domingo, 22 de dezembro de 2024

Brincatividades

 

Quando eu era criança, bem criança, meus pais só podiam me dar de presente de natal brinquedos  bem simples, como carrinhos de plástico . Eu recebia tais brinquedos e , agradecido, os guardava , quase não brincava com eles.

Pois esses brinquedos e outros que dependiam do dinheiro não me faziam falta , pois eu gostava mesmo era de brincar com as próprias coisas, subvertendo  seus sentidos e usos utilitários.

Por exemplo, eu gostava de pegar o chinelo de meu pai e fazer de carrinho. Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava nada, pois estava em meus olhos a fonte de vê-lo outra coisa diferente da “visão acostumada”.

Minha mãe era costureira. Eu também gostava de brincar com os carretéis de linhas multicoloridas dela, para assim inventar um Fio de Ariadne como linha de fuga   para tecer outros mundos.

Há uma diferença entre fantasia e criatividade. Imaginar que há fantasmas debaixo da cama é fantasia, e fantasia assim alimenta o medo que infantiliza e apequena.    Mas jogar um lençol sobre a cabeça para brincar de fantasma, isso é criatividade que esconjura o medo e faz crescer por dentro o pensamento livre. O fantasioso é refém de sua mente, já o criativo faz de sua  mente um meio para ressignificar o mundo.

 Brincar com o carrinho de plástico era bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente,  de transmutar o sentido do que está dado.

Quando cresci, li no poeta Manoel de Barros algo que me ajudou a compreender esse processo lúdico-transmutador.

Manoel diz que a poesia nasce de uma brincatividade originária, brincatividade essa que existe antes da palavra, na imanência da vida. Quando essa brincatividade ganha nossos olhos, ela os empoema , fazendo nossos olhos   “transverem  o mundo”.

Hoje, creio que somente consigo enxergar  possibilidades de mudar a realidade  , por menor que seja essa realidade e por mais simples que seja a mudança, quando aquele olhar ludicamente subversivo do menino renasce em  mim, abrindo os olhos do adulto.

Às amigas & amigos, desejo-lhes um Feliz Natal e Boas Festas , sobretudo com saúde, saúde do corpo e da mente em mútuo auxílio, como ensina Espinosa.  E que possamos cultivar e partilhar olhares que transvejam caminhos novos ,pessoais e coletivos.

O tempo não é um velho, mas uma criança: dentre seus vários brinquedos, o sempre novo é a esperança.


(Como “Cartão de Boas Festas”, partilho aqui a obra  “Iemanjá” / do artista cubano  Manuel Mendive. Na língua iorubá, “Iemanjá” significa “Mãe que gera”, como Pachamama e Gaia , figuras da Mãe-Terra)



 


O mundo do menino impossível

(Jorge de Lima)

 

Fim da tarde, boquinha da noite

com as primeiras estrelas

e os derradeiros sinos.

 

Entre as estrelas e lá detrás da igreja

surge a lua cheia

para chorar com os poetas.

 

E vão dormir as duas coisas novas desse mundo:

o sol e os meninos.

 

Mas ainda vela

o menino impossível

aí do lado

enquanto todas as crianças mansas

dormem

acalentadas

por Mãe-negra Noite.

O menino impossível

que destruiu

os brinquedos perfeitos

que os vovós lhe deram:

o urso de Nürnberg,

o velho barbado jagoeslavo,

as poupées de Paris aux

cheveux crêpes,

o carrinho português

feito de folha-de-flandres,

a caixa de música checoeslovaca,

o polichinelo italiano

made in England,

o trem de ferro de U. S. A.

e o macaco brasileiro

de Buenos Aires

moviendo da cola y la cabeza.

 

O menino impossível

que destruiu até

os soldados de chumbo de Moscou

e furou os olhos de um Papai Noel,

brinca com sabugos de milho,

caixas vazias,

tacos de pau,

pedrinhas brancas do rio...

 

“Faz de conta que os sabugos

são bois...”

“Faz de conta...”

“Faz de conta...”

E os sabugos de milho

mugem como bois de verdade...

 

e os tacos que deveriam ser

soldadinhos de chumbo são

cangaceiros de chapéus de couro...

 

E as pedrinhas balem!

Coitadinhas das ovelhas mansas

longe das mães

presas nos currais de papelão!

 

É boquinha da noite

no mundo que o menino impossível

povoou sozinho!

 

A mamãe cochila.

O papai cabeceia.

O relógio badala.

 

E vem descendo

uma noite encantada

da lâmpada que expira

lentamente

na parede da sala...

 

O menino pousa a testa

e sonha dentro da noite quieta

da lâmpada apagada

com o mundo maravilhoso

que ele tirou do nada...

 

Chô! Chô! Pavão!

Sai de cima do telhado

Deixa o menino dormir
Seu soninho sossegado!

 




 

 


Nenhum comentário: