quinta-feira, 20 de março de 2025

Outonos

 Certa vez, eu explicava  para uma turma um poema de Fernando Pessoa. Era uma turma muito simpática e atenciosa, que sempre pedia para eu tocar nesses temas poéticos-filosóficos , apesar de não caírem na prova...rs...

Quando terminei a narrativa, uma aluna  perguntou de repente  : “Professor, qual seu signo?” Quando respondi “touro”, ela ficou incrédula, e disse com humor : “professor, você não pode ser touro, os professores de touro gostam de ensinar apenas coisas utilitaristas sem poesia ...rs...”

Então, ela me pediu a data e hora do meu nascimento, incluindo os minutos,  ela queria fazer meu “mapa astral”. Como eu sabia esses detalhes,  passei a informação para ela. Na aula seguinte, ela entrou sorridente na sala e disse: “Sabia que havia alguma coisa diferente, você  é assim por causa de seu ascendente: Aquário!”

Em homenagem àquela turma simpática  ( e a todos que , presencial ou virtualmente, apoiam meu trabalho), elaborei um pequeno “horóscopo filosófico”, no qual o céu sob o qual nascemos expressa a atmosfera que irradia de  determinado filósofo .

Àquela época, eu morava perto de uma pracinha. De minha janela via as mães com seus filhinhos nos carrinhos de bebê. Deitados dentro dos carrinhos, os bebês ficavam o tempo todo  olhando para o céu. Pensei comigo: “se tudo nos influencia, ainda mais quando somos crianças, deve haver uma profunda influência dessa  primeira imagem do céu na alma e personalidade dos bebês”.

Assim, os que nasceram no verão veem um céu com  um sol intenso. Os bebês que trouxerem  esse sol para dentro deles se tornarão criadores-artistas . Chamei esse céu de CÉU DE NIETZSCHE.

Os que nasceram no inverno, ao contrário, veem um céu cinza, e assim terão que buscar  criar um sol dentro de si . Os que nascem sob esse céu tenderão a ser mais introspectivos, buscando mais a “luz interior” . Chamei esse céu de CÉU DE SCHOPENHAUER.

Os que nasceram sob o céu da primavera veem um sol que é como uma grande semente que faz tudo germinar. Os que plantarem  dentro de si esse sol-semente   tenderão a ter uma crença inabalável na vida, acreditando que a vida pode de novo sempre brotar, apesar do deserto. Chamei esse céu de CÉU DE EPICURO.

Enfim, os que nasceram no outono veem um céu de um azul profundo porém transparente, onde o sol brilha vivamente mas sem ofuscar, um sol como parte do infinito sempre aberto para voos emancipatórios: “Eu tentei me horizontar  às andorinhas” (Manoel de Barros). Os que nasceram sob esse sol e céu , se aprenderem com esse sol e céu a se horizontarem,  crescerão pensadores. Chamei esse céu de CÉU DE ESPINOSA.

Hoje começa o outono. Como disse Drummond: “Outoniza-te com dignidade.” Que a gente consiga   criar uma abertura na mente e no coração para que possam entrar a luz e o azul desse  “Céu de Espinosa”, e que a perseverança do pensar luminoso desse filósofo  nos inspire e fortaleça diante de toda forma de trev4.




 Nesse “horóscopo-brincativo” ( “brincatividade” é ideia criada pelo poeta Manoel de Barros) poderíamos colocar outros filósofos ainda ao lado desses que mencionei para cada estação poético-existencial. Lucrécio e Sêneca, por exemplo, também são outono; Sartre é verão; Epicteto e Bergson, primavera; e Cioran, inverno. Imagem da postagem :  “Outono”, de Monet.

 

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E no dia 17 desta semana Elis Regina faria 80 anos. Ouvir Elis me lembra estes versos  do poeta Schiller:

“Descanse tranquilo onde cantam,

 os maus não cantam.”

O primeiro a cantar foi Orfeu, ele cantou inspirado pelas Musas. No seu sentido originário, “Musa” significa: “Conhecimento que vem das artes”. As Musas eram nove , cada uma representando uma arte, de tal modo que o conhecimento despertado pelas Musas expressa sempre uma pluralidade, nunca um monólogo autoritário.

Os primeiros filósofos também evocavam as Musas para filosofarem, atestando que poesia e filosofia são cantos que brotam de uma fonte comum, ambas cantos que cantam com uma voz libertadora , voz essa que nunca   os maus terão.

Mas o  canto ao qual se refere  Schiller não é apenas o canto literal produzido por uma voz. Pois quando a árvore frutifica, cada fruto é um cantar dela; e quando a rosa desabrocha, essa é sua forma de cantar. Frutificar e desabrochar também são  artes que a própria natureza ensina.

Cada aurora é o canto de um dia novo que nasce; e apesar da dor, o tempo pode ser um canto que aplaca a saudade.

 O ato revolucionário é uma forma de a liberdade cantar ; e quando a justiça se cumpre, é a dignidade que está cantando, pois a democracia é um canto que os justos cantam juntos , em polifonia.

 Quando a vida se afirma como  canto de emancipação ,  afetos como amizade, amor, empatia e  generosidade  se tornam os instrumentos que produzem a música de nossa libertação.    

 

“Sei falar a língua dos pássaros: é só cantar.”

(Manoel de Barros)