Limpar a casa: retirar a
poeira acumulada que sufocava as cores. Lustrar os vidros da janela : até de
novo poder atravessar luz por ela.
Reorganizar as distâncias entre as coisas : para que entre elas haja espaço para o correr livre de crianças.
Reabrir a porta que mantivemos trancada: para que no coração uma linha de fuga
também se refaça.
Limpar tudo ao som da
música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina.
Por fim, forrar a mesacom uma toalha multicolorida:sobre ela colocarpão , frutas e
poesia .
Depois da casa e da alma revitalizadas, reentrarmos como alguém que nos
fizesse uma primeira visita.
“É a minha própria casa,
mas creio que vim fazer
uma visita a alguém.”
(Maria Gabriela Llansol)
“Perdoai. Mas eu preciso
ser Outros. ”
(Manoel de Barros)
“O tempo só anda de ida.”
(Manoel de Barros)
Às amigas & amigos :
desejo-lhes um 2024 com saúde ( do corpo
e da mente) , bons encontros potencializadores ( como ensina Espinosa) e poesia,
no sentido em que Manoel de Barros define poesia : “Poesia pode ser que seja
fazer outro mundo”.
Há um aspecto da “Caverna de Platão” que se encontra
apenas implícito, mas que é de papel fundamental em sua doutrina. Conforme
ensina Platão, o filósofo é aquele que sai da caverna, ou seja, o filósofo
primeiro se liberta, vence a si mesmo, desfaz os grilhões que o prendem ao senso
comum , e assim constrói , com suas palavras e ações, uma saída.
Os grilhões que prendem na caverna são as opiniões e as paixões reativas . Quando sai da caverna, o filósofo está indo para dentro da verdadeira realidade. E o traço mais característico
dessa verdadeira realidade é a presença da luz.
O filósofo se desterritorializa
em relação à caverna do senso comum e se reterritorializa, não só com a mente
mas também com o coração, na luz. O filósofo se reterritorializa na Ideia e no Afeto, que são as dimensões intelectiva e amorosa da luz. Inclusive, essa luz lhe faz crescer asas especiais nas costas : as Asas de Eros, pois não se sai da caverna sem aprender a voar com tais asas.
Essa realidade que a luz ilumina
é exterior à caverna, porém interior à luz mesma. Essa luz não é física,
tampoucoela é de natureza puramente
epistemológica. A luz que ilumina a realidade fora da caverna é a luz do Bem,
dizia Platão. Tudo o que a razão conhece tem forma e limite. Porém a luz não
tem forma: como uma fonte, ela brota de si mesma e se irradia, generosamente.
Essa luz não existe apenas para
iluminar a realidade exterior à caverna, pois sua função primeira é iluminar
por dentro a alma também. Essa luz ilumina igualmente a caverna, não a deixando apenas em treva. É
por isso que a caverna não é totalmente treva, ela é penumbra: misto entre a
treva da ignorância e a luz do conhecimento que tenta vencê-la. Não fosse por
esse rastro de luz que adentra à caverna, ninguém , nem mesmo o filósofo,
poderia se libertar da caverna onde reina a “opinião” ou doxa.
Para transpor os umbrais da
caverna, primeiro a luz ilumina o filósofo por dentro, como um raio X, e é assim que ele se
autoconhece e se esforça para vencer as sombras que estão dentro dele também.
Muitos chegam a esse umbral , porém nem todos têm coragem e virtude para
transpô-lo e ir para fora. Os que vão para fora da caverna igualmente vão para dentro de si mesmos, aprendendo a ver-se mais do que com os olhos limitados do ego , e assim se curam e encontram
remédio para as sombras internas .
Mas há aqueles que, no limite da
caverna, veem as sombras[1]
internas , porém retornam à caverna e passam a dissimular e esconder essas sombras . Eles viram que existe um mundo fora da
caverna, mas retiveram apenas o aspecto intelectual da luz, e não sua dimensão
ética. E é por isso que esses dominam apenas as palavras, e creem que a verdade
é só palavra. Esses que chegam ao umbral da caverna, porém retornam para dentro dela, se valem das palavras para tomarem
aparência de sábios. Esses que assim se comportam serão chamados , por Platão, de “sábios da
caverna” ou sofistas[2].
