quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Fortalezas...

 

Em sua Ética, Espinosa dá especial importância a uma virtude: a fortaleza. Em latim, “fortitudo”. Alguns traduzem “fortitudo” como “força do ânimo”.  A palavra “ânimo” expressa a unidade da mente e do corpo.

“Virtude” significa “força”. Não a mera força física ou bruta, mas a força potencial . Originalmente, “virtu” designava a força que nasce de uma fibra , fio ou corda, quando são tensionados e “vibram”.

 Por exemplo, o violão somente produz música se suas cordas forem vibradas; o arco só pode lançar suas flechas longe se sua corda  for tensionada ; o próprio coração , ao pulsar, faz suas fibras vibrarem para impulsionarem o sangue por todo o corpo.

Da mesma maneira, ideias que fazem pensar levam a mente a vibrar, abrindo-se. Coragem, indignação, generosidade, solidariedade, empatia, senso de justiça...são virtudes que , para virarem ação sobre o mundo, requerem  fibra naqueles que as sentem, para que neles elas vibrem.

Segundo Espinosa, a fortaleza é o ninho que dá guarida a todas as virtudes e as protege, como um escudo. Sem fortaleza, não há filosofia, ética, conhecimento, vida digna. A fortaleza-virtude é  força, mas não é violenta; ela tem potência, porém não é soberba; ela é firme, sem ser rígida.

 Uma fortaleza não precisa de muros ou cercas: a flor de lótus  desabrocha e persevera sendo ela mesma a despeito de  ao redor dela  predominar a lama. A fortaleza da flor de lótus  é a força que lhe é imanente, e que a lama não turva ou toca. Na sabedoria oriental, a flor de lótus é considerada  o símbolo da sabedoria prática.

Epicteto foi feito escravo em Roma , como aqui Dandara e Zumbi . A filosofia foi, para Epicteto, a sua Palmares: quando o poder quer nos  agrilhoar ( simbólica ou fisicamente ),   são Quilombos que precisamos edificar, dentro e fora da gente.

Não por acaso,  na língua banto “fortaleza”  é  “quilombo”.




 







domingo, 17 de novembro de 2024

Ócio e filosofia

 

Há uma ideia muito equivocada que se atribui a filosofia ao ócio, como se o estudo da filosofia dependesse do ócio. Esse equívoco vem de certa interpretação anacrônica das condições segundo as quais a filosofia grega era ensinada e praticada em suas escolas.

Na verdade, o tal “ócio” filosófico  significa : “dispor de tempo livre”, isto é, de tempo livre para se dedicar à filosofia , e não de tempo livre para não fazer nada ou se entregar à preguiça. Os que buscam o ócio para a preguiça, e associam o ócio a não fazer nada, esses jamais agenciarão sua vida à filosofia, uma vez que o estudo da mesma requer esforço e dedicação .

Epicteto, por exemplo, nasceu sob a condição de escravo, e mesmo ele encontrava tempo para se dedicar à  filosofia. Aliás, o primeiro efeito da filosofia em nossa vida é exatamente não perdemos tempo , como ensina Proust, com coisas que nos roubam tempo ( e esse mundo digital está repleto de ladrões assim, ladrões que nos roubam com nosso consentimento voluntário...).

Mas aquele que quer  realmente  dispor de seu tempo, descobre que dispor do tempo é, primeiramente, dispor da própria vida, conquistando autenticidade e autonomia. 

Vejam o caso da poeta Carolina de Jesus: mesmo vivendo em condições materiais extremamente difíceis , ela conseguia tempo para se dedicar ao estudo e à leitura. O tempo que assim se conquista também serve de resistência anímica , já que ele não se mede em termos quantitativos do relógio que afere o tempo mecânico do trabalho, mas em duração qualitativa e intensiva.

Não é o ócio a condição da filosofia, e sim o saber dispor do tempo, evitando desperdiçar o mesmo em práticas que nos roubam exatamente o tempo.

Assim compreendido, o tempo de que dispomos é como a água de uma cisterna. Alguns a desperdiçam lavando calçada,  e imaginam assim fazer bom uso dela; mas há os que a reservam para matar a sede e satisfazer a necessidade  , sem esquecer de  regar  as flores e manter viva a beleza.

sábado, 16 de novembro de 2024

Os dois "manoéis"

 

O poeta Manoel de Barros dizia que havia dois “manoéis”: o Manoel  feito de corpo e alma, e que viveu  amizades, alegrias, amores, esperanças...Mas que igualmente conheceu  preocupações, tristezas, angústias, decepções... Enfim, esse primeiro  Manoel viveu na vida  afetos e situações que a maioria de nós também já viveu.

Mas  há ainda o “Manoel-letral”. O Manoel-letral é aquele para o qual “a palavra abriu o roupão para ele, e o deixou sê-la.”

O Manoel-letral é pura alma cujo corpo se tornou o corpo da palavra ,  para que a palavra escrita por ele  seja mais do que palavra: seja também vida metamorfoseada em poesia, para assim fazer parte da nossa vida e potencializá-la.

No último dia 13, fez 10 anos que o primeiro Manoel nos deixou. Talvez   a saudade que sentimos do primeiro Manoel   possa ser minorada pelo encontro com o Manoel-letral  que vive no coração de seus versos,  onde está cada vez mais vivo, sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, escreve Manoel.

