sábado, 8 de março de 2025

Sofias, Ariadnes, Dandaras, Eunices...

 

Ao  Dia internacional de Luta das Mulheres ( 8 de março e todos os dias)

 

Em grego, “Sofia”  é “Sabedoria”. Não se deve confundir “Sofia” com “Razão”. A  palavra “Razão” em grego  é masculina (“Logos”)  e tinha  em Zeus um dos seus símbolos.

Porém Zeus  não era a Sabedoria, pois  Sofia é filha de Zeus com Métis.  Por possuir muitos dons e capacidades, Métis era conhecida como  a deusa das “habilidades”. Não a  habilidade meramente   técnica, mas habilidade no sentido de produzir , além de ideias,  um querer e um agir múltiplo e criativo.

Métis também estava  associada à noção  de “saúde” enquanto cuidado consigo e com os outros. A palavra “caute” , base da Ética de Espinosa, provém dessa habilidade médico-curativa . Pois de “Métis” também vem “meticuloso” , no sentido do cuidado (“caute”)  que caracteriza o bom médico ( tanto os médicos do corpo quanto os médicos da alma, os pensadores-artistas).

Uma das características de “Métis” é que ela era capaz de metamorfoses, de devires. Ao enamorar-se com Métis,  Zeus buscou na metamorfose dela um processo para renascer também.

Agenciada com Métis ,   a própria Razão potencializou-se para lutas que ela não tem como vencer sozinha, lutas para enfrentar a ign0rância em suas diversas formas. Fortalecida, a Razão aprendeu habilidades  que a pura razão teórica não ensina.

 As habilidades de Métis são artes que unem o pensar ao agir. E foi desse agenciamento mais afetivo do que teórico , mais artístico e poético do que acadêmico, que nasceu  então Sofia, também conhecida como “Atena”, filha de Zeus com Métis.   

Os teóricos da Razão  inspiram-se em Zeus, mas os pensadores-artistas são  apaixonados por Sofia: e por essa paixão não apenas pensam, como também agem e criam.

Na lut4 contra a ign0rância e a obscurid4de, ontem e hoje, a Razão não vence sozinha: é preciso que a acompanhe Sofia. Às vezes, é a própria Sofia que salva a Razão de si mesma , fecundando nela sensibilidade  e vida, impedindo  assim que a Razão fique dogmaticamente estéril, rígida.

Segundo Nietzsche, hoje a filosofia atende  por outro nome, um nome feminino  também : “Ariadne”, nome que  significa “aranha”. Pois Ariadne é tecedora de fios, fios que ela tira de seu próprio ventre, como a “linha de fuga” ensinada por Deleuze .

Ariadne simboliza  a necessidade de um fio que nos agencie, um fio trançado  com  Ideias libertadoras e Afetos regeneradores, como    mãos que se seguram umas às outras  na luta e resistência ante toda forma de tir4nia, mãos de Sofia e Ariadne  unidas às mãos de Dandara, Eunice, Fernanda, Clarice, Marielle...

Esse fio-agenciamento que une e salva ganha vida na  voz de  Elza Soares:

“Eu não vou sucumbir 

Eu não vou sucumbir

Avisa na hora que tremer o chão                      

Amiga, é agora, segura a minha mão”.

( Trecho da música “Libertação”)


(Imagem: a pequena Sofia)




 

Estes livros são apenas sugestões:













segunda-feira, 3 de março de 2025

Dioniso e Apolo / Potência e Forma

 

                                    APOLO E DIONISO[1]

 

Em A visão dionisíaca do mundo, Nietzsche identifica Apolo e Dioniso a dois processos: o sonho, estado provocado por  Apolo, e a embriaguez, processo despertado por  Dioniso.

Todo sonho é um  desejo de plasmar a realidade. O sonho dá uma forma à realidade, mesmo que seja a realidade de uma utopia. Quem  sonha tem os olhos fechados para a realidade efetiva, pois o olhar que sonha se abre ao que somente  pode ser visto de forma sonhada. Goethe se refere a esse olhar que sonha como o “olhar solar”: pois é esse olhar que ilumina paisagens internas, mesmo em meio às trevas externas. Não por acaso, Apolo é identificado ao sol.