Os sofistas não estão agrilhoados
, eles são servos voluntários muito bem pagos, e estão presos à caverna como um todo : eles são os reis
farsantes[3]
deste mundo em penumbra.
Os que querem apenas
poder ( potestas) via de regra aceitam se subjugarem a outro poder que
seja maior que eles, desde que eles também possam exercer poder e subjugar um
outro de menor poder. Nesse tipo de relação de poder, ser sujeitado precede o
ser sujeito: ser escravo vem antes de ser senhor. Mas como um senhor nunca pode
nascer de um escravo, esse tipo de relação de poder torna todos, na verdade, escravos :
escravos do desejo de poder.
Mas quem busca a potência
( potentia) nunca aceita escravizar-se ou escravizar. Quem busca a
potência se mostra no desejo de superar-se[1].
Não superar os outros, mas superar a simesmo.
Só quem busca superar a si mesmo é senhor . Não senhor dos outros, e sim senhor
de si. Ser senhor não é ser o dono, ser senhor é ser criador no despossuir-se.
Os que querem poder
sempre encontram alguém acima com maior poder, e alguém abaixo com menor poder.
Mas aqueles que buscam a potência o
fazem porque encontram dentro de si inesgotáveis e inexploráveis realidades
ainda sem rosto, e que num misto de dor e de alegria querem ser partejadas.
[1] Nietzsche:
“Do superar a si mesmo”, Assim falou Zaratustra.
Quando eu era criança, nessa época de
Natal meus pais me presenteavam com brinquedos simples, como carrinhos de plástico.
Era o que eles podiam . Eu recebia tais
brinquedos e os guardava, agradecido.
Pois brinquedos não me faziam falta, já que eu gostava mesmo era de brincar com as
próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados .
Por exemplo, eu gostava de fazer de carrinhoos chinelos e sapatos de meus
pais. Brincando com as próprias coisas, eu subvertia seus sentidos e usos
utilitários.
Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava
nada, pois estava em meus olhos a fonte de transvê-lo outra coisa diferente
desta que todos viam. Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube
brincar com o sentido que metamorfoseia e transfiguraa realidade.
Brincar comcarrinho era bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho
era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente,para subvertero sentido do que está dado.
Há uma diferença entre fantasia e
criatividade. Imaginar que há monstros debaixo da cama é fantasia, e tal fantasia
alimenta o medo. Mas jogar um lençol sobre a cabeça para brincar de fantasma,
isso é criatividade que esconjura o medo. O fantasioso é refém de sua mente, já
o criativo faz de sua mente um meio para
ressignificar o mundo.
Minha mãe era costureira. Os
carreteis de linhamulticoloridos , os
tecidos e suas texturas, o pedal da máquina de costura acoplado a uma roda que
parecia a “Roda da Fortuna”, todos esses artefatos do mundo eu os via como arte que convidava ao lúdico.
Muito antes de ler mitologia, creio
que foi na máquina de costura de minha mãe que descobri o que era o Fio de
Ariadne que se desdobra de um novelo. Pois sobre a máquina sempre havia um
novelo imenso do qual se desprendiaum
colorido fio de lã para se tecer roupa nova.
Na minha imaginação de criança, eu
achava que aquele fio era para tecer mais do que roupas, eu
imaginava que com ele se podia tecer mundos, tal como o fio da palavra.
Quando criança , eu sentia que meu brincar não
precisava de brinquedo que o dinheiro compra, pois o brincar autêntico nasce de
dentro e muda o sentido das coisas que nos estão fora.
Quando cresci, li no poeta Manoel de
Barros algo que me ajudou a compreender esse processo lúdico-subversivo.
Manoel diz que a poesia nasce de uma
brincatividade originária, brincatividade essa que existe antes da palavra. A
brincatividade é estado existencial-poético, empoemamento, antes de ser palavra
escrita no papel.
Quando essa brincatividade ganha
nossos olhos,ela se transforma num
“transver o mundo”, para assim subverter seus sentidos costumeiros e os poderes
dados.
