sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Passagem de ano

 


Limpar a casa: retirar a poeira acumulada que sufocava as cores. Lustrar os vidros da janela : até de novo poder atravessar  luz por ela. Reorganizar as distâncias entre as coisas : para que entre elas haja  espaço para o correr livre de crianças. Reabrir a porta que mantivemos trancada: para que no coração uma linha de fuga também se refaça.

Limpar tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina.

Por fim,  forrar a mesa  com uma toalha multicolorida:  sobre ela colocar   pão , frutas e poesia .

Depois da casa e da alma  revitalizadas, reentrarmos como alguém que nos fizesse uma primeira visita.

                                                                                                                          

“É a minha própria casa,

mas creio que vim fazer uma visita a alguém.” 

(Maria Gabriela Llansol) 

     

“Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. ” 

(Manoel de Barros)


“O tempo só anda de ida.” 

(Manoel de Barros)

 

Às amigas & amigos : desejo-lhes um 2024 com  saúde ( do corpo e da mente) , bons encontros potencializadores  ( como ensina Espinosa)  e  poesia, no sentido em  que  Manoel de Barros  define poesia : “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”.

 

( imagem: “Porta e janela abertas” / Matisse )







terça-feira, 26 de dezembro de 2023

a caverna e a luz

 

Há um  aspecto da “Caverna de Platão” que se encontra apenas implícito, mas que é de papel fundamental em sua doutrina. Conforme ensina Platão, o filósofo é aquele que sai da caverna, ou seja, o filósofo primeiro se liberta, vence a si mesmo, desfaz os grilhões que o prendem ao senso comum , e assim constrói , com suas palavras e ações, uma saída. 

Os grilhões que prendem na caverna são as opiniões   e as paixões reativas . Quando sai da caverna, o filósofo está indo para dentro da verdadeira realidade. E o traço mais característico dessa verdadeira realidade é a presença da luz.

O filósofo se desterritorializa em relação à caverna do senso comum e se reterritorializa, não só com a mente mas também com o coração, na luz. O filósofo se reterritorializa na Ideia e no Afeto, que são as dimensões intelectiva e amorosa  da luz. Inclusive, essa luz lhe faz crescer asas especiais nas costas : as Asas de Eros, pois não se sai da caverna sem aprender a voar com tais asas. 

Essa realidade que a luz ilumina é exterior à caverna, porém interior à luz mesma. Essa luz não é física, tampouco  ela é de natureza puramente epistemológica. A luz que ilumina a realidade fora da caverna é a luz do Bem, dizia Platão. Tudo o que a razão conhece tem forma e limite. Porém a luz não tem forma: como uma fonte, ela brota de si mesma e se irradia, generosamente.

Essa luz não existe apenas para iluminar a realidade exterior à caverna, pois sua função primeira é iluminar por dentro a alma também. Essa luz ilumina igualmente  a caverna, não a deixando apenas em treva. É por isso que a caverna não é totalmente treva, ela é penumbra: misto entre a treva da ignorância e a luz do conhecimento que tenta vencê-la. Não fosse por esse rastro de luz que adentra à caverna, ninguém , nem mesmo o filósofo, poderia se libertar da caverna onde reina a “opinião” ou doxa.

Para transpor os umbrais da caverna, primeiro a luz ilumina o filósofo por dentro, como um raio X,  e é assim que ele se autoconhece e se esforça para vencer as sombras que estão dentro dele também. Muitos chegam a esse umbral , porém nem todos têm coragem e virtude para transpô-lo e ir para fora. Os que vão para fora da caverna igualmente vão para dentro de si mesmos, aprendendo a ver-se mais do que com os olhos limitados do ego , e assim   se curam e encontram remédio para as sombras internas .

Mas há aqueles que, no limite da caverna,  veem as sombras[1] internas , porém retornam à caverna e passam a dissimular e esconder essas sombras . Eles viram que existe um mundo fora da caverna, mas retiveram apenas o aspecto intelectual da luz, e não sua dimensão ética. E é por isso que esses dominam apenas as palavras, e creem que a verdade é só palavra. Esses que chegam ao umbral da caverna,  porém retornam para dentro dela,  se valem das palavras para tomarem aparência de sábios. Esses que assim se comportam  serão chamados , por Platão, de “sábios da caverna” ou sofistas[2].

