O poeta Manoel de Barros já passava dos 80 anos quando um
editor lhe pediu que escrevesse não uma, mas três memórias: da infância, da vida
adulta e da velhice. Afinal, acredita-se que quem chega aos 80 anos muito tem a
falar de si...Depois de algum tempo, o poeta enviou ao editor o seguinte livro:
“Memórias da primeira infância”. Meses depois, novo livro: “Memórias da segunda
infância”. Por fim, após um intervalo, veio nova publicação: “Memórias da
terceira infância”. Como as memórias da vida adulta e da velhice não nasciam, o
poeta foi indagado pelo editor a respeito, no que respondeu: “ só tive
infância, não tive velhez”. O poeta diz que em seu lápis, na ponta do seu
lápis, “há apenas nascimento”, “só narro meus nascimentos”, complementa. A
"velhez" não é propriamente uma idade, afirma o poeta, a
"velhez" caracteriza uma vida, individual ou coletiva, que não tem
mais "embrião".
domingo, 30 de julho de 2017
sexta-feira, 28 de julho de 2017
Sofias...
Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Gilles Deleuze
“Philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Assim, a
filosofia não é prática apenas intelectual, teórica (tampouco o pensar é
exclusividade do filósofo). E “sophia”, por sua vez, não significa o mesmo que
“razão”. “Sofia”, inclusive, é um nome, um singular nome, que pode expressar a
mulher, ou o que no homem for devir-feminino. Mas “Razão” é um padrão
masculino, “falocrático”.
Para Deleuze, a filosofia não é somente Conceito, ela também
é Afeto. Espinosa, libertariamente, identifica o pensar à Alegria. Outros, como
Kierkegaard, Heidegger e Sartre, dizem que pensar é fazer frente à Angústia.
Nunca, absolutamente nunca, o pensar pode nascer do ódio, da covardia, da
intolerância ou da mera ostentação de conhecimentos acadêmicos. Ao contrário, o
pensar talvez seja um esforço para se tentar vencer essas “sombras”, como diria
Jung, ou essas “servidões”, pessoais ou coletivas, conforme diagnosticou
Espinosa. O pensar é isso ou então não é nada...E é antes de tudo naquele que
pensa que a vitória deve anunciar-se primeiro. Não para colocá-lo num pódio
acima dos outros, mas para fazê-lo cultivar ouvidos para ouvir aquela lição
simples e modesta, sempre atual e nada livresca, de Espinosa: "não zombe,
não lamente: compreenda. Apoiado na compreensão, aja."
terça-feira, 25 de julho de 2017
o fio e o novelo
Pensamos em novelo.
Maria Gabriela Llansol
“Con-fiar”
significa “ fiar junto”. Confiar não é apenas uma disposição psicológica, ela
pode ser mais do que isso, como virtude : o pintor confia nas tintas, o poeta confia na poesia, o ético confia na ética, o
democrata confia na democracia, apesar
dos motivos atuais para a desconfiança. Fiar não é traçar linhas retas no
espaço, fiar é inventar "linhas de fuga" que dão sentido ao tempo: “
a reta é uma curva que não sonha” (Manoel de Barros). “Novelo” significa :
“novo elo”. Quem confia, tece : cria
novos elos com o fio que puxou de um novelo , que é sempre fonte para novos
elos e agenciamentos.
Arthur
Bispo do Rosário vivia preso no labirinto
de seus delírios. Porém, a arte o fez achar um "fio de Ariadne" : em
cada lençol , em cada roupa que lhe punham como louco e doente, ele soube achar nessas coisas o novelo ainda
ali vivo, como saúde do espírito. Ele viu o novelo que ainda vivia nas coisas, como memória, imaginação, potência, invenção,
virtualidade, enfim, vida.... Dos fios do uniforme que vestia o louco, ele
desfez a forma, libertou o fluxo dos fios, libertando a si mesmo nesses fluxos, e com estes
inventou , tecendo, a capa multicolorida de um rei.