Manoel de Barros faz poesia com essa brincatividade que mantém vivo um devir-criança como antídoto ao viver "mesmal" e "acostumado".
( Este livro de Manoel é só uma
sugestão de presente para as crianças, ou para o devir-criança de cada um)
A alma do povo do Nordeste traduzida na alma de Dostoiévski:
Onde moro há muitas árvores bem
frondosas . Elas ficam próximas à janela do meu quarto. Em árvores assim os
passarinhos gostam de morar e construir
ninhos, pois há poucas brechas para os predadores entrarem. Assim deve ser também
nossa mente: com poucas brechas para os predadores da nossa paz e saúde entrarem. Em mentes frondosas as ideias amam fazer ninho...
Nem preciso de despertador: todo dia
bem cedinho desperto com o canto desses passarinhos. Faça sol ou
chuva, frio ou calor, os passarinhos acordam sempre da mesma maneira : eles não
ficam prostrados no galho ou ninho com a mente ainda presa no dia de ontem, eles já acordam cantando e prontos para irem
explorar o mundo , como se aquela fosse a primeira manhã de suas vidas.
À maneira deles, esses passarinhos
põem em prática o “amor fati” que ensinam os estoicos. O amor fati é uma ativa abertura
e aquiescência, na mente e no coração, diante
do
que acontece , sem juízos prévios ou expectativas ansiosas.
O amor fati é um querer viver que se
exerce vivendo no aqui e agora , já. Somente o amor fati ao que nos acontece nos
permite agir sobre o que vai nos acontecer , ao mesmo tempo nos libertando do
passado, quando o que nos aconteceu virou
uma prisão.
O amor fati é cura do ressentimento ( em relação ao que nos
aconteceu no passado) e antídoto ao medo
( em relação ao que pode nos acontecer no futuro). Pois ressentimento e medo,
como ensina Espinosa, são sentimentos
reativos que caracterizam os escravos, e
dos quais tiram proveito os tiranos de toda espécie...
Tal como nos passarinhos libertos, o amor fati
é ousadia de canto e abertura de asas.
Os filósofos que estudam a formação das
sociedades humanas ao longo da história apontam
para a existência de três agrupamentos: a família , a aldeia e a pólis ( a
sociedade política).
Na família , o chefe era o “pai”, sendo o sangue o princípio que une a família . A aldeia nasceu do agrupamento de famílias, com a mais poderosa delas ocupando
o poder e tendo a maior posse de bens e
terras. De certo modo, a aldeia é uma extensão da família tornada clã.
Mas acontece algo diferente com o
surgimento da pólis enquanto sociedade política: as relações políticas não são
uma extensão da família, tampouco a
pólis está assentada no sangue ou na
posse de bens e terras.
A sociedade política segue uma lógica
diferente da família e da aldeia: na pólis, o poder não deve ter por suporte o “homem-pai”
ou o chefe do clã, e sim a liberdade e a igualdade , incluindo a igualdade entre homens e mulheres.
Se na família o vínculo é o sangue, na
sociedade política o liame é a regra social instituída conforme deliberação
coletiva.
Os membros de uma mesma família ou clã são parentes, porém os membros de uma
sociedade política são cidadãos/cidadãs: somente na sociedade política surge o “outro”
como valor relacional fundante. Os partidos políticos, por exemplo, devem
existir em razão da sociedade política,
e não das famílias ou clãs.
Por isso, somente na sociedade
política pode haver, de fato, a socialização do ser humano : a socialização não pode ficar restrita à família , já que a socialização requer a dimensão
social do “outro”, base da educação.
A socialização pressupõe a ideia de
que o outro diferente de mim é, do ponto de vista social, um igual a mim,
independentemente se ele tem ou não meu sangue, se ele é ou não proprietário de bens e posses.
Os que têm ódio à política e exaltam
a “família conservadora ” como fundamento da “pátria” , tal como pregam o inelegível e seu “clã”, esses em geral têm baixo
grau de sociabilidade e desprezam a educação emancipadora.
