O poeta-filósofo Lucrécio inicia seu poema[1]
evocando Vênus. Na mitologia, Vênus é ,
ao mesmo tempo, aquela que guarda a semente de tudo o que nasce e a terra na
qual as sementes são lançadas, de tal modo que Vênus também vive e floresce nas sementes que nela
são plantadas.
Os átomos não são pedras inertes,
eles são a semente de tudo. Pois tudo o que existe vem de uma semente: nenhum existente pode nascer do nada, ou ao nada
retornar.
“Do nada nada vem”, afirma
Lucrécio. O nada não faz parte da natureza, tampouco pode negá-la ou limitá-la. Pois como poderia o
nada, sendo nada, impor limites ao que é?
A morte desfaz a composição de um ser, mas ela não destrói os átomos : eles se tornam novas sementes para outras vidas nascerem.
O nada é uma projeção feita pela mente supersticiosa sobre a natureza. O nada é a sombra
que o medo e a ignorância lançam sobre a existência. Fanatismos religiosos, niilismos,
necropolíticas...são formas com as quais a mente ignorante tenta negar a natureza.
Além dos átomos-sementes, Lucrécio também nos fala do vazio. O vazio não
é o nada, pois o vazio não é negação da realidade. Ao contrário , é graças ao
vazio que os átomos podem mover-se. Portanto, é uma mera abstração supor um
vazio sem átomos a preenchê-lo, de tal modo que o vazio é sempre uma potência para
preenchimentos de devires.
O vazio não é apenas algo exterior aos átomos, pois nos corpos compostos
também há vazio. Quando o fogo aquece a água, o fogo penetra na água porque na
água há vazio, de tal modo que a água
aquecida é fogo e água existindo juntos, graças ao vazio de que a água também é
feita. O ar entra dentro de nós e
enche nossos pulmões de vida porque
somos feitos também de vazio. O vazio não se opõe à vida, pois a vida é feita
de átomos-sementes e vazio.
A Vênus-Natureza não é apenas
a semente, ela também é o vazio sem o
qual as sementes não germinam (tal como o vazio do útero , sem o qual não pode
brotar e crescer a vida nova que a esse mesmo vazio vem preencher).
Lucrécio também ensina que há duas Vênus. A primeira delas é apenas
“mito”, isto é, delírio antropomórfico projetado
na natureza. A Vênus-mito sente raiva, faz intrigas, tem inveja e se vinga, tal
como fez contra Psiquê, por não aceitar
que essa fosse amada por Eros, o Amor.
Essa Vênus-mito não é a Vênus que Lucrécio evoca. A Vênus de Lucrécio é
poético-filosófica : ela é a própria potência inesgotável da natureza. Ela não
é só o corpo, ela é corpo , alma, semente, terra e vazio. Ela é o amor que ama,
unindo-os, alma e corpo em concílio.
A Vênus do Lucrécio-Semeador não é mito que nega a natureza, ela é
Potência Germinativa que afirma a variedade e pluralidade das infinitas
sementes da natureza, cujo germinar ela parteja .
E nada , nem mesmo a ignorância dos homens detém seu semear , por mais que tentem.
[1]
Sobre a natureza das coisas é um imenso poema , um poema do pensamento.
Nele, Conceito e Imagem se agenciam como
expressões de um pensar no qual Poesia e
Filosofia se partejam reciprocamente.
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