Os sofistas não estão agrilhoados , eles são servos voluntários muito bem pagos, e estão presos à caverna como um todo : eles são os reis farsantes[3] deste mundo em penumbra.


                                                     ( este livro é só uma sugestão de leitura)

 



 



[1] Em um sentido próximo ao que diz   Jung.

[2] Na verdade, nem todos os sofistas se adequam a essa percepção de Platão.

[3] Como aqueles que, hoje, propagam “fake news”.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

auroras

 


Assim como a membrana

rodeia  e protege o núcleo da vida,

e o núcleo da vida é o nascer

que antecede a criança,

a aurora rodeia e protege

o novo dia,

e sua luz sem tremer aos vivos chama:

"levanta!"

 

“Erguer-se... como se ergue
a aurora do seio da noite”.

(Homero, Ilíada)






                                          ( "O núcleo da criação" / Frida Kahlo)








domingo, 24 de dezembro de 2023

do superar a si mesmo

 

Os que querem apenas poder ( potestas) via de regra aceitam se subjugarem a outro poder que seja maior que eles, desde que eles também possam exercer poder e subjugar um outro de menor poder. Nesse tipo de relação de poder, ser sujeitado precede o ser sujeito: ser escravo vem antes de ser senhor. Mas como um senhor nunca pode nascer de um escravo, esse tipo de relação de poder torna todos, na verdade,  escravos : escravos do desejo de poder.

Mas quem busca a potência ( potentia) nunca aceita escravizar-se ou escravizar. Quem busca a potência se mostra no desejo de superar-se[1]. Não superar os outros, mas superar a si  mesmo. Só quem busca superar a si mesmo é senhor . Não senhor dos outros, e sim senhor de si. Ser senhor não é ser o dono, ser senhor é ser criador no despossuir-se.

Os que querem poder sempre encontram alguém acima com maior poder, e alguém abaixo com menor poder. Mas aqueles que  buscam a potência o fazem porque encontram dentro de si inesgotáveis e inexploráveis realidades ainda sem rosto, e que num misto de dor e de alegria querem ser partejadas.  



[1] Nietzsche: “Do superar a si mesmo”, Assim falou Zaratustra.









sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

brincatividades

 

Quando eu era criança, nessa época de Natal meus pais  me presenteavam  com brinquedos simples, como carrinhos de plástico. Era o que eles podiam .  Eu recebia tais brinquedos e os guardava,  agradecido.

Pois   brinquedos não me faziam falta, já que  eu gostava mesmo era de brincar com as próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados .

Por exemplo, eu gostava de fazer de  carrinho  os chinelos  e sapatos de meus pais. Brincando com as próprias coisas, eu subvertia seus sentidos e usos utilitários.

 Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava nada, pois estava em meus olhos a fonte de transvê-lo outra coisa diferente desta que todos viam. Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube brincar com o sentido que metamorfoseia e transfigura  a realidade.

Brincar com  carrinho era  bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente,  para subverter  o sentido do que está dado.

Há uma diferença entre fantasia e criatividade. Imaginar que há monstros debaixo da cama é fantasia, e tal fantasia alimenta o medo. Mas jogar um lençol sobre a cabeça para brincar de fantasma, isso é criatividade que esconjura o medo. O fantasioso é refém de sua mente, já o criativo faz de sua  mente um meio para ressignificar o mundo.

Minha mãe era costureira. Os carreteis de linha  multicoloridos , os tecidos e suas texturas, o pedal da máquina de costura acoplado a uma roda que parecia a “Roda da Fortuna”, todos esses artefatos do mundo eu os via como  arte que convidava ao lúdico.

Muito antes de ler mitologia, creio que foi na máquina de costura de minha mãe que descobri o que era o Fio de Ariadne que se desdobra de um novelo. Pois sobre a máquina sempre havia um novelo imenso do qual se desprendia  um colorido fio de lã para se tecer roupa nova.