Não por acaso, milícias e máfias têm uma
estrutura calcada nesse tipo de “família-patriarcado-clã” . E quando tal
família-clã vira inimiga da outra, isso sempre acaba em “derramamento de sangue”,
pois é o sangue , e não a regra social democrática, o critério que une ou
separa, com ódio mortal, aqueles cuja mente não alcançou o nível civilizatório
da pólis.
E ainda há os “liberais”, para os
quais é o indivíduo e seu ego, e não a sociedade política, o fundamento de
tudo.
Quando liberais e (ultra)conservadores
se unem , como vemos agora, nasce a aliança antissocial do dinheiro com o
sangue, do capital com o conservadorismo-patriarcal, de tal maneira que as
corporações se tornam clãs , incluindo os “clãs” da mídia corporativa, que
ameaçam a sociedade política plural e a luta pela igualdade e justiça social .
Os
poetas e filósofos gregos deram
nomes diferentes para a "alma". O mais famoso deles é Psiquê.
Na mitologia, Psiquê formava um par
com Eros, o Amor. Em grego, "Eros" também significa "asas".
Não as asas de pássaro, mas as asas de borboleta. Enquanto os pássarosjá nascem com asas, as asas da borboleta só
nascem após uma metamorfose. Pássaros nascem de ovos, borboletas nascem de
casulos.
O casulo é uma espécie de útero no
qual a lagarta torna-se a artistaque
esculpe , pinta e borda a si mesma, para assim partejar-se outra:antes ela rastejava, agora ela se alça e voa.
As asas que elevam a alma são as do
Afeto e das Ideias: poesiaefilosofia. Esse Afeto Pensante é umdos
sentidos de "phylo" em "phylo-sofia": "amor por
Sofia".
Sofia também é um dos nomes da alma.
Sofia é mais do que Razão. Em grego, "Razão" é "Logos",
palavra masculina. Enquanto "Razão" é raciocínio, teoria e moral,
Sofia é sensibilidade, criatividade, intuição e ética, assim unindo o pensar à
prática.
Outro nome da alma éPneuma. Em latim, pneuma será traduzido por
"spiritus":"sopro quente
e úmido", quente no sentido do calor da vida. Por isso, todo sopro de vida
"acalenta": "traz calor" que afasta o frio.
Pneumatambém é a brisa úmida que vem do oceano e
vivifica o deserto, nele fazendo brotarcores, flores, sementes, enfim, múltiplas vidas.
Quando o recém-nascido nasce, antes
de abrir os olhos ele inspira o pneuma , o sopro de vida. Não são apenas os
pequeninos pulmões do recém-nascido que se enchem de ar, pois cada célula é
acalentada pelo pneuma, inclusive as
células do nervo ótico, que assim se abrem para receberem a luz do mundo.
Esse primeiro pneuma que o
recém-nascido inspira o umbilicaao
Sopro Cósmico da respiração da Terra, nossa Mãe Ancestral.Não por acaso, meditar é "medicar":
prestar atenção na respiração que somos, respiração essa que nos desperta para
a compreensão de que , pela respiração, somos partes de um todo cujas outras
partes são os animais, as plantas, as florestas, enfim, tudo o que vive e
respira .
Este é o sentido originário de
"inspiração" : "ação da vida em nós", potencializando-nos.
A cada vez que respiramos, trazemos para dentro de nós o sopro de vida que irá
se acrescer ao sopro de vida que vive em nós. Quando expiramos, parte do pneuma
que estava em nós retorna ao pulmãoda
Terra , para assim ser de vida renovado.
Quando falamos palavras que educam ,
o pneuma que partilhamos enche nossas palavras com ar que oxigena as ideias de quem nos escuta.
Talvez por isso Clarice Lispector tenha
dito: “Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém”.
(Este texto é uma pequena homenagem a
Clarice, que hoje faria aniversário)
- Em Plotino, "Eros" não é o nome de apenas uma parte da alma, mas da alma inteira de quem se torna sábio. Isso talvez explique o famoso poema de Pessoa ( aqui na voz de Bethânia):
Hoje no Brasil se fala muito de “ ser
conservador” como um comportamento oposto ao de “ser criador”, “progressista”. Segundo
Espinosa, porém, há duas maneiras de “ser conservador” . Essas duas formas
podem ser explicadas , de forma simples, a partir do seguinte exemplo:
Seria absurdo querer conservar apenas
a mesa que o carpinteiro produziu, descuidando do próprio carpinteiro e sua
potência criativa de produzir mais mesas, inclusive de produzir mesas
diferentes daquelas que até hoje ele criou.
