Quando eu era criança, nessa época de
Natal meus pais me presenteavam com brinquedos simples, como carrinhos de plástico.
Era o que eles podiam . Eu recebia tais
brinquedos e os guardava, agradecido.
Pois brinquedos não me faziam falta, já que eu gostava mesmo era de brincar com as
próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados .
Por exemplo, eu gostava de fazer de carrinho
os chinelos e sapatos de meus
pais. Brincando com as próprias coisas, eu subvertia seus sentidos e usos
utilitários.
Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava
nada, pois estava em meus olhos a fonte de transvê-lo outra coisa diferente
desta que todos viam. Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube
brincar com o sentido que metamorfoseia e transfigura a realidade.
Brincar com carrinho era bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho
era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente, para subverter o sentido do que está dado.
Há uma diferença entre fantasia e
criatividade. Imaginar que há monstros debaixo da cama é fantasia, e tal fantasia
alimenta o medo. Mas jogar um lençol sobre a cabeça para brincar de fantasma,
isso é criatividade que esconjura o medo. O fantasioso é refém de sua mente, já
o criativo faz de sua mente um meio para
ressignificar o mundo.
Minha mãe era costureira. Os
carreteis de linha multicoloridos , os
tecidos e suas texturas, o pedal da máquina de costura acoplado a uma roda que
parecia a “Roda da Fortuna”, todos esses artefatos do mundo eu os via como arte que convidava ao lúdico.
Muito antes de ler mitologia, creio
que foi na máquina de costura de minha mãe que descobri o que era o Fio de
Ariadne que se desdobra de um novelo. Pois sobre a máquina sempre havia um
novelo imenso do qual se desprendia um
colorido fio de lã para se tecer roupa nova.
Na minha imaginação de criança, eu
achava que aquele fio era para tecer mais do que roupas, eu
imaginava que com ele se podia tecer mundos, tal como o fio da palavra.
Quando criança , eu sentia que meu brincar não
precisava de brinquedo que o dinheiro compra, pois o brincar autêntico nasce de
dentro e muda o sentido das coisas que nos estão fora.
Quando cresci, li no poeta Manoel de
Barros algo que me ajudou a compreender esse processo lúdico-subversivo.
Manoel diz que a poesia nasce de uma
brincatividade originária, brincatividade essa que existe antes da palavra. A
brincatividade é estado existencial-poético, empoemamento, antes de ser palavra
escrita no papel.
Quando essa brincatividade ganha
nossos olhos, ela se transforma num
“transver o mundo”, para assim subverter seus sentidos costumeiros e os poderes
dados.
Manoel de Barros faz poesia com essa brincatividade que mantém vivo um devir-criança como antídoto ao viver "mesmal" e "acostumado".
( Este livro de Manoel é só uma
sugestão de presente para as crianças, ou para o devir-criança de cada um)
A alma do povo do Nordeste traduzida na alma de Dostoiévski:
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