Na minha imaginação de criança, eu achava que aquele fio era para tecer mais do que roupas,   eu imaginava que com ele se podia tecer mundos, tal como o fio da palavra.

Quando criança , eu sentia que meu brincar não precisava de brinquedo que o dinheiro compra, pois o brincar autêntico nasce de dentro e muda o sentido das coisas que nos estão fora.

Quando cresci, li no poeta Manoel de Barros algo que me ajudou a compreender esse processo lúdico-subversivo.

Manoel diz que a poesia nasce de uma brincatividade originária, brincatividade essa que existe antes da palavra. A brincatividade é estado existencial-poético, empoemamento, antes de ser palavra escrita no papel.

Quando essa brincatividade ganha nossos olhos,  ela se transforma num “transver o mundo”, para assim subverter seus sentidos costumeiros e os poderes dados.

Manoel de Barros faz poesia com essa  brincatividade que mantém vivo um  devir-criança como antídoto ao viver  "mesmal" e "acostumado".


( Este livro de Manoel é só uma sugestão de presente para as crianças, ou para o devir-criança de cada um)







A alma do povo do Nordeste traduzida na alma de Dostoiévski:















sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

árvores e mentes frondosas

 

Onde moro há muitas árvores bem frondosas . Elas ficam próximas à janela do meu quarto. Em árvores assim os passarinhos gostam de morar  e construir ninhos, pois há poucas brechas para os predadores entrarem. Assim deve ser também nossa mente: com poucas brechas para os predadores da nossa paz e saúde entrarem. Em mentes frondosas as ideias amam fazer ninho...

Nem preciso de despertador: todo dia bem cedinho desperto   com o canto desses passarinhos. Faça sol ou chuva, frio ou calor, os passarinhos acordam sempre da mesma maneira : eles não ficam prostrados no galho ou ninho com a mente ainda presa no dia de ontem,  eles já acordam cantando e prontos para irem explorar o mundo , como se aquela fosse a primeira manhã de suas vidas.

À maneira deles, esses passarinhos põem em prática o “amor fati” que ensinam os estoicos. O amor fati é uma ativa abertura e aquiescência, na mente e no coração,  diante   do que acontece , sem juízos prévios ou expectativas ansiosas.

O amor fati é um querer viver que se exerce vivendo no aqui e agora , já. Somente o amor fati ao que nos acontece nos permite agir sobre o que vai nos acontecer , ao mesmo tempo nos libertando do passado, quando o que  nos aconteceu virou uma prisão.

O amor fati é cura do  ressentimento ( em relação ao que nos aconteceu no passado)  e antídoto ao medo ( em relação ao que pode nos acontecer no futuro). Pois ressentimento e medo, como ensina Espinosa, são  sentimentos reativos que caracterizam os escravos,  e dos quais tiram proveito os tiranos de toda espécie...

 Tal como nos passarinhos libertos, o amor fati é ousadia de canto e  abertura de asas.

 

 “Poesia é voar fora da asa.”

(Manoel de Barros)

 

“Quero descrever o voo de um pássaro

escrevendo com a pena de uma asa.”

(Guimarães Rosa)

 

( O livro de  Manoel é só uma sugestão)



 



quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A sociedade política

 

Os filósofos que estudam a formação das sociedades humanas ao longo da história  apontam para a existência de três agrupamentos: a família , a aldeia e a pólis ( a sociedade política).

 Na família , o chefe era o  “pai”, sendo o sangue  o princípio que une a família  . A aldeia nasceu do agrupamento  de famílias, com a mais poderosa delas ocupando o poder  e tendo a maior posse de bens e terras. De certo modo, a aldeia é uma extensão da família tornada clã.

Mas acontece algo diferente com o surgimento da pólis enquanto sociedade política: as relações políticas não são uma extensão da família, tampouco  a pólis está assentada no sangue ou  na posse de bens e terras.

A sociedade política segue uma lógica diferente da família e da aldeia: na pólis, o poder não deve ter por suporte o “homem-pai” ou o chefe do clã, e sim a liberdade e a  igualdade , incluindo a igualdade entre  homens e mulheres.