Toda obra de arte apolínia é um sonho que plasma tintas, pedras, metais, sons...mediante  uma forma que  figura e dá a ver o que antes o artista sonhou.

Já Dioniso é a embriaguez: algo que acontece enquanto estamos acordados, porém despertando outros olhos, até mesmo “olhos lunares” que ao mistério veem claro .

 Se Apolo é o referencial do artista, Dioniso por sua vez é a própria   vida compreendida como  obra de arte[2] . Em Apolo ainda há uma oposição entre real e sonho. Se essa distinção se embaralha, corre-se o risco de surgir o delírio mórbido negador da realidade.

Mas em Dioniso a própria vida se torna obra de arte a ser musicada, pintada, dançada, poetizada,  enfim, criada[3] . Como ensina Manoel de Barros, arte é “delírio ôntico”: criação de novos sentidos para o ser ( “on”). O delírio mórbido, delírio de poder, nega a pluralidade da vida e do pensar, já o delírio ôntico é potência poética do pensar enquanto expressão  da vida,  incluindo a vida plural das ideias.

Nietzsche nomeia Dioniso como a “potência da primavera”, a mesma potência de Perséfone. Apolo é forma que plasma e dá uma figura, já Dioniso-Perséfone  é potência que faz brotar , (re)nascer e fulgurar ( como as estrelas-flores que Van Gogh pintou).

A palavra embriaguez em grego se escreve “bacchus” ( é por esse motivo que os romanos chamam Dioniso de “Baco”).  A embriaguez dionisíaca não é provocada apenas pelo vinho. A embriaguez dionisíaca é todo processo no qual uma potência fende os limites de uma forma, produzindo assim uma linha de fuga em relação a cercas, limites, egos. Embriaguez é um processo que “desabre”, diria Manoel de Barros ( como a borboleta que desabre a lagarta). Van Gogh é embriagado  de tinta, Manoel de Barros é embriagado  de poesia, Fernando Pessoa é embriagado  de eus, Clarice é embriagada  de vida...Somente experimentando uma embriaguez assim é que se cria verdadeiramente arte.

A primavera embriaga a semente não para ela sonhar que é broto, e sim para ela se metamorfosear em broto, com a máxima potência que puder. A embriaguez poética embriaga  o poeta não para ele sonhar com o poema utópico, e sim para ele  se metamorfosear em mundo, pois “poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, ensina Manoel de Barros.

Ninguém melhor do que o poeta Baudelaire soube expressar essa embriaguez dionisíaca, ao dizer: “É preciso embriagar-se...Mas, com quê? Com vinho, poesia ou virtude , a escolher. Mas embriaguem-se!”

Resumindo : Apolo representa a Forma, ao passo que Dioniso expressa a Potência. A palavra potência tem a mesma raiz que o termo “possibilidade”. Assim, toda potência é realidade também, porém é uma realidade potencial ( ou virtual). Por exemplo, quando está em sua casa e fora do hospital ou consultório, o médico tem a potência para curar, mesmo que naquele momento ele não esteja exercendo tal potência; a cantora tem a potência para cantar, mesmo que se encontre  em silêncio e fora do palco.

Quando o médico está a curar, a potência passa ao ato : a potência é atualizada, isto é, torna-se atual. Mesmo sendo atualizada , nunca a potencialidade se esgota totalmente na forma como ela é atualizada : sempre permanece uma reserva de possibilidade que permite que tal potencialidade seja atualizada  de maneira diferente, sendo então renovada, reaprendida, reensinada. Não é apenas o que agora é atual que é real, pois a potência também é real, embora de uma realidade diferente. Toda realidade atual somente pode ser renovada ,  reinventada e repensada se não perder a ligação de seus fios com o  novelo da Potência, tal como os fios libertários de Ariadne. Por outro lado, toda potencialidade , para não ficar apenas no nível da idealização ou teoria, precisa se atualizar e se tornar ato efetivo no mundo.

Assim, o par forma-matéria deve ser complementado e ampliado pela relação potência-ato ou virtualidade-atualidade. Quando uma teoria é dogmática, ela tende a realçar a forma em detrimento da matéria-potência-virtualidade. Mas quanto mais rico, plural e diverso for um pensar, mais ele tende a colocar a potência-possibilidade-virtualidade em primeiro plano, compreendendo que as formas são necessárias, embora possam enrijecer se perderem de vista as potências-virtualidades que as fazem nascer.