Arthur Bispo do Rosário e sua "capa" ou "manto" - Museu do Inconsciente |
quarta-feira, 19 de julho de 2017
hesíodo e as cinco raças (2)
Segundo Hesíodo, há cinco tipos
ou raças de homem. Cada tipo recebe como símbolo um determinado elemento. Há homens de ouro, de prata, de bronze, de
ferro e de barro. O sentido está na simbologia de tais elementos, e
não no seu aspecto literal, material.
O homem de ouro sabia andar na
companhia do divino. Não havia
entre tais homens e os deuses um abismo:
o homem aprendia a sabedoria sem precisar estudar em livros. O homem de ouro era sábio, mas não acadêmico
ou erudito. Inexistia escultura, pintura ou outra arte : o artístico era
a própria vida, composta mais de cores do que de formas. Os deuses não moravam
em templos, nem os homens em casas privadas: ambos habitavam a terra como chão e o céu como
teto, sem paredes, apenas horizontes. Porém, alguns desses homens passaram a se
achar representantes do divino e a falar por eles, com a intenção de obterem
poder sobre os outros homens. Os deuses então se afastaram, e tais homens,
sozinhos, desapareceram.
Os deuses criaram então os homens
de prata. Estes viviam 100 anos como crianças apenas. Viviam brincando nos
jardins onde nada faltava. E, cansados de tanto brincar, adormeciam sem demora.
Eles vivam na inocência de uma vida sem culpa. Após completarem 100 anos, os
deuses deixavam então que tais homens crescessem, para rapidamente envelhecer e
morrer, sem dor, dormindo. Porém, nem todos se contentavam apenas com o lúdico,
não poucos se tornavam tolos, caprichosos, enfim, “infantis”: choravam pela
presença dos deuses, exigindo que estes lhes fizessem favores e concedessem
privilégios. Assim, o ciúme crescia entre os homens-infantis. Os deuses novamente se afastaram, tais homens pereceram.
Uma nova raça de homens foi
criada pelos deuses: os homens de bronze. Estes eram corajosos e destemidos,
porém belicosos e querelantes. Ambicionam o domínio, a conquista , o poder. O
homem de bronze se tornou senhor da guerra, cobiçando glória. Contudo,
tornou-se também o lobo do outro homem, fazendo os vencidos de escravos .Os
deuses, sem piedade, exterminaram tais homens de bronze.
Foram criados então os homens de
ferro. Estes nasceram sob o fardo da necessidade: nus, precisavam cobrir o
corpo; famintos, necessitavam achar alimentos; fracos , sentiram que precisavam
se unir . Para tal, inventaram as leis e o Estado .Viviam mais ocupados com a
terra do que com o céu. Entre alguns deles , porém, não lhes satisfazia essa
vida rasteira, rasa. Entre esses insubmissos nasceu uma fuga, uma "linha
de fuga", uma iluminação:
dando às palavras nova função, diziam por elas o que lhes cantavam as Musas,
inventando assim a poesia. No meio da indigência nasceu o artista, o poeta,
para com a arte "celestar as coisas do
chão". Hesíodo foi um desses “celestadores”.
Havia ainda uma quinta raça por vir,
dizia o poeta. Essa raça nascerá sob a
marca do precário, do fugidio, do inconstante, do vazio (“vanus”, do qual vem
“vaidade”). O ser assim nascido será o homem de barro. Não o barro que a arte
vivifica, como as estatuetas de Mestre Vitalino. O barro desse homem de barro é
apenas o barro mesmo: matéria volúvel, oca por dentro.
Das épocas de ouro e prata ele
cobiçará apenas o metal, a parte
material, ignorando o simbolismo. Tal homem de barro nutrirá a mesma
sanha belicosa dos homens de bronze, porém desconhecendo as virtudes guerreiras
destes, sobretudo a honra. Dos homens de ferro eles herdarão as carências e
necessidades, mas não a riqueza visionária de seus artistas. A principal marca
do homem de barro, diz Hesíodo, será sua total insensibilidade a tudo aquilo
que não seja seu próprio ego, que é o oco (“vanus”) que o barro veste. Ocas
também serão suas palavras, sem verdade dentro. Ocas igualmente serão suas
ações, sem virtudes as movendo. Quando mortos, não deixarão obras ou exemplos:
serão apenas pó que espalhará o vento.
amor fati in juno
É manhã de quarta-feira,
de um dia de junho;
e chove chove chove...