 Se na família o vínculo é o sangue, na sociedade política o liame é a regra social instituída conforme deliberação coletiva.

Os membros de uma mesma família  ou clã são parentes, porém os membros de uma sociedade política são cidadãos/cidadãs: somente na sociedade política surge o “outro” como valor relacional fundante. Os partidos políticos, por exemplo, devem existir  em razão da sociedade política, e não das famílias ou clãs.

Por isso, somente na sociedade política pode haver, de fato, a socialização do ser humano :  a socialização não pode ficar restrita  à família  , já que a socialização requer a dimensão social do “outro”, base da educação.

A socialização pressupõe a ideia de que o outro diferente de mim é, do ponto de vista social, um igual a mim, independentemente se ele tem ou não meu sangue, se ele é ou não proprietário  de bens e posses.

Os que têm ódio à política e exaltam a “família conservadora ” como fundamento da “pátria” , tal como pregam o  inelegível e seu “clã”, esses  em geral   têm baixo grau de sociabilidade e desprezam a educação emancipadora.

 Não por acaso, milícias e máfias têm uma estrutura calcada nesse tipo de “família-patriarcado-clã” . E quando tal família-clã vira inimiga da outra, isso sempre acaba em “derramamento de sangue”, pois é o sangue , e não a regra social democrática, o critério que une ou separa, com ódio mortal, aqueles cuja mente não alcançou o nível civilizatório da pólis.

E ainda há os “liberais”, para os quais é o indivíduo e seu ego, e não a sociedade política, o fundamento de tudo.

Quando liberais e (ultra)conservadores se unem , como vemos agora, nasce a aliança antissocial do dinheiro com o sangue, do capital com o conservadorismo-patriarcal, de tal maneira que as corporações se tornam clãs , incluindo os “clãs” da mídia corporativa, que ameaçam a sociedade política plural e a luta pela igualdade e justiça social . 


Espinosa é uma das referências do texto:


 

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

o exercício

 

DIÁLOGO 

( para o Antoninho, o "homem-aranha")

 

- Pai, por que a lua não cai?

- Porque a mão da natureza a segura.

- Natureza tem mão?

- É uma forma de falar, meu filho.

- Então a lua não cai porque a fala não deixa?

- Você vai entender quando crescer.

- Mas o senhor entende?

- Entende o quê?

- Porque a lua não cai.

- Eu só sei em parte.

- E quem sabe tudo?

- Só Deus, meu filho.

- Ele é professor?

- Quem?

- Deus.

- Não , meu filho. Ele é o Criador de tudo.

- E por que ele criou tudo?

- Porque ele quis, meu filho.

- É um brinquedo dele?

- O quê?

- A lua.

- Deus não brinca, meu filho.

- Ele é adulto?

- ...Você quer um sorvete?

- Pai, quem ensinou o primeiro passarinho a voar?

- Foram os anjos.

- Eu também queria aprender a voar. Mas o passarinho foge quando eu chego perto. E os morcegos?

- O que têm os morcegos?

- Foram os anjos que também ensinaram eles a voar?

- Também.

- Os morcegos eram do turno da noite?

- Você me sai com cada uma...

- E os aviões, foram os anjos também?

- Não, foram os homens que fizeram o avião voar.

- Mas homem não voa e nem é anjo!

- Meu filho, o anjo é você...rs...E as lições de matemática? Você fez o dever de casa de matemática? O que você está aprendendo?

- A contar...

- E você está aprendendo direitinho?

- Sim, pai. Mas fiquei com uma dúvida...

- Qual é a dúvida meu filho? Em matemática tudo tem resposta...

- Depois do 1 vem o 2, depois do 10 vem o 11...depois do 1.000 vem o 1.001...depois do 100.000 vem o 100.001...e o 100.002 e o 100.003...

- E daí?

- Se a gente continuar contando sem parar, quando a gente chega ao último número?

- Meu filho, não existe um último número!

- Mas se não existe um último, como pode existir um primeiro, um segundo, um terceiro...?

- ...

- Pai...

