terça-feira, 18 de março de 2025

As sementes de Lucrécio

 

O poeta-filósofo Lucrécio inicia seu poema[1] evocando Vênus.  Na mitologia, Vênus é , ao mesmo tempo, aquela que guarda a semente de tudo o que nasce e a terra na qual as sementes são lançadas, de tal modo que Vênus  também vive e floresce nas sementes que nela são plantadas.

 Os átomos não são pedras inertes, eles são a semente de tudo. Pois tudo o que existe vem de uma semente: nenhum  existente pode nascer do nada, ou ao nada retornar.

“Do nada  nada vem”, afirma Lucrécio. O nada não faz parte da  natureza, tampouco pode  negá-la ou limitá-la. Pois como poderia o nada, sendo nada, impor limites ao que é?

A morte desfaz a composição de um ser, mas ela não destrói  os átomos : eles se tornam  novas sementes para outras vidas nascerem.

O nada é uma projeção feita pela  mente  supersticiosa sobre a natureza. O nada é a sombra que o medo e a ignorância lançam sobre a  existência.  Fanatismos religiosos, niilismos, necropolíticas...são formas com as quais a mente ignorante tenta negar  a natureza.

Além dos átomos-sementes, Lucrécio também nos fala do vazio. O vazio não é o nada, pois o vazio não é negação da realidade. Ao contrário , é graças ao vazio que os átomos podem mover-se. Portanto, é uma mera abstração supor um vazio sem átomos a preenchê-lo, de tal modo que o vazio é sempre uma potência para preenchimentos de devires.

O vazio não é apenas algo exterior aos átomos, pois nos corpos compostos também há vazio. Quando o fogo aquece a água, o fogo penetra na água porque na água  há vazio, de tal modo que a água aquecida é fogo e água existindo juntos, graças ao vazio de que a água também é feita. O ar entra dentro de nós  e enche  nossos pulmões de vida porque somos feitos também de vazio. O vazio não se opõe à vida, pois a vida é feita de átomos-sementes e vazio.

A  Vênus-Natureza não é apenas a  semente, ela também é o vazio sem o qual as sementes não germinam (tal como o vazio do útero , sem o qual não pode brotar e crescer a vida nova que a esse mesmo vazio vem preencher).

Lucrécio também ensina que há duas Vênus. A primeira delas é apenas “mito”, isto é, delírio  antropomórfico projetado na natureza. A Vênus-mito sente raiva, faz intrigas, tem inveja e se vinga, tal como fez  contra Psiquê, por não aceitar que essa fosse amada por Eros, o Amor.

Essa Vênus-mito não é a Vênus que Lucrécio evoca. A Vênus de Lucrécio é poético-filosófica : ela é a própria potência inesgotável da natureza. Ela não é só o corpo, ela é corpo , alma, semente, terra e vazio. Ela é o amor que ama, unindo-os, alma e corpo em concílio.

A Vênus do Lucrécio-Semeador não é mito que nega a natureza, ela é Potência Germinativa que afirma a variedade e pluralidade das infinitas sementes da natureza, cujo germinar ela parteja .

E nada , nem mesmo a ignorância dos homens  detém seu semear ,  por mais que tentem.

 



[1] Sobre a natureza das coisas é um imenso poema , um poema do pensamento. Nele, Conceito e Imagem se agenciam  como expressões  de um pensar no qual Poesia e Filosofia se partejam reciprocamente.







     
                                              (   "O semeador"/ Van Gogh )

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