É no produtor, e não no produto, que
criar e conservar andam juntos: o que se deve conservar é o ato de produzir o
novo, e não apenas o produto pronto desse ato. Os progressistas agem para
conservarem a potência criativa do produtor ( os “direitos sociais”, por
exemplo, existem para essa função) , já
os conservadores-reacionários querem conservar apenas os produtos transformados
em propriedade que o capital comprou explorando o produtor e tirando dele os
direitos.
A prática de conservar o que é criador nos é
ensinada pela própria natureza : a própolis, por exemplo, conserva a vida da colmeia para que esta se proteja das doenças que
querem , de dentro, fragilizá-la ; e, ao mesmo tempo, a própolis é força que
ajuda a colmeia a se manter reinventando-se , perseverando na vida.
Porém criar e conservar se tornam
ideias antagônicas quando se quer colocar o conservar antes do criar, vendo no
criar algo que ameaça uma “Ordem” rígida , paranoica. Um conservar assim é o
que faz o formol: serve para conservar apenas o que já está morto e não se
reinventa mais.
Arte, filosofia, educação são
própolis; protofascismo fundamentalista é formol.
( a “Ética” é o livro-própolis que
Espinosa escreveu)
Para os estoicos e
Epicuro, a filosofia é inseparável de certos “exercícios”. Ou seja, a filosofia
é uma prática não exclusivamente teórica. Desses exercícios, o primeiro e mais
importante deles é a atenção ( prosochè).Sem
atenção perseverantemente exercitada, não há pensamento e ação fortalecidos.
É um erro dizer: “não
consigo prestar atenção nesse filme, ele é muito lento”, “não consigo prestar
atenção nesse livro, ele não tem figuras”. Pois não é algo externo que deve
despertar nossa atenção, somos nós mesmos que devemos despertar nós mesmos: toda
prática de atenção é, antes de tudo, um prestar atenção a si. Quem depende de
algo externo barulhento e agitado para ter a atenção despertada, é porque não
presta atenção em si e, de certo modo, dorme mesmo estando de olhos abertos.
Meditar, por exemplo, é
prática de prestar atenção na nossa respiração. Até o silêncio requer que
prestemos atenção nele. E não há como alguém discordar ou concordar com algo que o outro dizsem
prestaratenção não só nas palavras, mas
também nos gestos e até mesmo nos
silêncios do outro que nos fala.
Prestar atenção não é
projetar “certezas” ou (pré)julgamentos, e sim abrir-se para aprender, vivendo.
Pois de toda atenção faz parte também o corpo, uma vez que a atenção requer
sensibilidade ativa e atuante.
Assim, prestar atenção
não é querer encontrar nas coisas o que (pré)concebemos delas. Ao contrário,
prestar atenção também é estar atento a essas ideias pré-concebidas que ,
dentro de nós, impedem que em nós entrem coisas novas.
A atenção não se faz no
passado e nem no futuro, pois é sempre no presente, como abertura atenta aele, que toda atenção acontece e ensina ,
assimauxiliando a nos libertar de
condicionamentos passados e de projeções e expectativas futuras que só trazem medo, insegurança e angústia.
Outro exercício
espiritual fundamental, segundo os estoicos e Epicuro, é a prática da amizade.
Os exercícios espirituais não são feitos apenas com o ego, tampouco de forma
isolada e inacessível. Os exercícios espirituais que singularizam e
potencializam também têm na amizade o seu cultivo. Epicuro chega a dizer que
quem não é apto à amizade não é apto à filosofia, isto é, à liberdade.
A amizade, o agenciamento
de que fala Deleuze e o que Espinosa chama de “bons encontros” são exercícios de
cultivar a si mesmo cultivando igualmente a pluralidade.
Este livro de Hadot é boa uma
introdução ao tema dos “exercícios
filosóficos” visando duas clínicas: a medicina mentis ( medicina da
mente) e a medicina corpori ( medicina do corpo).
