sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Manoel de Barros: vespral

 

As ideias não são a mesma coisa  que as palavras. Às vezes, nasce no poeta uma ideia nova, mas  sem que haja  na língua dada  uma palavra que traduza o sentido da ideia que lhe nasceu. Para o poeta, a ideia nascente  é como uma alma nova que requer um corpo também novo para expressá-la. 

Para partejar de si essa alma nova  e colocá-la no mundo, o poeta precisa também criar uma palavra nova, um neologismo: para que a palavra enfim seja  ,  para a ideia criada, corpo e  abrigo.

O poeta Manoel de Barros criou vários neologismos, muitos deles inspirados na fala popular do Pantanal. Um neologismo manoelino de que gosto muito é :  “vespral”.

O vespral é uma espécie de “véspera” de uma realidade  transmutadora que  está na iminência de acontecer: vespral é a véspera de algo inaugural.

 No poema “Vespral de chuva” , Manoel descreve os acontecimentos que serão  o vespral da chuva que transfigurará o Pantanal.

Sobretudo quando há muito não chove, e a natureza inteira padece de sede, é nessa ocasião que acontece o vespral .

Não apenas o homem, mas todos os seres, incluindo as plantas e os bichos , sentem a chuva que se anuncia : o vento, o céu , o ar, os cheiros ...todas essas realidades   mudam de comportamento  quando se tornam a véspera de um acontecimento inaugural.

Pois o  vespral não é uma espera ansiosa , ele é uma certeza, uma certeza também corpórea,  de que o tempo logo trará o que tanto falta: as águas da regeneradora  chuva.

Em geral, o vespral acontece à noitinha, quando sobe da barra do horizonte a massa de nuvens intumescidas  da água que beberam do oceano .  Em meio aos relâmpagos que as iluminam por dentro, as nuvens então  desabrem e delas se liberta a chuva que a tudo salva, regenera, enche de vida.

E as águas que antes viviam  no distante oceano, sob a forma de chuva caem do céu e  são sorvidas para o útero da terra, que assim engravida para depois parir fontes das quais brotarão  águas cristalinas.

Quando a chuva passa , as crianças saem à rua com “olhos de descobrir”. Pois depois da chuva tudo se torna diferente do que ontem era . Mais do que nos adultos, são nas crianças que florescem olhos de descobrir.

 E é com elas, com as crianças, que o poeta aprende a ver com olhos inaugurais  assim, mesmo diante das coisas que ele muito já viu.

Não são olhos para descobrir novidades tecnológicas que “amanhã já  virarão sucata”, são olhos de descobrir caminhos, aberturas, saídas, horizontes ...sobretudo quando se encontra à frente uma realidade turva que rouba a visão e cega.


( o poema sobre o vespral está no “Livro de pré-coisas”)




Letra-poema de Arnaldo Antunes:



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