Para reencontrar Manoel , reli  hoje pela manhã  o poema “O guardador de águas”. No poema , Manoel  descreve o seguinte acontecimento ( que aqui interpreto) :

Sob um monturo formado por  restos de folhas amarelas  que já foram verdejantes na primavera, de cacos de vidro que já foram garrafa de vinho a brindar um Ano Novo e de farrapos desbotados que já foram trajes  de festa , sob tal monturo que a natureza recolheu sem lamentar-se pelo que já foi e passou , uma semente que ali estava sufocada despertou, pois furou a noite do monturo um raio de sol que ali entrou, transformando o monturo de túmulo em casulo.

"Poeta é ser que vê semente germinar", ensina Manoel.  Da semente libertou-se um pequeno caule que se enroscou no raio de sol e por ele foi subindo. À medida que subia, do caule nasceu um broto, depois uma folha tateante,  como se fosse mão escavando.

Uma linha de fuga então  foi-se desenhando, na força de uma vida nova a transpassar  o passado de coisas mortas.

Partejando a si mesmo e inventando uma saída, nasceu do monturo um reluzente lírio.

 



 

Trecho do filme "Língua de brincar", de Gabraz Sanna:



quinta-feira, 14 de novembro de 2024

tordos...

 

Hoje me lembrei  de uma belíssima aula do professor e filósofo  Cláudio Ulpiano na qual ele narrava algo extraordinário que fazia não um poeta , um educador ou  um pensador , mas a reunião de um poeta, de um educador e de um pensador   num único ser alado e canoro: o passarinho tordo.

Quando vem o fim da tarde, esse poeta da natureza sobe ao galho mais elevado de sua árvore e canta para o sol que lhe dera um dia. É um canto de resistência  e afirmação da vida, um canto de “Amor Fati”, seja o que for que tenha acontecido naquele dia.  

Quando o sol se põe , na borda do céu perto do horizonte tudo fica colorido de púrpura. O púrpura nasce da composição da cor azul, a cor dos “celestamentos” ( diria   Manoel de Barros) , com o vermelho, cor do sangue ( não enquanto este é derramado na violênci4 e b4rbárie, mas quando corre nas veias e irriga o corpo de oxigênio  e vida ).

É um canto belo e potente, porém misterioso : os biólogos não conseguem explicar por qual razão o tordo canta esse canto. Como um poema, o canto  não tem finalidade utilitária, porém  desperta finalidades mais elevadas; feito uma aula de filosofia, o canto nada serve aos que só se interessam por “fórmulas” e “tabuadas” , uma vez que  ele faz pensar para além das ideias limitadas.

Além disso, quando o tordo assim canta, ele corre riscos. Pois soturnas aves de rapina ficam  à espreita para predar o tordo-pensador-artista. Mesmo correndo  riscos, o tordo não se cala e , cantando, se horizonta ao céu-púrpura aberto e ilimitado. E quem o ouve, se horizonta também.

E  a lição maior do que Cláudio nos dizia , também a encontrei depois sob a forma de versos , quando Manoel de Barros escrevia: “Inventar uma tarde a partir de um tordo”. Inventar uma tarde púrpura e horizontada, uma “linha de fuga”,  sobretudo quando a treva nos circunda.

Hoje, 14 de novembro, é o dia de nascimento de Cláudio Ulpiano . Tive a alegria de ter sido seu aluno . Este texto é uma pequena homenagem  a Cláudio, cujas aulas são  verdadeiros cantos de tordo que  horizontam caminhos.

Como ensinava Cláudio: “Só a boa metáfora pode dar ao estilo uma espécie de eternidade.”

Viva Cláudio Ulpiano!




 

 

sábado, 9 de novembro de 2024

Beatitude

 

Midas era um homem que alimentava por dentro uma ambição desmedida por posses , dinheiro e  poder.

Querendo aparentar ser o que não era, certa vez Midas  ajudou um homem em dificuldades , e a essa ajuda Midas  deu grande publicidade, querendo dela extrair popularidade. 

Parecia que ele se preocupava com o outro, mas na verdade ele estava usando o outro como meio de obter fama, prestígio.

Dioniso viu Midas ajudando o homem em dificuldades , pensou que ele agia por  genuína bondade  e quis recompensar Midas dando-lhe o poder de realizar seu mais íntimo desejo. É no que mais se deseja que cada um revela como é por dentro.

Midas então revelou em seu pedido o quanto era pobre interiormente: seu desejo era que virasse ouro tudo o que tocasse. Midas imaginava que assim teria a felicidade.

Dioniso compreendeu que Midas não era por dentro como aparentava ser por fora. Mas realizou seu mesquinho desejo, pois sabia que dali viria uma lição, ainda que dolorosa.

Assim, sob o toque ganancioso de Midas viravam ouro  a colher, a mesa, a cadeira, o copo...Mas viravam ouro também , uma estátua de ouro, alguém  que ele abraçava, o cão que ele afagava, o passarinho que vinha pousar na sua  mão...

 Para seu desespero, igualmente  virou estátua de frio ouro seu filho  pequeno que ele pegou no colo . Depois, viravam ouro  a água, o arroz, a carne, a maçã, o pão...antes que Midas pudesse matar a fome e saciar a sede.

Sentindo-se o mais miserável dos homens, Midas  então chorou, e de longe eram ouvidas  suas lágrimas quicando no chão como moedas.