Abro os olhos, abro a mente,
e deixo que o acontecimento entre.
e chove chove chove...
Abro os olhos, abro a mente,
e deixo que o acontecimento entre.
Não há em mim a menor nostalgia
do que foi, tampouco o lamentar de que não seja dezembro ou janeiro agora .
Não estou na memória, não estou na imaginação: estou inteiro nisto que em mim olha.
Não estou na memória, não estou na imaginação: estou inteiro nisto que em mim olha.
Daqui a pouco abrirei um
livro, agora abro a janela.
Não há em mim desejo de
corrigir a natureza.
Ela não está certa ou errada, ela é.
Ela não está certa ou errada, ela é.
Não sei quantas gotas
essa chuva tem, o que sei é que ela
acontece inteira, nem gota a mais , nem gota a menos.
Não as conto quantas são, apenas apreendo o todo aberto, mantendo-me também aberto, do céu quero-me grato - no sol ou na chuva, no azul ou no cinza.
Não as conto quantas são, apenas apreendo o todo aberto, mantendo-me também aberto, do céu quero-me grato - no sol ou na chuva, no azul ou no cinza.
Atravessa a fina chuva um
bem-te-vi amarelo.
Ele canta, chama por outro - que logo o encontra , ambos num mesmo galho estão agora.
Olham o horizonte o mais longe que podem, não reclamam por isto ou aquilo.
E vão sob a chuva, sabendo que chove, porém suas asas abrem caminho por entre o azar e a sorte .
Ser assim como eles, sendo aqui eu mesmo :para em palavras dizê-los, lá na vida com eles.
Ele canta, chama por outro - que logo o encontra , ambos num mesmo galho estão agora.
Olham o horizonte o mais longe que podem, não reclamam por isto ou aquilo.
E vão sob a chuva, sabendo que chove, porém suas asas abrem caminho por entre o azar e a sorte .
Ser assim como eles, sendo aqui eu mesmo :para em palavras dizê-los, lá na vida com eles.
Chovendo no jardim de inverno |
sexta-feira, 14 de julho de 2017
o futuro pretérito
Segundo Nietzsche, assim como a luz das estrelas precisa de
tempo para chegar até nós, há coisas que fazemos cujo sentido também leva muito
tempo para chegar até nós. Mas alguns poucos , às vezes tidos por poetas ou
loucos , estes já veem o acontecido antes que ele se torne acontecimento para
nós, como se a sensibilidade e pensamento deles fossem um potente
telescópio que capta as estrelas ainda nascendo. Porém, eles não são profetas,
não falam do que virá. Eles anunciam o já acontecido: um passado ainda futuro,
por chegar.
quinta-feira, 13 de julho de 2017
sobre o ódio
Segundo
Espinosa, o ódio não une ninguém. Quando A e B se unem para odiar a C, esse
ódio “comum” a C não torna A e B amigos, ou aliados, ou “companheiros”, ou
possuidores de uma “mesma perspectiva”, a não ser em aparência ou por
conveniência. “Odiar” é imaginar que a causa da nossa impotência se encontra exclusivamente
em algo externo. No exemplo, A e B imaginam que C é a causa de eles serem
impotentes. Então, eles unem suas impotências imaginando que daí nascerá uma
potência...Se C devolver o ódio recebido, então A e B se sentirão mais
justificados ainda em seus ódios . Porém
, menos mais menos é sempre um menos maior. Esse ódio de A e B a C
fará com que eles cobrem de D que este também “tome partido” , isto é,
também se una a eles no ódio a C. Se D a isto recusar, então A e B o acusarão
de servir a C...Ou então o acusarão de ser “neutro”, como se o fato de D fazer
parte do alfabeto nada significasse. Depois, A e B irão a E com a seguinte
alternativa: ou odeie C ou será odiado por nós. Talvez chegue o momento, o louco
momento, no qual A e B odiarão o alfabeto inteiro, “que se dane o alfabeto
inteiro, precisamos é destruir C antes
que ele nos destrua!”. Então, sem alfabeto, não há palavra, tampouco ideia a expressar
e defender, a afirmar. Não seria esse ódio de A e B a C, e de C a A e B, um
ódio mais profundo ao alfabeto?