- Sim, meu filho...

- Existe algum exercício para continuar a ser criança?

- Meu filho, talvez o único exercício seja este: nunca se contentar com as respostas... Obrigado por me ensinar isso.

- Olha, pai! Um pardal chegou pertinho da gente...





( este livro de Manoel é apenas uma sugestão de leitura)




domingo, 10 de dezembro de 2023

Clarice, pneuma.

 

Os  poetas e filósofos gregos deram   nomes diferentes para a "alma". O mais famoso deles é Psiquê.

Na mitologia, Psiquê formava um par com Eros, o Amor. Em grego, "Eros" também significa "asas". Não as asas de pássaro, mas as asas de borboleta. Enquanto os pássaros  já nascem com asas, as asas da borboleta só nascem após uma metamorfose. Pássaros nascem de ovos, borboletas nascem de casulos.

O casulo é uma espécie de útero no qual a lagarta torna-se a artista  que esculpe , pinta e borda a si mesma, para assim partejar-se outra:  antes ela rastejava, agora ela se alça e voa.

As asas que elevam a alma são as do Afeto e das Ideias: poesia  e  filosofia  . Esse Afeto Pensante é um  dos sentidos de "phylo" em "phylo-sofia": "amor por Sofia".

Sofia também é um dos nomes da alma. Sofia é mais do que Razão. Em grego, "Razão" é "Logos", palavra masculina. Enquanto "Razão" é raciocínio, teoria e moral, Sofia é sensibilidade, criatividade, intuição e ética, assim unindo o pensar à prática.

Outro nome da alma é  Pneuma. Em latim, pneuma será traduzido por "spiritus":  "sopro quente e úmido", quente no sentido do calor da vida. Por isso, todo sopro de vida "acalenta": "traz calor" que afasta o frio.

Pneuma  também é a brisa úmida que vem do oceano e vivifica o deserto, nele fazendo brotar  cores, flores, sementes, enfim, múltiplas vidas.

Quando o recém-nascido nasce, antes de abrir os olhos ele inspira o pneuma , o sopro de vida. Não são apenas os pequeninos pulmões do recém-nascido que se enchem de ar, pois cada célula é acalentada pelo pneuma  , inclusive as células do nervo ótico, que assim se abrem para receberem a luz do mundo.

Esse primeiro pneuma que o recém-nascido inspira o umbilica  ao Sopro Cósmico da respiração da Terra, nossa Mãe Ancestral.  Não por acaso, meditar é "medicar": prestar atenção na respiração que somos, respiração essa que nos desperta para a compreensão de que , pela respiração, somos partes de um todo cujas outras partes são os animais, as plantas, as florestas, enfim, tudo o que vive e respira .

Este é o sentido originário de "inspiração" : "ação da vida em nós", potencializando-nos. A cada vez que respiramos, trazemos para dentro de nós o sopro de vida que irá se acrescer ao sopro de vida que vive em nós. Quando expiramos, parte do pneuma que estava em nós retorna ao pulmão  da Terra , para assim ser de vida renovado.

Quando falamos palavras que educam , o pneuma  que partilhamos  enche nossas palavras com ar  que oxigena as ideias de quem nos escuta. Talvez por isso Clarice Lispector  tenha dito: “Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém”.


(Este texto é uma pequena homenagem a Clarice, que hoje faria aniversário)



 

- Em Plotino, "Eros" não é o nome de apenas uma parte da alma, mas da alma inteira de quem se torna sábio. Isso talvez explique o famoso poema de Pessoa ( aqui na voz de Bethânia):








 

A própolis e o formol

 

Hoje no Brasil se fala muito de “ ser conservador” como um comportamento oposto ao de  “ser criador”, “progressista”. Segundo Espinosa, porém, há duas maneiras de “ser conservador” . Essas duas formas podem ser explicadas , de forma simples, a partir do seguinte exemplo:

Seria absurdo querer conservar apenas a mesa que o carpinteiro produziu, descuidando do próprio carpinteiro e sua potência criativa de produzir mais mesas, inclusive de produzir mesas diferentes daquelas que até hoje ele criou.

