As ideias não são a mesma coisa que as palavras. Às vezes, nasce no poeta uma
ideia nova, mas sem que haja na língua dada uma palavra que traduza o sentido da ideia que
lhe nasceu. Para o poeta, a ideia nascente
é como uma alma nova que requer um corpo também novo para
expressá-la.
Para partejar de si essa alma
nova e colocá-la no mundo, o poeta
precisa também criar uma palavra nova, um neologismo: para que a palavra enfim seja
, para a ideia criada, corpo e abrigo.
O poeta Manoel de Barros criou vários
neologismos, muitos deles inspirados na fala popular do Pantanal. Um neologismo
manoelino de que gosto muito é :
“vespral”.
O vespral é uma espécie de “véspera”
de uma realidade transmutadora que está na iminência de acontecer: vespral é a
véspera de algo inaugural.
No poema “Vespral de chuva” , Manoel descreve os
acontecimentos que serão o vespral da
chuva que transfigurará o Pantanal.
Sobretudo quando há muito não chove,
e a natureza inteira padece de sede, é nessa ocasião que acontece o vespral .
Não apenas o homem, mas todos os
seres, incluindo as plantas e os bichos , sentem a chuva que se anuncia : o
vento, o céu , o ar, os cheiros ...todas essas realidades mudam
de comportamento quando se tornam a
véspera de um acontecimento inaugural.
Pois o vespral não é uma espera ansiosa , ele é uma
certeza, uma certeza também corpórea, de
que o tempo logo trará o que tanto falta: as águas da regeneradora chuva.
Em geral, o vespral acontece à
noitinha, quando sobe da barra do horizonte a massa de nuvens intumescidas da água que beberam do oceano . Em meio aos relâmpagos que as iluminam por
dentro, as nuvens então desabrem e delas
se liberta a chuva que a tudo salva, regenera, enche de vida.
E as águas que antes viviam no distante oceano, sob a forma de chuva caem
do céu e são sorvidas para o útero da
terra, que assim engravida para depois parir fontes das quais brotarão águas cristalinas.
Quando a chuva passa , as crianças
saem à rua com “olhos de descobrir”. Pois depois da chuva tudo se torna
diferente do que ontem era . Mais do que nos adultos, são nas crianças que
florescem olhos de descobrir.
E é com elas, com as crianças, que o poeta
aprende a ver com olhos inaugurais assim,
mesmo diante das coisas que ele muito já viu.
Não são olhos para descobrir novidades
tecnológicas que “amanhã já virarão
sucata”, são olhos de descobrir caminhos, aberturas, saídas, horizontes ...sobretudo
quando se encontra à frente uma realidade turva que rouba a visão e cega.
( o poema sobre o vespral está no “Livro
de pré-coisas”)
Letra-poema de Arnaldo Antunes:
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