Francis Bacon, Painting, 1946. |
( sobre o uso das 'reticências': faço um uso não gramatical das reticências. Elas não expressam apenas uma suspensão da frase, para assim imitar hesitações da fala, quando esta cede ao silêncio. Emprego quase sempre as reticências com intenção 'agramatical': faço silenciar o significante para deixar falar, em cada um, o pensamento).
terça-feira, 11 de julho de 2017
a praça e a rua (2)
O andarilho abastece de pernas as distâncias.
Manoel de Barros
Ir, indo.
Caetano
Os gregos inventaram a praça como espaço de poder. A praça era o plano horizontal das relações políticas, distinto do plano vertical dos Templos e da clausura dos Palácios. A praça era chamada de ágora , o coração da pólis. O termo "ágora" provém de “agon”, raiz presente também em “agonia”. Uma alma agoniada é aquela na qual quereres diferentes ou pensamentos distintos lutam para a dominarem. “Agon” significa “disputa”. A praça, a ágora, era o lugar onde aconteciam disputas, lutas, medições de forças. Porém a arma de tais disputas não era a faca ou a lança, e sim outra arma. Arma sutil, eminentemente simbólica, mas que podia ser mais forte do que Aquiles ou ir mais longe do que a flecha. Essa arma era a palavra. Contudo, a palavra dita na ágora era palavra proferida individualmente: não raro tal palavra servia apenas a quem a enunciava ( ou então ao círculo dos que professavam, ou fingiam professar, o mesmo credo, a mesma posição) . Por isso, quem tinha dotes retóricos saia-se vencedor nos embates dialéticos, mesmo que por de trás das palavras convincentes não existissem ideias consistentes. Muitos se valiam da retórica para esconderam não apenas interesses escusos, como também a carência de ideias.
Os gregos inventaram a praça como espaço político, mas eles não inventaram as ruas. As ruas foram invenção dos romanos. As praças são lugares de parada, são espaços centrípetos. As ruas, ao contrário, são espaços de circulação , de deambulação e mesmo de linhas de fuga a inventar. A praça possibilitou o surgimento do filósofo acadêmico, porém a mesma praça tornou-se oportunidade lucrativa para espertos sofistas, de tal modo que sempre foi difícil separar aquele destes. A rua, diferentemente, fez nascer o andarilho, o cosmopolita, o desterritorializado, o itinerante: o filósofo-cometa, o pensador-artista liberto de academias ou escolas.
Sob o Império Romano, entretanto, as ruas eram vias limitadas ligando as cidades que o Império dominava . Com o fim do Império, as ruas se tornaram chão dos peregrinos. Entre estes havia aqueles que, como São Francisco, iam de pés descalços em busca da rua que levasse à invisível Pólis Celeste.
Com o fim do poder imperial, muitas das ruas por tal poder construídas, não obstante estarem inteiras, findavam agora em cidades em ruínas : as mesmas cidades que ,outrora ,gabavam-se eternas. Uma cidade desaparece por meio de guerras ou catástrofes. Mas uma rua somente desaparece se o mato ou a floresta a fizerem retornar à natureza de onde saíra.
Com o fim do poder imperial, muitas das ruas por tal poder construídas, não obstante estarem inteiras, findavam agora em cidades em ruínas : as mesmas cidades que ,outrora ,gabavam-se eternas. Uma cidade desaparece por meio de guerras ou catástrofes. Mas uma rua somente desaparece se o mato ou a floresta a fizerem retornar à natureza de onde saíra.
