domingo, 8 de novembro de 2015

a calça



O homem virtuoso nunca fica sozinho:
perto dele sempre se instalam bons vizinhos.
Sêneca.




Quando eu era adolescente, não querendo dar trabalho à minha mãe e desejando exercer um pouco de autonomia, fui eu mesmo, certo dia, lavar uma calça jeans minha [àquela época, só existia jeans de cor bem escura, padronizada]. Como não tínhamos máquina de lavar, fiz a tarefa à mão. Após lavá-la, coloquei então a calça para secar, estendida no varal de nosso pequeno quintal. 
Na manhã do dia seguinte, notei que a calça havia caído do varal, provavelmente arremessada por algum vento mais forte. Uma das pernas caiu dentro de uma bacia com um líquido que eu pensara ser apenas água. Peguei a calça e a pus novamente para secar.
Horas depois, percebi que o líquido da bacia não era apenas água, mas sim água sanitária, pois a perna que caíra no recipiente estava completamente desbotada.
Minha percepção se sentira atraída por aquele efeito diferente, que nunca antes eu vira em calça alguma. Peguei a calça e resolvi mergulhá-la por inteiro na bacia com água sanitária...
[confesso que mal dormi aquela noite: algo em mim sentia que não seria apenas a calça que entraria em metamorfose, pois eu mesmo não seria mais o mesmo após aquela experimentação  poética...]
No dia seguinte, vi o resultado: a calça, paradoxalmente,  não era mais uma calça, pois ela se tornara um signo através do qual eu poderia expressar o mundo que eu trazia dentro. Nunca antes eu havia visto uma calça assim, e era isso que me fazia ver algo de novo nela. Subtraída do comum ao qual pertencia, a calça agora se tornara um ser singular cuja positividade maior era a sua diferença :a calça deixou de ser uma calça para devir uma arte que eu , menino,ousei.
Ao pôr a calça, eu vestia não apenas meu corpo, mas também meu espírito - pois este, por ser diferente, somente por algo diferente pode ser vestido [ na minha inocência, talvez, imaginei que todos amariam aquilo que eu também amava: e que todos talvez também quisessem saber como se cria algo novo e diferente, para se  vestir com a novidade].
Quando sai à rua, algumas pessoas me interrogavam com um olhar curioso, enquanto outras me julgavam com um olhar de reprovação [ninguém me conhecia, tampouco sabiam quem eu era: julgavam-me apenas por aquele simples pedaço de pano, por aquela aparência... Depois compreendi que não era exatamente aquela diferente calça o que eles odiavam, mas antes o ato  que a engendrou, que era um simples e inocente  ato de subversão semiótica, micro-política].
Percebi então, muito antes de ler os filósofos, a tirania do senso comum [ e da recognição], que logo se mostra quando algo destoa de seu olhar homogenizador e padronizante. Tive que tomar naquela breve situação a mais importante decisão, que certamente determinaria minha vida dali por diante, eu que tão jovem era ainda [e tomei tal decisão sem consultar pai,professor, regras,cartilhas,gramáticas... muito menos a razão]:ou voltar para casa e colocar uma calça/alma igual a de todos, ou continuar sendo o que era, e enfrentar o inimigo que também estava dentro de mim... Decidi seguir meu caminho e afirmar minha diferença enfim vestida.
Chegando ao colégio, um amigo do peito gostou do efeito, pois a alma dele, como a alma de quase todos, estava nua e queria também vestir-se. Mostrei-lhe como se fazia, a alma dele também se vestiu, e assim eu já não estava mais sozinho.



texto publicado no livro:




Esse antigo armário,
hoje num canto jogado,
outrora guardava a roupa da moda.
Hoje, é o tempo que o guarda,
como uma de suas peças novas



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