É no produtor, e não no produto, que criar e conservar andam juntos: o que se deve conservar é o ato de produzir o novo, e não apenas o produto pronto desse ato. Os progressistas agem para conservarem a potência criativa do produtor ( os “direitos sociais”, por exemplo, existem para  essa função) , já os conservadores-reacionários querem conservar apenas os produtos transformados em propriedade que o capital comprou explorando o produtor e tirando dele os direitos.

 A prática de conservar o que é criador nos é ensinada pela própria natureza : a própolis, por exemplo,  conserva a vida da colmeia  para que esta se proteja das doenças que querem , de dentro, fragilizá-la ; e, ao mesmo tempo, a própolis é força que ajuda a colmeia a se manter  reinventando-se ,  perseverando na vida.

Porém criar e conservar se tornam ideias antagônicas quando se quer colocar o conservar antes do criar, vendo no criar algo que ameaça uma “Ordem” rígida , paranoica. Um conservar assim é o que faz o formol: serve para conservar apenas o que já está morto e não se reinventa mais.

Arte, filosofia, educação são própolis; protofascismo fundamentalista é formol.  

 

( a “Ética” é o livro-própolis que Espinosa escreveu)





a atenção

 

Para os estoicos e Epicuro, a filosofia é inseparável de certos “exercícios”. Ou seja, a filosofia é uma prática não exclusivamente teórica. Desses exercícios, o primeiro e mais importante deles  é a atenção ( prosochè).Sem atenção perseverantemente exercitada, não há pensamento e ação fortalecidos.

É um erro dizer: “não consigo prestar atenção nesse filme, ele é muito lento”, “não consigo prestar atenção nesse livro, ele não tem figuras”. Pois não é algo externo que deve despertar nossa atenção, somos nós mesmos que devemos despertar nós mesmos: toda prática de atenção é, antes de tudo, um prestar atenção a si. Quem depende de algo externo barulhento e agitado para ter a atenção despertada, é porque não presta atenção em si e, de certo modo, dorme mesmo estando de olhos abertos. 

Meditar, por exemplo, é prática de prestar atenção na nossa respiração. Até o silêncio requer que prestemos atenção nele. E não há como alguém discordar ou concordar com  algo que o outro  diz  sem prestar  atenção não só nas palavras, mas  também nos gestos e até mesmo nos silêncios  do outro que nos fala.

Prestar atenção não é projetar “certezas” ou (pré)julgamentos, e sim abrir-se para aprender, vivendo. Pois de toda atenção faz parte também o corpo, uma vez que a atenção requer sensibilidade ativa e atuante.

Assim, prestar atenção não é querer encontrar nas coisas o que (pré)concebemos delas. Ao contrário, prestar atenção também é estar atento a essas ideias pré-concebidas que , dentro de nós, impedem que em nós entrem coisas novas.

A atenção não se faz no passado e nem no futuro, pois é sempre no presente, como abertura atenta a  ele, que toda atenção acontece e ensina , assim  auxiliando a nos libertar de condicionamentos passados e de projeções e expectativas futuras  que só trazem medo, insegurança e angústia.

Outro exercício espiritual fundamental, segundo os estoicos e Epicuro, é a prática da amizade. Os exercícios espirituais não são feitos apenas com o ego, tampouco de forma isolada e inacessível. Os exercícios espirituais que singularizam e potencializam também têm na amizade o seu cultivo. Epicuro chega a dizer que quem não é apto à amizade não é apto à filosofia, isto é, à liberdade.

A amizade, o agenciamento de que fala Deleuze e o que Espinosa chama de “bons encontros” são exercícios de cultivar a si mesmo cultivando igualmente a pluralidade.

 

Este livro de Hadot é boa uma introdução ao tema  dos “exercícios filosóficos” visando duas clínicas: a medicina mentis ( medicina da mente) e a medicina corpori ( medicina do corpo).