Midas descobria assim  que a loucura por acúmulo é a pior  das carências...Então, ele busca  Dioniso e pede uma  cura para aquela  pobreza de apenas no ouro ver riqueza.

Dioniso conduz Midas até um rio que passava perto de uma aldeia pobre e o lava no fluxo de suas águas.   O rio ficou repleto de pepitas de ouro  que Dioniso partilhou com  os necessitados.  Midas enveredou por  uma estrada e sumiu...

Passou o tempo,  todos pensavam que Midas já   estivesse   morto. Até que um dia ele retorna. Vestia-se parecendo um andarilho, tinha a companhia de um  cãozinho  vira-lata e estava pousado em seu ombro um passarinho como se ali fosse um ninho.

Midas se mostrava  simples por fora, mas por dentro parecia enfim rico. Tal  riqueza vinha da cura que lhe fez Dioniso, que escondeu uma das pepitas no peito de Midas  , e de ouro se tornou seu coração renascido solidário.

Midas agora parecia ter aprendido,  praticando-a, esta lição de ouro de Espinosa: "Nossa suprema felicidade consiste em realizar apenas aquelas ações que o amor e a generosidade nos aconselham". (Ética, Parte Dois, proposição 49, escólio)

 

( Na Ética de Espinosa, recebe o nome de “beatitude” a riqueza que nasce do conhecimento que se partilha para  potencializar a vida. Em  Manoel ,  beatitude é empoemamento ,  poesia emancipadora ) 






 


Riqueza autêntica não é o número estampado na cédula do dinheiro, riqueza verdadeira é   o papel de que é feita a cédula, papel esse que veio da árvore como parte de uma floresta. Riqueza de verdade  não é o número na moeda, mas o níquel de que ela feita, níquel que foi retirado do seio da terra.

Riquezas autênticas são o trabalho produtivo, o conhecimento, o afeto, os rios, os mares, as florestas, o tempo...Na criança que nasce, o tempo é a riqueza da vida futura; no idoso, o tempo é a riqueza da vida vivida.

Os juros são a comercialização do tempo, a vida transformada em negócio financeiro . Ao emprestarem um valor hoje para cobrarem  sobre  ele   15%  ao mês ou 340% ao ano de ganho e lucro,  mês e ano  se tornam a mercadoria que os bancos e financeiras se acham os proprietários. Mês e ano são medidas do tempo. E  tempo é vida. Assim , é da nossa vida que se trata: eles a compram de nós  e eles mesmos a vendem para nós, lucrando abusivamente com esse comércio infame, como no passado no qual seus antecessores históricos  escravizavam seres humanos e os comercializavam.   

Hoje, os bancos e a mídia financiada por eles pressionam o governo por cortes na educação e na saúde, alegando estarem preocupados com a dívida pública. Mas , ao mesmo tempo, pressionam pelo aumento  da taxa de juros abusivamente  , cujo efeito perverso imediato é aumentar exatamente a tal a dívida pública do governo , que se vê obrigado assim a cortar gastos públicos   , para assim pagar a dívida pública da qual os bancos são os principais recebedores...

O efeito calculado disso é tentar inviabilizar o governo, tornar impossível o cumprimento de suas promessas no campo social, o que leva à insatisfação das camadas populares com a política , fazendo crescer a base social das igrejas fundamentalistas , que inoculam nessa mesma população a ideologia da “prosperidade” , que é a mesma ideologia dos bancos, de tal modo que o dogma do carrasco  se torna o mesmo que o da sua vítima...

Como ensinava Espinosa, em situações assim a maior riqueza, a mais necessária, é a indignação, desde que ela saia da reatividade individual-privada e ganhe o  espaço público, tornando-se voz ativa  em ação.


quinta-feira, 7 de novembro de 2024

geofilosofia

 

A ideia de que o Brasil é um país “em desenvolvimento” é sempre colocada em oposição a duas outras espécies de países: os já “desenvolvidos” ( Europa e EUA) e os “subdesenvolvidos” ( África e América Latina, sobretudo).

O Brasil estaria no “meio”, como se o mundo  fosse uma fila :  quem está no meio dela , como nós,  deve olhar para frente, seguir o “líder”, e não olhar muito para quem está atrás, mesmo que sejam nossos irmãos. 

Essa visão nasceu da “ideologi4 do progresso”, que colocou a Europa e os EUA como modelos de sociedade  a serem seguidos.

Essa ideologi4 vende a ilusão de que se seguirmos os líderes um dia chegaremos aonde eles estão.  Mas será que os países que são hoje desenvolvidos um dia foram subdesenvolvidos?

O que caracteriza os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos é que eles foram objeto de exploração colonialista, incluindo  a escravidão.  Já a maioria dos países chamados  desenvolvidos foram aqueles que exploraram, como colônia,  os que hoje são subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

Os EUA foram colônia no passado, mas os explorados eram sobretudo os negros que lá viviam.  

A visão de que a história das sociedades é uma fila rumo a uma realidade  na qual  a Europa e os EUA já estão, essa visão aliena os povos da América Latina de se verem lado a lado e ameaça a existência dos povos indígenas ( cujas terras são  um obstáculo à exploração econômica , impedindo o tal “progresso”).    

Devemos suspeitar da história euroestadunidense centrada  e redescobrir a geografia política. Ou, como diz Deleuze, a geofilosofia.