O pensador-artista-criador de não importa qual área possui olhos e mãos para ver e tocar essa potência-virtualidade-possibilidade, para assim pôr em ato uma obra, um agir e um criar que atualizam essa potência-virtualidade-possibilidade em realidade concreta que dá sentido novo a nós mesmos, à sociedade e ao mundo.

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] No filme “Meu amigo Nietzsche”, o menino vive uma embriaguez assim quando descobre a potência das ideias que metamorfosearam seu modo de vida: ele se tornou um artista cuja obra a criar era a si mesmo... Essa embriaguez faz brotar primaveras, auroras...

[3] Artes como o teatro  e a dança têm maior potência dionisíaca do que a pintura e a escultura: nestas, apenas a mão se envolve na produção da obra, ao passo que no teatro e  na dança ( na qual a música também está presente) é o corpo inteiro que participa da criação.









 

sábado, 1 de março de 2025

Dioniso - o triunfo da Vida

 

Uma das origens do carnaval remonta a Dioniso, o deus das artes. Porém, a palavra “deus” não é muito adequada para traduzir o universo poético-literário dos mitos, já que se costuma imaginar deus como existindo antes de sua obra, e sendo dela diferente.

Na mitologia, contudo, não havia o Amor  antes de surgir  Eros , também inexistia  o Conhecimento antes de nascer Atena, ou as Artes antes do aparecimento de Dioniso.

É por isso que Jean-Pierre Vernant, um grande estudioso do assunto,  prefere empregar o termo “Potência” ao abordar os mitos, em vez da palavra “deus”.

Na filosofia, as palavras “potência”  e “possibilidade” são primas, e ambas se opõem à ideia de “forma” ( como algo fixo e limitado).  A Potência expressa a inseparabilidade entre o artista e sua obra, a união entre arte e existência.

Assim, Eros é a Potência do Amor . Não há uma forma única de amar:  enquanto Potência , o Amor pode ser vivido e (re)criado de mil maneiras.

Como Potência, o Conhecimento não está apenas na forma-livro :  os objetos de uma exposição também trazem a possibilidade de aprendermos com eles.

Os romanos chamavam Dioniso de “Baco”. Em grego, “bacchus”  significa “embriaguez” .Mas antes de se embriagar com o vinho, Dioniso já se embriagava com a água que ele bebia das fontes, ou com o perfume que ele inalava das flores.

Quando Dioniso era ainda criança, c4rrasc0s ressentidos o despedaçaram por v1ngança, imaginando assim que o derrotavam.

Sabia-se que Dioniso tinha uma metade humana e outra metade divina, uma metade mortal e outra que nunca morria. Mas qual era a parte divina dele? Ninguém sabia...Exceto Zeus.

Zeus pegou então o coração de Dioniso e do coração  o partejou, pois Dioniso estava ali  inteiro . Era o coração, sede da coragem perseverante  e do afeto regenerador,  a parte onde é mais potente a  Vida.

Isso explica seu nome: “Di-oniso: aquele que nasceu duas vezes”. Na primeira vez , Dioniso nasceu chorando, como todo recém-nascido; mas no segundo nascimento  Dioniso (re)nasceu em alegria pelo triunfo sobre os c4rrascos da vida.

Essa  alegria potencializava ainda mais a existência  , tal como aquela alegria ensinada por Espinosa.

A alegria dionisíaca era semelhante a uma embriaguez.  Não a embriaguez por excesso  etílico,    mas   embriaguez  pelo excesso de vida transbordante . Pois a primeira das artes que Dioniso ensina é a arte de renascer ainda mais potente quando os poderes necr0polític0s nos querem vencidos.

Manoel de Barros, ébrio de poesia , chama  de “deslimite” a essa Potência que não deixa  morrer a vida: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, diz o poeta de vida embriagado. Como ensina Foucault, um pouco do  “ar do possível”, para não sufocarmos.

O poeta Baudelaire traduz assim a embriaguez dionisíaca: “É preciso embriagar-se...Mas, com quê? Com vinho, poesia ou virtude , a escolher. Mas embriaguem-se!”

 

(este livro é apenas uma sugestão)