 

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

assinatura Van Gogh, assinatura Espinosa

 

Inspirando-se em Espinosa, Deleuze distingue duas noções : indivíduo e singularidade. Por exemplo, quando Van Gogh assina  seus quadros, sua assinatura não se resume apenas  ao nome próprio   escrito na tela. A “assinatura-Van Gogh” também são suas cores, os traços característicos de suas pinceladas , seus tons, suas intensidades, sua perspectiva, ou seja, a assinatura-Van Gogh expressa uma multiplicidade de signos-ideias-afetos que Van Gogh criou, para assim devir um estilo, uma obra de arte eterna.

Enquanto o nome “Van Gogh” designa um indivíduo que viveu em certo lugar, em certa sociedade, durante um tempo determinado que a história documenta e informa, a “assinatura-Van Gogh” expressa um acontecimento que mudou a própria arte, pela potência de vida  que esse acontecimento continha.

O indivíduo Van Gogh viveu uma vida de imensos sofrimentos, vida essa que ele pôs fim com um tiro no coração. Mas o tiro atingiu o coração do indivíduo, não o coração da singularidade-Van Gogh, que ainda vive na eternidade que conquistou para si.

O nome próprio designa o indivíduo Van Gogh, mas a singularidade Van Gogh ganha corpo e vida assinada como criação,  arte.

Quando Espinosa terminou sua obra cujo título é “Ética”, ele não quis colocar seu nome nela. Pois Espinosa viveu de modo tão autêntico , que pouco individual-egoico   ele foi, para ser plenamente singularidade.

O nome “Ética” em seu livro não é apenas um título, também é a assinatura pela qual  se reconhece Espinosa como um  filósofo-artista-pensador , cuja obra é um  pensar, um agir e um sentir éticos.

A singularidade-Espinosa expressa tudo aquilo que o indivíduo Espinosa viu e pensou, mas que não cabia em sua vida individual, que não era   apenas de sua pessoa.

O nome “Espinosa” designa um indivíduo que foi excomungado, que tentaram calar e matar, que sofreu as maiores injúrias e ofensas que um indivíduo já sofreu. Mas isso não fez dele um   ressentido,  amargo ou conformado. Espinosa  nunca voltou atrás no que ensinava e jamais se vendeu ou se traiu.

A singularidade-Espinosa vive assinada em suas ideias, em seus afetos, conectada  ao infinito que ele viveu, pensou e sentiu. Quando o lemos, também aprendemos  como ele venceu aquelas injúrias e ignorâncias, e como  seu pensamento ainda nos é necessário na luta contra as  ignorâncias que, ao longo da história, apenas mudam de nome .

A assinatura-Espinosa também expressa aquilo que em nós se afeta, pensa e resiste: quando uma obra nos afeta e nos impele a pensar-agir-criar, é porque ela também assina aquilo que em nós vai além de nosso próprio indivíduo e pessoa.

( imagem: “Estrada com cipreste e estrela”/ Van Gogh)






Manoel de Barros: vespral

 

As ideias não são a mesma coisa  que as palavras. Às vezes, nasce no poeta uma ideia nova, mas  sem que haja  na língua dada  uma palavra que traduza o sentido da ideia que lhe nasceu. Para o poeta, a ideia nascente  é como uma alma nova que requer um corpo também novo para expressá-la. 

Para partejar de si essa alma nova  e colocá-la no mundo, o poeta precisa também criar uma palavra nova, um neologismo: para que a palavra enfim seja  ,  para a ideia criada, corpo e  abrigo.

O poeta Manoel de Barros criou vários neologismos, muitos deles inspirados na fala popular do Pantanal. Um neologismo manoelino de que gosto muito é :  “vespral”.

O vespral é uma espécie de “véspera” de uma realidade  transmutadora que  está na iminência de acontecer: vespral é a véspera de algo inaugural.

 No poema “Vespral de chuva” , Manoel descreve os acontecimentos que serão  o vespral da chuva que transfigurará o Pantanal.

Sobretudo quando há muito não chove, e a natureza inteira padece de sede, é nessa ocasião que acontece o vespral .

Não apenas o homem, mas todos os seres, incluindo as plantas e os bichos , sentem a chuva que se anuncia : o vento, o céu , o ar, os cheiros ...todas essas realidades   mudam de comportamento  quando se tornam a véspera de um acontecimento inaugural.