A geofilosofia  nos põe  diante do plano horizontal de  nossas vizinhanças, e nos faz  ver que não temos futuro se extinguirmos nossos ancestrais e suas florestas .

 Os países desenvolvidos não são nosso futuro, na verdade alguns deles são aqueles que nos roubam a possibilidade de  um futuro, o nosso e o de nossa vizinhança.  Inclusive,  o tal líder do “mundo desenvolvido”  colocou um muro farpado medieval  em suas fronteiras  para manter seus vizinhos pobres à distância...

 A geofilosofia nos mostra que a ideologi4 do progresso euroestadunidense centrada, hoje reforçada  pelo culto fundamentalist4 da  “prosperidade”, essa ideologi4 sinistr4   escamoteia um presente predador que ameaça o futuro  do próprio planeta  .

 Creio que a resistência a esse quadro passa  pela formação de blocos-alianças e agenciamentos de países    e povos que se reconheçam vizinhos na construção de um mundo  pluri e multipolar.

Nossa referência não deve ser EUA ou Europa, mas as aldeias dos nossos  povos originários como espaços integrados à Natureza, a mesma de que fala Espinosa.


Acordei hoje me lembrando desses versos de Maiakóvski:

“Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?

O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las.
Rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.”

 

( este livro é apenas uma sugestão)






Trecho do filme "O declínio do império americano":






Trecho da música : “Com Deus do nosso lado” ( de Bob Dylan):


“O país do qual eu vim

Se chama Meio Oeste

Fui ensinado e criado lá

Para as leis obedecer

E a terra em que eu vivo

Tem Deus do seu lado

 

Oh,os livros de história contam

Eles contam isso tão bem

O ataque da cavalaria

Os índios que caíram

O ataque da cavalaria

Os índios que morreram

Oh,o país era jovem

Com Deus ao seu lado.

 

A Guerra Hispano-Americana

Teve o seu dia

E a Guerra Civil também

Logo se foi

E os nomes dos heróis

Que fui obrigado a memorizar

Com armas em suas mãos

E Deus ao seu lado.

 

A Primeira Guerra Mundial,rapazes

Ela veio e se foi

A razão para a luta

Eu nunca consegui entender

Mas eu aprendi a aceitá-la

Aceite-a com orgulho

Pois você não conta os mortos

Quando Deus está do seu lado.

 

A segunda Guerra Mundial

Chegou ao fim

Nós perdoamos os alemães

E então,nós éramos amigos

Embora eles tenham assassinado seis milhões

Nos fornos que eles fritaram

Os alemães agora também

Tem Deus ao seu lado.”

 


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Os afetos em Espinosa

 

                                     OS AFETOS EM ESPINOSA[1]

 

Segundo Espinosa, são três os afetos originários: o desejo, a alegria e a tristeza. Depois Espinosa acrescenta mais dois afetos básicos: o amor e o ódio. O amor e o ódio vêm depois porque eles são afetos que dependem de objetos, ao passo que alegria e tristeza são processos internos ( por isso , são chamados “paixões”: paixões alegres e paixões tristes). O desejo, a alegria, a tristeza , o amor e o ódio: esses são os afetos principais dos quais todos os outros afetos decorrem . Alegria e tristeza, amor e ódio formam pares antagônicos, porém o desejo é único, ímpar.

Espinosa também diz que “O desejo é a essência do homem.” Essa essência varia aumentando ou diminuindo , se potencializando ou se despotencializando, conforme a existência que levamos. A essência ( o desejo) expressa nossa singularidade, enquanto  que nossa existência se traduz nos encontros que fazemos. Amor e ódio são afetos nascidos dos encontros , encontros esses que aumentarão ou diminuirão o nosso desejo, a nossa essência. Os bons encontros geram amor e alegria: o desejo se intensifica;  os maus encontros acarretam ódio e tristeza: o desejo se enfraquece. Como o desejo é vida, é a vida que é aumentada ou diminuída conforme os encontros que fazemos. A tristeza e o ódio não fazem parte da essência , pois a essência é o desejo.

Porém, como a essência em Espinosa não vive apartada da existência ( como acontece em Platão e no restante da filosofia), a tristeza e o ódio podem enfraquecer a tal ponto o desejo que este pode até mesmo desejar se submeter à tristeza e ao ódio, como se esses fossem sua essência, gerando assim a servidão. Contudo, Espinosa não demoniza a tristeza e o ódio, tais afetos fazem parte da existência humana, eles não são “pecados” , nem mais fortes que a alegria e o amor. A tristeza e o ódio fazem parte da existência humana tal como os relâmpagos e as tempestades fazem parte da existência do céu.

 Mas o céu não é só relâmpago e tempestade, o céu também pode ser de azul claro e translúcido: o céu também pode ser  de alegria. Em latim, “desejo” é “cupiditas”: “relativo a Cupido”. Diferentemente do “Eros” grego, que abandonou  Afrodite (o corpo) para ficar apenas com  Psiquê ( a alma), o Cupido latino é , ao mesmo tempo, alma e corpo ( e os une).

O amor não é a ausência do ódio, nem a alegria é a ausência da tristeza.  O ódio é a despotencialização do amor, sua ausência em relação a si mesmo, o seu colocar-se do avesso. A  tristeza é  a despotencialização da alegria tendo como causa o enfraquecimento do desejo. São a alegria e o amor que explicam a tristeza e o ódio, pois a tristeza e o ódio não se explicam por si mesmos.