Com o crescimento da vida urbana, a rua deixou de ser mera coadjuvante da praça. A rua fez passar para dentro da cidade a experiência que outrora somente era vivida por aqueles que, saindo dos muros da cidade, cruzavam territórios ainda desertos. A praça tem limites. Mas as ruas não têm limites, pois uma se conecta com outra, às vezes se atravessam, rizomas que são.
A Revolução Francesa se inspirou no modelo grego da ágora. Contudo, o século XIX, sob a inspiração de anarquistas e socialistas, tal século descobriu a rua como espaço político. A política que vem da rua é diferente daquela que é feita na praça. Em Brasília, por exemplo, fala-se da "Praça dos Três Poderes". Mas é na rua que vive a potência inumerável. Na praça, a palavra ainda está refém da retórica individualizada, ao passo que a rua tem outra fala, às vezes anônima, mas altamente singularizada, pois por ela se expressam agentes coletivos de enunciação.
O espaço político da rua é um espaço de travessia, não para chegar ao Palácio , tampouco ao Templo; pois a rua descobre o deus dos caminhos, bem como a anarquia coroada, multifacetada, da multitudo em movimento. Enquanto espaço político, a rua tem vida própria, libertando-se até mesmo dos lugares aos quais ela leva, de tal modo que ela devém elo que liga o povo a ele mesmo, não exatamente ao seu passado, mas à sua condição ativa de povo por vir.
Eu amo as ruas.
João do Rio
domingo, 9 de julho de 2017
rascunho de voo
Poesia é voar fora da asa.
Manoel de Barros
Quando estão dentro d’água e olham para fora, os peixes não
sabem que o mundo de fora é infinitamente maior que o mundo deles. Eles veem o
mundo de fora através do limite do mundo no qual vivem.
Porém, esse limite não é neutro ou transparente: a lâmina d’água altera
o que está fora, mas os peixes não sabem disso, e vivem mais a imaginar que veem do que de fato a ver sem imaginar. A maioria dos peixes tem medo e se afasta de tal
limite, embora os acompanhe, sem que eles saibam, a limitada imaginação.
Alguns peixes com pretensão de dominar os outros peixes, e temendo que tal curiosidade pelo que está fora abale a ordem do cardume, contam histórias acerca do que seria tal mundo de fora, e lá põem, sofrendo eternos castigos, os que morreram não tendo sido obedientes às leis e costumes do cardume ( "todo peixe bom", dizem eles, obedece à norma do cardume, desde tempos imemoriais) . Tudo o que esses peixes-governantes contam é inventado, porém torna-se verdadeiro pela ignorância que se ignora.
Alguns peixes com pretensão de dominar os outros peixes, e temendo que tal curiosidade pelo que está fora abale a ordem do cardume, contam histórias acerca do que seria tal mundo de fora, e lá põem, sofrendo eternos castigos, os que morreram não tendo sido obedientes às leis e costumes do cardume ( "todo peixe bom", dizem eles, obedece à norma do cardume, desde tempos imemoriais) . Tudo o que esses peixes-governantes contam é inventado, porém torna-se verdadeiro pela ignorância que se ignora.
Mas há aqueles peixes aos quais cardumes não aprisionam. Eles são estranhos, é verdade:
suas nadadeiras são um pouco maiores do que a de todos. Os peixes de nadadeira "normal" dizem que tal diferença é um castigo.
Porém, às vezes alguns desses estranhos tomam impulso com a
energia que desviaram da adaptação àquela vida em cardume.E vão ao perigo com a maior força que podem:avançam até o limite
daquele mundo do cardume e , sem medo, atravessam a fronteira daquele mundo conhecido: saltam para fora d'água,
desterritorializam-se ...
E as nadadeiras inábeis ao nadar homogêneo, ali se mostram em sua autêntica arte: a de serem o instrumento de potencialização da exploração de um novo meio, voando. Elas se tornam asas em rascunho, inauguramento de voo.
E as nadadeiras inábeis ao nadar homogêneo, ali se mostram em sua autêntica arte: a de serem o instrumento de potencialização da exploração de um novo meio, voando. Elas se tornam asas em rascunho, inauguramento de voo.
sexta-feira, 7 de julho de 2017
theoria...