Inspirando-se em Espinosa, Deleuze
distingue duas noções : indivíduo e singularidade. Por exemplo, quando Van Gogh
assina seus quadros, sua assinatura não
se resume apenas ao nome próprio escrito na tela. A “assinatura-Van Gogh”
também são suas cores, os traços característicos de suas pinceladas , seus
tons, suas intensidades, sua perspectiva, ou seja, a assinatura-Van Gogh
expressa uma multiplicidade de signos-ideias-afetos que Van Gogh criou, para
assim devir um estilo, uma obra de arte eterna.
Enquanto o nome “Van Gogh” designa um
indivíduo que viveu em certo lugar, em certa sociedade, durante um tempo
determinado que a história documenta e informa, a “assinatura-Van Gogh”
expressa um acontecimento que mudou a própria arte, pela potência de vidaque esse acontecimento continha.
O indivíduo Van Gogh viveu uma vida
de imensos sofrimentos, vida essa que ele pôs fim com um tiro no coração. Mas o
tiro atingiu o coração do indivíduo, não o coração da singularidade-Van Gogh,
que ainda vive na eternidade que conquistou para si.
O nome próprio designa o indivíduo
Van Gogh, mas a singularidade Van Gogh ganha corpo e vida assinada como
criação,arte.
Quando Espinosa terminou sua obra
cujo título é “Ética”, ele não quis colocar seu nome nela. Pois Espinosa viveu
de modo tão autêntico , que pouco individual-egoicoele foi, para ser plenamente singularidade.
O nome “Ética” em seu livro não é
apenas um título, também é a assinatura pela qualse reconhece Espinosa como umfilósofo-artista-pensador , cuja obra é umpensar, um agir e um sentir éticos.
A singularidade-Espinosa expressa
tudo aquilo que o indivíduo Espinosa viu e pensou, mas que não cabia em sua
vida individual, que não eraapenas de
sua pessoa.
O nome “Espinosa” designa um
indivíduo que foi excomungado, que tentaram calar e matar, que sofreu as
maiores injúrias e ofensas que um indivíduo já sofreu. Mas isso não fez dele
umressentido,amargo ou conformado. Espinosanunca voltou atrás no que ensinava e jamais
se vendeu ou se traiu.
A singularidade-Espinosa vive
assinada em suas ideias, em seus afetos, conectadaao infinito que ele viveu, pensou e sentiu.
Quando o lemos, também aprendemoscomo
ele venceu aquelas injúrias e ignorâncias, e comoseu pensamento ainda nos é necessário na luta
contra asignorâncias que, ao longo da
história, apenas mudam de nome .
A assinatura-Espinosa também expressa
aquilo que em nós se afeta, pensa e resiste: quando uma obra nos afeta e nos
impele a pensar-agir-criar, é porque ela também assina aquilo que em nós vai
além de nosso próprio indivíduo e pessoa.
( imagem:
“Estrada com cipreste e estrela”/ Van Gogh)
As ideias não são a mesma coisa que as palavras. Às vezes, nasce no poeta uma
ideia nova, mas sem que haja na língua dada uma palavra que traduza o sentido da ideia que
lhe nasceu. Para o poeta, a ideia nascente
é como uma alma nova que requer um corpo também novo para
expressá-la.
Para partejar de si essa alma
novae colocá-la no mundo, o poeta
precisa também criar uma palavra nova, um neologismo: para que a palavra enfim seja
, para a ideia criada, corpo e abrigo.
O poeta Manoel de Barros criou vários
neologismos, muitos deles inspirados na fala popular do Pantanal. Um neologismo
manoelino de que gosto muito é :“vespral”.
O vespral é uma espécie de “véspera”
de uma realidade transmutadora queestá na iminência de acontecer: vespral é a
véspera de algo inaugural.
No poema “Vespral de chuva” , Manoel descreve os
acontecimentos que serão o vespral da
chuva que transfigurará o Pantanal.
Sobretudo quando há muito não chove,
e a natureza inteira padece de sede, é nessa ocasião que acontece o vespral .