Segundo ainda Espinosa, somente um afeto afirmador da vida pode vencer um afeto que a enfraquece. Os raciocínios são importantes, porém não é racionalizando a tristeza e o ódio  que se pode vencê-los, pois os afetos também se enraízam no corpo, e o corpo é infenso a raciocínios.

Quando a gente compreende as razões de existirem a tristeza e o ódio ( e compreender é mais do que racionalizar,  teorizar ou julgar), dessa compreensão nasce uma alegria que vence a própria tristeza que nos impedia de pensar e agir.



[1] Texto elaborado pelo prof. Elton.



Este livro é apenas uma sugestão:



domingo, 3 de novembro de 2024

Espinosa e o ânimo

 

Para Espinosa, não apenas as ideias são modos ou  maneiras da mente, os afetos igualmente  o são. Os afetos também envolvem o pensamento: eles são modos ou maneiras de pensar, um pensar que também  sente.

Por essa razão, há uma diferença entre as ideias e os afetos: enquanto as ideias dizem respeito à mente em seu aspecto intelectual-cognitivo, os afetos expressam a mente enquanto “ânimo”. O ânimo é a mente enquanto unida indissociavelmente ao corpo, isto é, à vida.

Espinosa às vezes emprega a palavra “coração” como sinônimo de ânimo. Não o coração enquanto sede de sentimentos subjetivos, mas sim como força que age : etimologicamente,  “coragem” é o coração que ousa agir. Sobretudo quando a escuridão em torno cega a inteligência , esta deve largar as rédeas e deixar a força que nasce do ânimo nos conduzir.  

A covardia e o  medo ,ao contrário, são  uma forma de des-ânimo: enfraquecimento ou despotencialização do nosso ânimo, isto é, de nossa mente e de nosso corpo.

Talvez seja por isso que as tir4ni4s se tornam mais fortes quanto maior for nosso desânimo... E, ao contrário , o ânimo potencializado é sempre o agente de emancipação e dignidade  da vida, tanto a pessoal quanto a coletiva.  O ânimo fortalecido não apenas resiste, ele também luta, persevera,  congrega e cria: no sentido amplo da palavra, educa.

Os filósofos e poetas que mais nos tocam e afetam são aqueles que  escrevem e falam não  apenas com a mente, teoricamente ; eles falam e escrevem também com o ânimo, vitalmente :  para que os leiamos ou ouçamos não apenas com  olhos e ouvidos   , mas com todo nosso ser , que assim se enche de ânimo para produzir e agir.


( A referência do texto é a obra  “Ética”, Parte 2, axioma 3. O livro de Nise é apenas uma sugestão de leitura. Como ensina Nise inspirando-se em Espinosa, a mão que pinta, esculpe e borda também fortalece o ânimo e auxilia na  conquista de  saúde mental . A mão  que cuida e doa também fortalece o ânimo, ao passo que   adoece o ânimo  a mão que , egoisticamente, apenas sabe contar dinheiro ... )








sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Mensagens...

 

Na mitologia , Hermes é considerado  o “deus mensageiro”: é ele que leva as mensagens. Porém, a expressão “Deus” ( ou “Divindade”) não é adequada para traduzir o universo poético-criativo dessas narrativas originárias.

A ideia de “Deus”  pressupõe a separação entre o artista (Deus) e sua obra ( a natureza): Deus teria criado o mundo do nada, pois ele existia antes de sua obra.

Mas tal visão não se aplica à invenção poética dos gregos. O Amor , por exemplo,  não existia antes de Eros nascer: Eros é o Amor mesmo em suas variadas formas, a inseparabilidade do artista e sua obra ; do mesmo modo, não existiam mensagens antes de Hermes  surgir : Hermes expressa a mensagem e os vários sentidos que ela pode ter, além de  sua variedade de meios ( palavras, gestos e objetos, por exemplo, são meios diferentes através dos quais  mensagens podem ser transportadas e comunicadas).

Por isso, em vez de “Deus”, a expressão mais adequada é “Potência”: Eros, Hermes, Dioniso, Atena...são a Potência do Amor, das Mensagens, das Artes e do Conhecimento enquanto processos que podem ser reinventados, pois nunca se reduzem a uma forma única presa no passado.

Mas as mensagens que Hermes carregava não eram feitas apenas de palavras , pelo seguinte motivo :  quando era ainda criança , Dioniso   foi  vítima do  ódio e da vingança  , sendo despedaçado pelos seus carrascos.

Hermes então recolheu e guardou o coração de Dioniso, antes que os vingativos e ressentidos o esmagassem. Desde então, Hermes só  transporta mensagens que aceitem ter um coração dentro.

Suas mensagens não trazem apenas  meras informações utilitárias, mas sentidos emancipadores que educam, sensibilizando. Nunca tais mensagens  se prestam ao ódio ou ao preconceito, e sim à  gentileza e ao cuidado, mesmo quando criticam.

Isso também significa que toda mensagem tem um coração, que é o seu sentido, e cada um interpreta esse sentido conforme o coração  que tem. Se o coração de alguém for generoso, enriquecerá o sentido; se o coração for mesquinho, apequenará o sentido.

Vencendo a barreira da prosa, tais mensagens também se expressam no verso e no canto. Elas também podem ser ditas em gestos , objetos e  em obras de arte, desde que sejam para defender e potencializar a vida, para assim resistir e  lutar contra tudo aquilo que quer despedaçá-la.