( trecho ampliado do livro acima)
Quando Zeus estava sob seus olhos, Hera ficava tranquila.
Porém, bastava seu amado se ausentar, o que
acontecia com frequência, para o
sofrimento tomar-lhe conta. Seu
ciúme pedia um instrumento, ele queria criar olhos ─ e assim ver, saber,
tomar ciência. Hera precisava vencer a ignorância: ela
desejava encontrar um meio de ver Zeus todo o tempo, sem que ela
fosse, no entanto, vista. Um ver que lhe deixasse neutra, mas sempre presente,
vendo.
Então, ela pede ajuda a Panoptes, cujo nome significa
“visão por toda parte” ( “panóptico” se origina de panoptes). Para ceder ao pedido e ser os olhos da deusa vigiando Zeus onipresentemente , Panoptes se transformou então num animal: o pavão ( na cauda dos pavões há
desenhos similares a olhos...).Quando este abria a cauda, incontáveis olhos se
mostravam ─ vigiando, sem trégua, Zeus.
A esse olhar que
vê onipresentemente, pretendendo impedir todo mistério, a esse olhar os gregos deram
um nome: Theoria ( "theo" em grego é "ver"). Não raro, quem muito teoriza quer a tudo dominar com conceitos: a paixão pela verdade só não é doença se deixar livre a diferença.
Além disso, os olhos da teoria veem apenas as faces
exteriores, seus olhos não veem dentro, na imanência. Tais olhos não conseguem
ver o que vê a visão fontana do poeta:“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que
eu a seja” ( Manoel de Barros).
(fragmento de obra de Rubens) |
terça-feira, 4 de julho de 2017
a singularidade-potência
Ninguém sabe o que pode um corpo.
Espinosa
Redes
cada vez maiores ameaçam desertificar o
oceano, dele expulsando a vida livre. A ciência utilitária serve ao homem do poder manipulando o código genético dos peixes,
para que estes já nasçam presos , antes mesmo que uma rede os apanhe.
Mas o homem do poder nada pode diante do peixe raro, único,
potente. Ele joga sua rede, porém Moby Dick a rasga com os dentes, como se de
papel a malha fosse .
O homem do poder lança seus arpões , no entanto mergulha Moby Dick no
abismo tão profundamente , que perante tal Vida tais arpões são como palavras enganosas que alcançam e moldam apenas uma rasa mente , porém ao corpo aferroar não logram, por mais que tentem.
segunda-feira, 3 de julho de 2017
lhasa (2)
Em Breve Este
Espaço Será Muito Pequeno
(Lhasa)
Em breve este espaço será muito pequeno
E eu vou lá para fora
Para o enorme Iado de fora
Onde o vento selvagem sopra
E as estrelas frias brilham
Vou colocar o meu pé
Na estrada da vida
E ser levada daqui
Para o coração do mundo
Eu vou ser forte como um navio
E sábia como uma baleia
E eu vou dizer as três palavras
Isso vai nos salvar a todos
E eu vou dizer as três palavras
Isso vai nos salvar a todos
Em breve este espaço será muito pequeno
E eu vou rir tanto
Que as paredes desmoronem
Eu vou morrer três vezes
E nascer de novo
Em uma pequena caixa
Com uma chave de ouro
E um peixe voador
Vai me deixar livre
Em breve este espaço será muito pequeno
Todas as minhas veias e ossos
Serão queimados a pó
Você pode jogar-me em
Uma panela de ferro preto
E a minha poeira vai dizer
O que o meu corpo não vai
Em breve este espaço será muito pequeno
Em breve este espaço será muito pequeno
E eu vou lá para fora
E eu vou lá para fora
*** *** ***
"De certo modo , a criança morre para que nasça o adulto dela, mas a criança continua no adulto. E o adulto morre para que nasça o idoso dele , porém o adulto continua no idoso. Nenhuma morte é fim absoluto, talvez nasça outra coisa do que éramos, talvez continuemos naquilo que nascerá de nós".