Não apenas o homem, mas todos os
seres, incluindo as plantas e os bichos , sentem a chuva que se anuncia : o
vento, o céu , o ar, os cheiros ...todas essas realidades mudam
de comportamentoquando se tornam a
véspera de um acontecimento inaugural.
Pois o vespral não é uma espera ansiosa , ele é uma
certeza, uma certeza também corpórea,de
que o tempo logo trará o que tanto falta: as águas da regeneradorachuva.
Em geral, o vespral acontece à
noitinha, quando sobe da barra do horizonte a massa de nuvens intumescidasda água que beberam do oceano .Em meio aos relâmpagos que as iluminam por
dentro, as nuvens entãodesabrem e delas
se liberta a chuva que a tudo salva, regenera, enche de vida.
E as águas que antes viviam no distante oceano, sob a forma de chuva caem
do céu esão sorvidas para o útero da
terra, que assim engravida para depois parir fontes das quais brotarão águas cristalinas.
Quando a chuva passa , as crianças
saem à rua com “olhos de descobrir”. Pois depois da chuva tudo se torna
diferente do que ontem era . Mais do que nos adultos, são nas crianças que
florescem olhos de descobrir.
E é com elas, com as crianças, que o poeta
aprende a ver com olhos inaugurais assim,
mesmo diante das coisas que ele muito já viu.
Não são olhos para descobrir novidades
tecnológicas que “amanhã já virarão
sucata”, são olhos de descobrir caminhos, aberturas, saídas, horizontes ...sobretudo
quando se encontra à frente uma realidade turva que rouba a visão e cega.
( o poema sobre o vespral está no “Livro
de pré-coisas”)
Espinosa afirma: Deus
possui infinitos atributos, dos quais conhecemos apenas dois: a extensão e o
pensamento. Pensamento e extensão , mente e corpo, são partes da Natureza ( enquanto natura naturada), não
são a Natureza inteira ( a Natura Naturante).
Devemos tomar o máximo
cuidado, por isso mesmo, para não querermos imaginar os outros atributos que
não conhecemos, como se a imaginação pudesse mais do que o conhecimento nesse
campo.
Decerto que a imaginação
pode coisas diferentes daquelas que pode o conhecimento,porém poder coisas diferentes não significa
poder mais naquilo que apenas o conhecer pode.
Se cedermos à tentação e acharmos que a imaginação
poderá imaginar o que o conhecimento não pode conhecer, começaremos a duvidar da
própria potência do pensar, atribuindodeficiência ao pensamento de pensar/conhecer uma realidade mais elevada, que
somente a imaginação poderia alcançar, de tal modo que acabaremos por diminuir
aquilomesmo que podemos conhecer como
extensão ( ou corpo) e como pensamento (ou ideia). Enfim, entraremos no
delírio, que se tornará tão ou mais perigoso quando querer expressar-se no
campopolítico, o que cedo ou tarde
acaba acontecendo, outrora e agora, hoje.
Em geral, o filósofo é modesto e reconhece que o pensamento não consegue conhecer tudo, embora ele possa sentir esse tudo, ao passo que os profetas de toda ordem deliram imaginativamente que podem conhecer tudo. Mas o que querem na verdade é obediência, e por isso demonizam o pensar filosófico.
Espinosa tem um nome para essa imaginação que imagina, delirantemente, poder mais do que o conhecimento: superstição. Para Espinosa, "profeta" é mais do que um tipo religioso: é a subordinação do conhecimento da Natureza à imaginação que delira alcançar uma "sobrenatureza" como "verdade" da natureza, uma verdade que apenas ele, o profeta, tem acesso. Uma "verdade" que exige crença e obediência, e não entendimento e compreensão que realmente libertam.
Quando a imaginação
ignora a sua virtude, que é a de imaginar, e passa a querer conhecer a Natureza , correm risco o corpo e
as ideias : o corpo será demonizado,
pelos moralistas, ou narcisado, pelos egoístas, ao passo que as ideias serão confundidas com meras elucubrações
mentais, sem lastro de saúde do
espírito.
É na poesia e nas artes que a imaginação pode expressar toda a sua saúde e potência, e assim ensinar, com seus próprios meios (as imagens), aquilo que o pensar também sente.