São mensagens assim  que o poeta deseja também escrever, quando diz: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento” (Manoel de Barros).

Essas potências criadoras-poéticas  existem para serem achadas também em nós, e reinventadas.

 

                                                                                                                                             

(foto: em protesto contra a violência hedionda, moradores da comunidade da Maré , onde nasceu e cresceu Marielle, resistem por meio de um gesto-mensagem: plantam flores , potência de vida, nos buracos das balas. Sua mensagem afeta e  conscientiza, mesmo sem o suporte das palavras)



 



sábado, 26 de outubro de 2024

O poeta e os fluxos

 

Certa vez, uma aluna de uma  simpática turma  me perguntou de qual poema de Manoel de Barros  eu mais gostava. “A resposta  é  muito difícil, são tantos os poemas dele que amo...rs...”, respondi com humor.

Mas para não deixar a turma sem resposta, citei este: “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.”

Interpreto esse “trilho” do qual fala o poeta como uma espécie de “amarra prévia” que impede criações, invenções, ousadias, subversões , enfim, descobertas. Pois todas as descobertas , inclusive as  autodescobertas, acontecem em desvios ou caminhos  ousados   por um  andar sem amarras.

Como todo pensador original , o poeta não aprecia trilhos já demarcados, ele prefere vias  que se traçam em chão ainda não pisado: “O andarilho abastece de pernas as distâncias”, ensina Manoel.

Os machistas gostam  de dizer: “Mulher direita anda nos trilhos”. Para eles , “trilho” é o poder falocrático  que sujeita a mulher ao caminho pré-determinado pelo  homem.

A água de que fala o poeta é fluxo perseverante que vence as pedras, tanto as pedras físicas quanto as simbólicas. Nunca sobre trilhos, é abrindo trilhas que um fluxo cria direções novas.

Há uma diferença fundamental entre a água compreendida como fluxo emancipador ( ou “linha de fuga”)  e a água que, passiva e acomodada, amolda-se à forma do recipiente na qual ela é contida e aprisionada.

O hoje muito citado sociólogo  Zygmunt Bauman criou a noção de “realidade líquida” para descrever a volubilidade e falta de consistência das realidades políticas, afetivas e até cognitivas que hoje vivemos. O modelo de tais realidades líquidas é a liquidez volátil do Capital que a todos quer assujeitar à sua lógica predadora, individualista, desumanadora.

Segundo Bauman,  o Capital modela as realidades sociais e psíquicas  e as torna líquidas para conformá-las em  seus moldes efêmeros,  rasos: após  apresentadas como novidade para serem  “consumidas”, em pouco tempo tais realidades   já se tornam   sucata , tanto as coisas como os sentimentos, sendo então alijados  e  tratados como   descartáveis, incluindo os seres humanos e seus direitos.

Porém , muito diferente de tal “realidade líquida” descrita por Bauman são os fluxos incontíveis  enquanto potência poética-existencial  ensinada por Manoel.

 Os fluxos não cabem em moldes,  fôrmas, trilhos...Todo fluxo nasce de uma fonte, e por isso todo fluxo sempre fontaneja:  produzindo  fontes em nossos olhos, mente e sensibilidade, para que deles fontanejem ideias e ações que  não se deixam barrar  por pedras, por mais duras e intransponíveis  que elas aparentem ser.

Como também ensina o poeta W. Blake: “A cisterna contém, a fonte transborda”.

 

(Imagem: Manoel lendo  o poeta-filósofo Heráclito, o primeiro a pensar os fluxos...)



 


 





“Arte é purificação, e não pureza; libertação, e não liberdade.”

(Clarice Lispector)

 

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

as mãos de Escher

 

Chega de teorias, de promessas de ser. Não escreverei mais, não mais falarei; vou fazer, construir, inventar. Não quero mais contemplar, nem figurar mundos possíveis. Quero apenas uma matéria, uma vida para modelar: serei o barro, o metal, a matéria...Mas também serei o artista, o artesão, as ferramentas, as cores e a singular perspectiva.Vou esculpir a mim mesmo, serei minha obra a inventar.

Não a farei segundo cânones ou técnicas, tampouco de acordo com  regras desta ou daquela escola. Simplesmente me farei, me inventarei, me esculpirei. Será a mão quem me fará. Retirarei dela anéis, alianças, unhas...A quero nua, criança.

Ela então começa...Esculpe meu detalhe, meu contorno e espaços, de dentro e de fora. Esculpe meu peito que respira, esculpe meus desejos que nascem agora. Ela esculpe meu coração e o que nele sente. Ela vai esculpindo, sem projeto, sem a priori, sem expectativas. Ela apenas esculpe, cria, inventa, faz. Eu não antes era, tampouco serei. Sou todo agora, e este agora é processo, fazer-se.

Falta pouco, quase nada. A mão já esculpiu o braço , o antebraço, o punho...Falta agora somente mais uma coisa para ela me concluir: falta minha mão esculpir minha mão. Falta ela esculpir a si própria. Resta o produtor coincidir com o produto, resta o artista ser a própria obra.

A mão então se contorce, tenta alcançar seu ser, que no entanto escapa. Não adianta virar do avesso, pois criar uma vida nova não é virar uma vida antiga pelo avesso.

