terça-feira, 7 de maio de 2019

a aula


Anos atrás,  um professor que trabalhava na mesma faculdade onde eu lecionava, uma faculdade de direito, me perguntou se eu aceitaria dar aula de filosofia para seus dois filhos, um de 10 anos e outro ainda mais jovem. Aceitei. O curso era para durar 1 mês, acabou durando 1 ano. O mais velho se chamava Alexandre, carinhosamente rebatizado Xandinho. Certo dia , ele e o irmãozinho estavam brigados. Aproveitei para dizer ao Xandinho:  “você sabia que ‘Alexandre’ significa ‘protetor da humanidade?’”. Ao ouvir isso, ele  olhou  para o irmãozinho  e, sem dizer nada,  o abraçou com cuidado . Naqueles encontros, eu “ia até à infância e voltava”, como diz Manoel de Barros, e aquele que ia não era o mesmo que retornava. E o que voltava vinha de lápis de cor na mão, e aprendia que as ideias que valem a pena ensinar  se deixam desenhar  com lápis de cor. Algumas ideias eu ensinava falando, outras eu desenhava para eles colorirem:  a forma era minha, mas as cores eram eles que escolhiam para pintar, com as mãos livres . E eles coloriam sempre multicoloridamente, nunca em   preto e branco.
Perto do fim do ano, houve um feriadão. Toda a família desse professor viajou para Londres, incluindo os dois meninos. No retorno, assim que entrei no apartamento, o pai pediu para o Xandinho  me narrar o que aconteceu em Londres, mas o  menino saiu correndo, como se tivesse feito uma arte, uma “peraltagem”,  diria Manoel de Barros . Eles foram ver, entre outras coisas, a cerimônia na qual a Rainha  da Inglaterra passa à frente do público, e todos se ajoelham em reverência, olhos no chão. Então , o pai  mesmo me contou o que aconteceu: quando a Rainha , cheia de pompa e ouro, passou diante deles, todos se ajoelharam diante de seu poder, exceto o Xandinho. Ele ficou em pé, de braços cruzados, firme, olhando diretamente para a Rainha, que virou a cabeça para olhar , espantada,  o pequeno insubmisso. Quando a mãe indagou ao menino porque ele não se ajoelhou como todo mundo, ele respondeu : “Não ajoelho diante de quem é igual a mim”. Ao ouvir isso, a mãe disse ao pai: “acho que já está na hora de nosso filho parar de ter aulas de filosofia...”. Nesse mesmo dia em que ouvi o relato, dei minha última aula aos garotos. No fim, o menino da peraltagem  me perguntou: “Vai ter prova?”. Respondi: “Não , você já está aprovado. Com dez.”





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