(Espinosa)
*** *** ***
"De certo modo , a criança morre para que nasça o adulto dela, mas a criança continua no adulto. E o adulto morre para que nasça o idoso dele , porém o adulto continua no idoso. Nenhuma morte é fim absoluto, talvez nasça outra coisa do que éramos, talvez continuemos naquilo que nascerá de nós".
(Espinosa)
“Esta é uma história que me contou meu pai. Meu
pai era um homem muito filosófico.
Segundo ele me dizia, quando somos concebidos
surgimos no ventre de nossa mãe como uma pequena luzinha, uma luzinha suspensa
no espaço imenso, sem som nenhum , completamente escuro, e o tempo parece não existir aí. Esse espaço se assemelha a um oceano de escuridão. E então, ainda dentro
do ventre, nós crescemos, continuamos a
crescer e crescer ,lentamente , e começamos a sentir e tocar as coisas e as paredes do
mundo em que estamos. Sentimos seus limites.
Depois, começamos a ouvir sons e a ter
sensações vindas de fora daquele mundo.
Quanto mais aumentamos dentro do útero, mais a
distância entre nós e o mundo exterior se torna menor , mais pequena.
E este mundo em que estávamos dentro, que parecia
tão grande e tão infinitamente acolhedor, vai tornando-se muito desconfortável, pequeno para nós. Então,
temos força para nascer.
O nascimento é tão caótico e violento , que se
tivéssemos consciência àquela época diríamos que o nascer seria, na verdade, um
morrer. Imaginaríamos que o nascer seria a morte, o fim da vida.
Mas o nascer é uma surpresa, pois aquilo que parecia um fim, era um começo.
Quando somos crianças, o mundo parece
infinitamente grande e o tempo parece infinitamente longo. Mas, então,
continuamos a crescer e a aprender a
usar os nossos sentidos.
E aprendemos como sentir novamente os contornos do mundo em que estamos,
sentimos de algum modo os seus limites. E, às vezes, misturados com os sons e sensações deste mundo
podemos ouvir os sons e sentir a sensação
de choque vindo de um outro mundo.
E que esse outro mundo nos mostra que este mundo onde vivemos agora não
é a vida toda, pois sentimos como se algo acontecesse do outro lado da parede
muito fina que nos separa. Por um longo tempo podemos esquecer-nos dessa
experiência. Porém, de repente, ela vem novamente.
Dentro do útero desenvolvemos órgãos que ainda
não podiam ser usados. Eles já estavam em nós, mas ainda não estava diante de
nós a realidade para a qual eles foram criados. Talvez haja em nós , depois de
nascidos, outros órgãos semelhantes , órgãos já nascidos, que captam, ainda que
confusamente, sensações de outro mundo”. (Lhasa de Sela)
Para Chegar Ao Teu Lado
graças ao teu corpo dou
por haver me esperado
tive que me perder para
chegar até o teu lado
graças aos teus braços dou
por haver me alcançado
tive que me distanciar para
chegar até o teu lado
graças às tuas mãos dou
por haver me suportado
tive que me queimar
para chegar até o teu ladosábado, 1 de julho de 2017
os replicantes...
Acabo de
rever Blade Runner. Assisti a esse filme
no cinema há mais de trinta anos. O
filme falava de um futuro que não era, àquela época, tão distante, porém não
era também tão próximo, de tal modo que era crível o cenário que ele construía
para 2019!
O filme fora lançado em 1982. Parecia que, de fato, teríamos carro
voando dali a 35 anos, bem como colônias interplanetárias, robôs humanoides e coisas semelhantes. Hoje, olhamos para esse passado e percebemos que o futuro que ele
planejou era ideológico, como ideológica é toda construção de futuro baseada na
simples tecnologia. Porém, quando cresce uma geração nova, parece que a lição é
esquecida, e novamente a tecnologia assume os ares de profeta de um futuro que nos salvará das mazelas do presente ( como se fosse ela, e não a política, a agente da autêntica mudança).