Então, a mão para, estanca, treme, parece ter chegado a um limite.É nesse momento que o pensamento vem tomar-lhe o lugar . Ele que ali , no entanto, sempre estivera. Pois o pensamento é  a mão da mão, ele é o fazer que pensa. Assim, sabendo-me  rascunho, obra se fazendo, anexata, liberto-me  de toda vontade de ser obra acabada.

 

Quero escrever movimento puro.

(Clarice Lispector)

 

É verdade que, no caminho que leva ao que cabe pensar,

tudo parte da sensibilidade.

(Gilles Deleuze)

 

                                                              ( Escher)

 

domingo, 20 de outubro de 2024

crer e criar

 

“Criar” e “inventar” são atos diferentes. “Inventar”  aplica-se  a coisas. Celular ,  automóvel,  relógio... existem porque foram inventados. Já o “criar” refere-se a atos cujos produtos são uma forma de  arte. 

“Criar” tem origem na antiga palavra “creare”. De “creare” também se origina  “crer” . No passado, “creare” significava tanto crer como criar. É por isso que somente cria quem crê, e quem crê sempre cria, mesmo diante das maiores impossibilidades.

Porém, não se trata de um “crer” religioso, mas sim de um processo semelhante à crença transmutadora do pintor que crê nas tintas, ou   do  músico que crê  na música, ou do  poeta que crê na poesia , ou  do professor que crê na educação.

Não só um poema é criado , uma filosofia também o é.  Criar uma filosofia é crer no pensar questionador, criar um poema é crer no sentir transformador. Só cria novas possibilidades para a vida que crê na sua potencialidade; quem não crê , resigna-se às  impossibilidades.

Quando Nietzsche afirma: “Só podemos destruir sendo criadores”, ele quer dizer  que não basta sermos críticos/destruidores  em relação a algo, pois é preciso , antes, sermos criativos para propor algo diferente disto que criticamos. E este algo diferente devemos nos esforçar para torná-lo real , primeiro, em nós mesmos, em nossas palavras e ações, mas sem presunção ou arrogância, com modéstia.

É em razão dessa diferença entre criar e inventar que também dizemos  : “criei um filho”, e não “inventei um filho”; ou “criei um laço de amizade”, e não “inventei um laço de amizade”; ou “criei um jardim” ,e não “inventei um jardim”. Pois tais realidades que criamos também são formas de arte nas quais acreditamos , nada tendo a ver com coisa mecânica ou “algoritmizável”.

A inventividade produz apenas coisas; e as coisas , por não possuírem vida, podem virar instrumento de morte a serviço de uma mentalidade mórbida ( como os celulares nas mãos dos f4scist4s...)

Porém a criatividade autêntica produz ideias emancipadoras e afetos ativos :  ideias e afetos, como ensina Espinosa, são a vida e a saúde do pensamento. 

Em todo totalitarismo , não importando se político , comportamental ou acadêmico, são sempre os criativos os que sofrerão as maiores consequências. E são sempre deles, e neles, que nascem e perseveram as resistências.


                     ( Imagem: “O núcleo da criação”/ Frida Kahlo)





terça-feira, 15 de outubro de 2024

Ao dia das professoras e professores

 

Tempos atrás, numa bela manhã de outubro, vi passar um senhor bem idoso, porém firme e altivo.  Vê-lo fez reviver dentro de mim uma palavra que há muito  eu não  dizia. Foi a “potência-alegria” de que fala Espinosa o que senti ao saber   que tal palavra  ainda em mim  vivia , à espera  de reencontrar aquele a quem ela designa e nomeia.

 Essa palavra não estava escrita no meu cérebro onde se acumulam teorias, ela  estava guardada em meu coração ,lugar do Afeto,  junto à lembrança dos seres que conheci e que me tornaram o que sou. Inteligências podem ser artificiais, mas nunca o Afeto que singulariza e potencializa.

Foi então do coração que a palavra veio subindo, já com pleno sentido, embora ainda sem se vestir com o som. Quando ela chegou à minha boca, tornou-se voz e chamou: “Mestre!!!”.  Aquele senhor era um querido  professor que tive há muito tempo. Por coincidência , o reencontro se deu próximo  ao Dia dos Professores...

Ele me reconheceu , sorriu e estendeu a mão para  mim, encontrando  a minha que já lhe estava estendida  desde a primeira aula dele que assisti .  Não sei ao certo quanto tempo conversamos, o durar do afeto não o mede relógios.

Quando nos despedimos, fiquei parado vendo-o ir, e pensei: “Será que ele sabe o quanto foi importante em minha vida?”

Antes de ele ir, olhei  seu rosto e tive a impressão de que ele também estava a   recordar-se do mestre que teve e que o inspirou a ser professor, e por isso ele entendia minha gratidão. E esse outro mestre do mestre, se vivo estiver, também deve estar se lembrando, hoje,  daquele que o fez professor: “O aprender vem antes do ensinar”, lembra-nos Deleuze.

 O autêntico professor gosta de ensinar porque, antes, amou aprender com aquele que lhe ensinou  lições que não  estão apenas  em livros, mas também nas ações.

 Creio  que nos tornamos professores quando o mestre que nos fez mestre não vive  apenas fora, ele passa a viver  dentro da gente, e com ele continuamos a aprender , mesmo  enquanto ensinamos.

Por isso, hoje também é dia de cada professor se lembrar daquele do qual foi educando no aprendizado do mundo e de si mesmo.