Pois o  vespral não é uma espera ansiosa , ele é uma certeza, uma certeza também corpórea,  de que o tempo logo trará o que tanto falta: as águas da regeneradora  chuva.

Em geral, o vespral acontece à noitinha, quando sobe da barra do horizonte a massa de nuvens intumescidas  da água que beberam do oceano .  Em meio aos relâmpagos que as iluminam por dentro, as nuvens então  desabrem e delas se liberta a chuva que a tudo salva, regenera, enche de vida.

E as águas que antes viviam  no distante oceano, sob a forma de chuva caem do céu e  são sorvidas para o útero da terra, que assim engravida para depois parir fontes das quais brotarão  águas cristalinas.

Quando a chuva passa , as crianças saem à rua com “olhos de descobrir”. Pois depois da chuva tudo se torna diferente do que ontem era . Mais do que nos adultos, são nas crianças que florescem olhos de descobrir.

 E é com elas, com as crianças, que o poeta aprende a ver com olhos inaugurais  assim, mesmo diante das coisas que ele muito já viu.

Não são olhos para descobrir novidades tecnológicas que “amanhã já  virarão sucata”, são olhos de descobrir caminhos, aberturas, saídas, horizontes ...sobretudo quando se encontra à frente uma realidade turva que rouba a visão e cega.


( o poema sobre o vespral está no “Livro de pré-coisas”)




Letra-poema de Arnaldo Antunes:



terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Espinosa : o pensar e o imaginar

 

Espinosa afirma: Deus possui infinitos atributos, dos quais conhecemos apenas dois: a extensão e o pensamento. Pensamento e extensão , mente e corpo, são partes da Natureza ( enquanto natura naturada), não são a Natureza inteira ( a Natura Naturante).

Devemos tomar o máximo cuidado, por isso mesmo, para não querermos imaginar os outros atributos que não conhecemos, como se a imaginação pudesse mais do que o conhecimento  nesse campo.

Decerto que a imaginação pode coisas diferentes daquelas que pode o conhecimento,  porém poder coisas diferentes não significa poder mais naquilo que apenas o conhecer  pode.

Se cedermos à tentação e acharmos que a imaginação poderá imaginar o que o conhecimento  não pode conhecer, começaremos a duvidar da própria potência do pensar, atribuindo   deficiência ao pensamento de pensar/conhecer uma realidade mais elevada, que somente a imaginação poderia alcançar, de tal modo que acabaremos por diminuir aquilo  mesmo que podemos conhecer como extensão ( ou corpo) e como pensamento (ou ideia). Enfim, entraremos no delírio, que se tornará tão ou mais perigoso quando querer expressar-se no campo  político, o que cedo ou tarde acaba acontecendo, outrora e agora, hoje. 

Em geral, o filósofo é modesto e reconhece que o pensamento não consegue conhecer tudo, embora ele possa sentir esse tudo, ao passo que os profetas de toda ordem deliram imaginativamente que podem conhecer tudo. Mas o que querem na verdade é obediência, e por isso demonizam o  pensar filosófico.  

Espinosa tem um nome para essa imaginação que imagina, delirantemente,  poder mais do que o conhecimento: superstição. Para Espinosa, "profeta" é mais do que um tipo religioso: é a subordinação do conhecimento da Natureza à imaginação que delira alcançar uma "sobrenatureza" como "verdade" da natureza, uma verdade que apenas ele, o profeta, tem acesso. Uma "verdade" que exige crença e obediência, e não entendimento e compreensão que realmente libertam.   

Quando a imaginação ignora a sua virtude, que é a de imaginar, e passa a querer  conhecer a Natureza , correm risco o corpo e as ideias : o corpo  será demonizado, pelos moralistas, ou narcisado, pelos egoístas, ao passo que as ideias  serão confundidas com meras elucubrações mentais, sem lastro  de saúde do espírito.

É na poesia e nas artes que a imaginação pode expressar toda a sua saúde e potência, e assim ensinar, com seus próprios meios (as imagens),  aquilo  que o pensar também sente.