No
entanto, o futuro que a tecnologia de hoje vislumbra revela mais o estágio da tecnologia
atual do que nos faz conhecer a tecnologia que será. A tecnologia somente pode prometer mais tecnologia, ela promete mais dela mesma. No entanto, é possível haver mais tecnologia sem haver , ao mesmo tempo, menos humanismo?
Além disso, quando se trata de
cinema, com o passar do tempo as ficções científicas mudam a imagem do futuro de acordo com as possibilidades
tecnológicas de determinado tempo presente. Em geral, os jovens de hoje riem
de filmes como Jornada nas Estrelas e semelhantes, porém aceitam como crível
filmes como Avatar e congêneres. O futuro muda conforme muda a imaginação
presente do que seja o futuro. E o que faz a imaginação presente mudar nunca é
uma ideia adequada do tempo, mas sempre
a alienação de cada geração nova acerca do seu tempo presente. Ou seja, é
sempre do presente que tais ficções científicas tratam, um presente que se
projeta, imaginativamente, como futuro.
Contudo,
quando examinamos a história das línguas, percebemos que elas mudam ao longo do
tempo. O português, por exemplo. O português falado há 100 anos não é o mesmo que o falado hoje. Porém há 100
anos era impossível aos falantes de
então saber como seria o português falado hoje, pois o português de agora é fruto de invenções não apenas linguísticas,
mas também sociais e mentais. Não se pode prever como será aquilo que , para
se tornar real, precisa ser inventado!
Como
será o português que se falará daqui a 100 anos? Ninguém sabe...Isso porque não
é a língua que muda sozinha, é a vida que a muda, vida que pensa, age,
afeta-se. Vida essa que não é totalmente científica, embora seja ela que cria
ciência e ficções científicas.
O português de amanhã não é criado nas academias,
tampouco o está criando o linguista ou aqueles que falam corretamente as regras da gramática,
que são aqueles que têm mente científica. Quem cria o português de amanhã são
os que estão à margem do social, e por isso vivem a margem da língua. Quem muda
a língua também são os que vivem nas margens metafísicas, sobretudo os poetas. As
margens metafísicas são aquelas que não podem ser ditas pelos significados
dominantes a serviço do poder dos que dominam o mundo “objetivo” de hoje.
Não é
a tecnologia expressa em aparelhos (celulares, computadores, etc.) que muda o mundo, o que muda o mundo é o que
muda a mente que dá sentido ao mundo. O que muda a mente é a língua que molda o significado que o mundo recebe, incluindo o mundo da tecnologia. É a língua a matriz de toda tecnologia, pois a língua é uma "tecnologia mental".
No entanto, um artista da língua, um inventor de sentidos, enfim um poeta, não é um tecnólogo , ele se assemelha mais a um artesão, a um arqueólogo, a um explorador. Ele alcança origens muito mais originais:o poeta muda o que muda a mente, dado que ,
nele, é o sentido que é inventado primeiro, antes mesmo da distinção entre
mundo e mente.
O poeta não quer falar a língua que será falada em um futuro
distante, ele deseja inventar um sentido para o que não cabe no ontem, no hoje
e nesse amanhã que a ciência ficcionaliza. O poeta quer dizer o que não cabe em nenhum
dizer, de ontem ou de amanhã, mas que apenas hoje ele pode dizer, embora esse
dizer não seja de hoje, como é apenas de hoje a palavra que tão somente informa.
No
filme Blade Runner, os homens
inventaram robôs-exploradores , chamados “replicantes”,
para estes irem até onde os homens não
conseguem ir no espaço exterior. Os poetas são "replicantes" que a própria vida
inventou, como “imitagem” dela mesma, para que eles povoem a terra que os
homens também não alcançam. Essa "terra" é um espaço mental interior tão amplo como aqueles espaços infinitos que as ficções científicas apenas imaginam.
empoemamentos...
Para quem tem interesse no assunto, fica o convite para palestra em curso da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro ( é preciso fazer inscrição):
"Quando o sofrimento se transforma em Poesia e amor ( a partir de Manoel de Barros)"
por Elton Luiz Leite de Souza
(Dia 20 de Outubro, 16h /17h30)
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