Assim,  apenas  sob certa perspectiva aquele meu antigo mestre se afastava de mim,  sob outra perspectiva ele nunca de mim saiu  desde que , com suas aulas, em minha vida entrou , passando a viver na companhia de  outros estimados mestres que igualmente entraram  em mim e me tornaram o que sou : a querida  Professora Nadyr ( minha primeira professora de filosofia e quem me libertou), o  inesquecível Cláudio Ulpiano, o generoso Luiz Alfredo Garcia-Roza , o grande Gerd Bornheim e o sábio   Junito Brandão .

Como ensina o mestre-poeta Manoel de Barros: “O melhor de mim sou Eles”.

 

Um fraterno abraço às professoras e professores pelo seu dia!

 

 

(Imagem: o professor Deleuze em sala de aula)



 

Há uma querela etimológica acerca do termo “aluno”. Muitos traduziam o termo “aluno” como “sem luz”, “privado de luz”. Porém, a pesquisa etimológica do termo indica que “aluno” seria : “o que está sendo alimentado”. Mas alimentado do quê? E aqui talvez esteja  a causa dessa confusão. Durante muito tempo, identificou-se o conhecimento à luz. Antigamente, em colégios ortodoxos  , porém essa prática é mantida até hoje em alguns colégios mais conservadores, nas cerimônias de formatura os alunos entravam com uma vela apagada. Depois, um professor mais antigo, geralmente o “decano”, adentrava  com uma vela acesa e passava sua chama às velas apagadas dos alunos, “alimentando-os” com luz. Nessa visão mais conservadora-ortodoxa, a luz do conhecimento viria apenas do professor, estando os alunos privados dela. Por essa e outras razões, prefiro os termos educador e educando. “Educador”: “aquele que guia”, no sentido de orientar ou dar uma direção ( como uma bússola); “educando”: “aquele que é guiado ou orientado”, porém sobre as próprias pernas e trilhando seu próprio caminho. O educador não anda à frente do educando, ele anda ao lado. E ambos se fazem companhia. “Companhia” vem de “com-pane”: “partilhar o pão”. No caso, o pão do conhecimento.




sábado, 12 de outubro de 2024

devir-criança

 

“Um pouco de possível, para não sufocarmos...”, dizia Foucault. Essa frase não expressa desespero, mas um desejo de criar meios para achar oxigênio  não apenas para nossos pulmões, mas sobretudo para nossa sensibilidade e mente.

Não por acaso, em grego esse “ar do possível” , oxigênio da vida, se chama “Pneuma”. Em latim, “Spiritus” ( enquanto sopro vital que une mente e corpo, como ensina Espinosa).

Creio que um sopro  assim pode ser encontrado também na poesia de Manoel de Barros. Neste Dia das Crianças, lembrei de uma passagem de sua obra na qual se pode respirar um oxigênio alimentador de nossas ideias e práticas.

Quando fez 80 anos, Manoel de Barros recebeu pedido   de um editor para que escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e, sobretudo, da velhice. Com sua avançada idade, o editor supunha que o  poeta teria muito a dizer sobre si .

Passado algum tempo, o poeta enviou ao editor o primeiro livro: “Memórias da primeira infância”.  Em todos os sentidos, o livro foi um sucesso.

 Tempos depois, Manoel enviou novo livro ao editor: “Memórias da segunda infância”. Como diz Manoel, poesia é saber que      “não vem em tomos” . Assim, a segunda infância não era uma sequência da primeira , não era  uma infância posterior . A segunda infância era uma segunda ida do poeta à infância sempre primeira.

Manoel reservava ainda fôlego para uma nova ida à infância, e assim enviou ao editor um terceiro livro: “Memórias da terceira infância”. Um livro regenerador...

O tempo passou, o poeta nada mais enviou ao editor, que tomou coragem e indagou: “Poeta, suas três memórias da infância são extraordinárias, porém onde estão as memórias da vida adulta e, principalmente,  da velhice?”

Manoel respondeu : “Só tive infância”. E completou: “Nunca tive velhez. Só narro meus nascimentos”.

Essa infância, enquanto antídoto à “velhez”, não é uma determinada idade. Pois ela também é a infância da linguagem, o seu fazer-se novidade para dizer o que ainda não foi dito: “As crianças sabem dizer palavras que ainda não têm idioma”.

No poema “Invenção”, Manoel diz: “Criei um menino para me ser, ele nasceu da ponta do meu lápis”. Assim que nasceu, o menino disse ao poeta: “Você me criou para eu te inventar poeta”. Esse menino, diz Manoel, “é a criança que me escreve”. Não é, portanto, a criança que ele foi, mas um devir-criança necessário para enfrentarmos a “velhez”.

“Velhez”  nada tem a ver com “velhice”. Chico, Bethânia, Gil, Paulinho da Viola , Tom Zé , o próprio Manoel são exemplos de que velhice nada tem a ver com  velhez. A velhez é o antipossível que sufoca.

A velhez  também é a estupidez das guerras arquitetadas  por velhacos , cujas primeiras vítimas são sempre as crianças de ambos  os lados do front .  

 Arte, criatividade, educação....são potências críticas ,  criativas e cuidadoras que , apesar das atmosferas sufocantes  , não nos deixa faltar o ar.

 




 

Este curta narra a história de uma criança pobre de periferia que encontra um potentíssimo sopro de possível, apesar da velhez entorno: