quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

artigo sobre Espinosa/Revista Trágica



http://www.tragica.org/lastedition/




(trecho do artigo)


1.Introdução: os afetos e a imaginação          
Quem não tem instrumentos de pensar,
inventa.
Manoel de Barros

Segundo Spinoza, são três os afetos originários: o desejo, a alegria e a tristeza.[1] Esses afetos estão na origem, todos os outros afetos derivam deles. Eles estão na origem não porque remetam ao passado, ao que passou, e sim em razão de que eles são a origem do que somos agora, enquanto duramos, com nossa mente envolvendo um corpo. Eles não se originam de nós, somos nós que nos originamos deles. Originar-se, aqui, não significa um ir para fora e separar-se, significa um estar envolvido, ao mesmo tempo que um envolver, pois não podemos existir a não ser envolvidos pelo viver. Desses três afetos se originam outros dois: o ódio e o amor.
Desejo, alegria e tristeza não são estados da alma, são o existir mesmo. A alegria é uma passagem [transitio] a uma perfeição maior, a tristeza é uma passagem a uma perfeição menor.[2] A perfeição é o existir mesmo, ela é o desejo. A perfeição não é um modelo a alcançar, da perfeição não há modelos. A perfeição não é algo externo a se desejar, senão a própria origem do desejo. O desejo é a existência mesma, existência esta que uma essência ou ideia envolve. Por aqui se vê que é impossível escrever sobre Spinoza sem que logo surja este verbo: o envolver.
A tristeza nunca vem do desejo mesmo, ela pode vir, e vem, de algo externo que envolve o desejo. Mas esse algo externo não deve ser visto apenas como a coisa que existe lá, no mundo objetivo. A tristeza é um afeto que acompanha o desejo, mesmo estando ausente o ser que a causou. A tristeza não se mantém pela presença do objeto, ela se mantém na diminuição do desejo, ela é a passagem a essa diminuição, e não o próprio estado. É por isso que é difícil apreender essa tristeza de que fala Spinoza, pois ela não é apenas um estado da alma, não é somente psicológica. Ela é uma passagem a uma perfeição menor. A perfeição só é sentida como menor quando conseguimos compreender a perfeição, a sua ideia adequada, para assim conhecer as variações dela mesma: para se saber se um grau de azul é mais intenso do que outro, ou menos intenso, é preciso, antes, formar uma ideia adequada do azul. Um grau de azul pode ser qualificado como mais ou menos azul em comparação com outros graus da mesma cor, mas primeiro é preciso existir o azul, que é plenamente ele mesmo sem precisar ser comparado com outra cor.
 Mesmo na tristeza há uma perfeição, uma existência, e é a partir da compreensão desta que a tristeza pode ser vencida. Aquele que está em uma perfeição menor, porém carece   da capacidade de fazer uma ideia adequada da perfeição, isto é, da existência e do desejo, pode imaginar que está em uma existência perfeita, desde que o circundem coisas, posses, propriedades, bens.[3] Ou seja, a perfeição será avaliada de acordo com coisas externas.
A alegria é a passagem a uma perfeição maior. Ela é a passagem a essa perfeição, e não a própria perfeição. A alegria e a tristeza são afetos nascidos no encontro do desejo com as coisas externas. Elas são, por isso, paixões: paixões alegres ou tristes. O amor, nesse nível, é a imaginação de que nossa alegria tem por causa algo externo. O ódio, ao contrário, é a imaginação de que nossa tristeza tem por causa algo externo. Quando sentimos alegria, esse afeto vem acompanhado, envolvido, pela ideia da existência do ser que nos causou tal afeto. O amor é a imaginação-desejo de que devemos nos unir a ele. A tristeza, por sua vez, é envolvida pela ideia-imagem do ser externo que imaginamos ser sua causa. Tanto a alegria quanto a tristeza, embora imaginações, podem levar-nos a ações, e não apenas imaginá-las. De tal modo que me esforçarei para fazer o bem a quem amo, e mal a quem sinto ódio. Esse agir não é bem um agir, ele é um reagir, pois minha ação será explicada por aquilo que imagino, e não pelo que compreendo. 



[1] Para o que se segue: Ética, Terceira Parte, “Definição dos afetos”. Empregaremos aqui a edição bilíngue, trad. Tomaz Tadeu, Editora Autêntica, 2013 (3ª edição).
[2] “Digo passagem porque a alegria não é a própria perfeição” (Spinoza, Ética, “Definição dos afetos”, nº 3: A tristeza, explicação). No original latino, o termo “transitio” não está em itálico, apenas na tradução.
[3] No Tratado da correção do intelecto, por exemplo, são a essas coisas que Spinoza identifica como motores da opinião e da mera imaginação. 

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