitada de bruços, pois seus músculos estavam desacostumados com o esforço que
a gravidade exige para que fiquemos de pé. Ela agarra um punhado de terra e agradece
. Com o mesmo esforço da criança que
aprende a andar , ela vai pondo-se de
pé; um sorriso lhe escapa; e se ergue tendo ao fundo a natureza da qual ela faz
parte.Diante dela, e dentro dela, a mesma coisa: a Pura Reserva. E é com o esforço do seu conatus, do seu desejo, que ela se encontra e se liga a ambas as
naturezas ( que são, no fundo, uma só).
Enfim, ela entende com
seu espírito e com seu corpo que o peso da
gravidade física é nada diante do
peso que pode ter uma existência para si mesma quando dela se ausenta ou se
enfraquece a força vital e inconsciente que ,
agindo em tudo o que é vivo, desperta o desejo de ficar de pé e andar com as próprias
pernas.
2 comentários:
Que texto incrível, professor! Vou correr atrás para assistir esse filme!! Achei muito bonita a aplicação que o senhor fez de algumas ideias trabalhadas em sala na história do filme. As ideias que mais me tocam é pensar nas coisas simples da vida como clínica para a alma e na simbologia do universo como um céu abstrato e infinito. É brilhante a sua colocação sobre a fuga da vida... quantas vezes nós nos vemos nessa situação de querer fugir dos problemas ao invés de resolvê-los? E quanto tempo perdemos fugindo da vida achando que estamos ganhando? Nossa! Obrigada pela oportunidade de ler esse texto! Estou muito feliz! Abraços!!!
Olá, Flávia!
Muito obrigado. Você captou o sentido. Esse filme me surpreendeu bastante (positivamente). Vale a pena vê-lo . Ele tem relação com algumas coisas que já conversamos, sem dúvida.As imagens são impressionantes, e há muitas outras coisas para ver nele e descobrir.
Um grande abraço,
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