segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Espinosa: o direito nascente (artigo)



(trecho do artigo)

                                ESPINOSA: O DIREITO NASCENTE


                                                                  Elton Luiz Leite de Souza*


Resumo:A originalidade de Espinosa, que é também sua atualidade, repousa na distinção de dois termos: jus e lex. Essa distinção envolve a célebre diferença entre direito natural e direito positivo.Porém, Espinosa se recusa a dividir o direito. Para ele, há apenas um único direito, e este é expresso pelo termo jus, que também se traduz em sua obra por potentia.O que comumente se chama de justiça, Espinosa identifica à lex, a lei.A diferença entre direito e lei é a mesma que distingue potência ( potentia) e potesta ( poder).Ao identificar o direito à lei, o positivismo relega a justiça ao campo meramente ideal, do dever ser.Para Espinosa, diferentemente, a justiça é âmbito da lei, e apenas dela, uma vez que o direito, enquanto potência, é parte do próprio ser.
Palavras chave: Espinosa, Direito, Justiça, Lei.


Quem se aproxima da origem se renova.
Manoel de Barros


1 Introdução: jus e lex
Na época em que Espinosa escreveu havia certa tensão semântica entre dois termos: jus e lex. Espinosa defende a precedência do jus sobre a lex, tomando-o como sinônimo de potentia. O jus é a potentia. E a potentia é a própria existência. Em Espinosa, a existência se expressa como capacidade de agir.
O agir não é exatamente correr, andar...Olhar também é agir, assim como o ouvir. E mesmo o meditar é um agir. O agir é uma atividade. Corpo e mente agem: eles agem posto que existem. O contrário do agir é o padecer. Este nasce quando aquilo que fazemos se explica mais por outra coisa do que por nós mesmos. Um exemplo: o homem que, tomado pelo ódio, fala descontroladamente e corre atrás do ser que ele odeia, para assim tentar feri-lo ou destruí-lo, esse falar e esse correr feitos por ele não são ações, são padeceres.O corpo dele aparentemente age, mas não age a mente. Esta sofre o agir de algo externo. Sob um padecer, nascem as paixões. Estas podem ser tristes ou alegres, conforme veremos mais à frente.Por ora, queremos adiantar o seguinte: as paixões não são ações, mesmo as paixões alegres. As ações são idênticas às virtudes. Mas Espinosa inova, e muito, também aqui; pois para ele as virtudes não são temas circunscritos apenas ao âmbito dos valores, já que elas, as virtudes, pertencem à própria existência: elas fazem parte, portanto, da própria ontologia, isto é, da maneira como de fato somos. E é por isso que ele nomeia sua obra como Ética. Aqui, porém, o objeto não é o dever ser, e sim o próprio ser. Sua concepção de direito, conforme será visto, é marcada por essa originalidade: o direito está inscrito no campo ontológico; logo, na esfera da ética.O direito assim compreendido não é prática apenas da vontade: ele também é, de forma imanente, questão que envolve o pensar.Por isso, e este é o ponto principal, há uma relação intrínseca entre jus e existência, entre jus e natureza. Daí a definição do jus como direito: direito natural  .
A palavra “natureza” é a tradução do termo grego “physis”, que significa  “nascer”. Hoje, quando pensamos em natureza, imaginamos florestas, rios, animais...isto é, coisas não tocadas ou maculadas pelo agir técnico do homem; já os homens da ciência,  por sua vez, pensam na natureza como a esfera do determinado, do objetivo, por oposição ao mundo dos valores. Essas duas maneiras de encarar a natureza, porém, não traduzem o sentido original da ideia de natureza presente no pensamento de Espinosa. Para este, natureza é tudo o que existe. A natureza também compreende o plano das ideias, o âmbito da mente ( do pensar).
Todavia, as coisas, os seres,  podem existir como efeito ou como causa.E aqui está a riqueza de Espinosa: em geral, olhamos para o efeito como algo já nascido, pronto, e mal atinamos para o produtor, para aquele que o fez nascer. Por outro lado, em Espinosa não há uma cisão absoluta entre o nascido e aquele ( a causa) que o faz nascer. Quando olhamos para tudo o que é efeito e buscamos ver nele sua causa, compreendemos que o efeito nunca se separa de sua causa, e que esta está sempre a viver na imanência daquilo que ela produz. Aplicando essa ideia ao tema do artigo, podemos dizer que a lex é o efeito do jus. O jus é direito, mas direito sempre nascente. Quando a lex se separa do jus, ela pode se tornar direito morrente: um direito que perdeu sua relação com a existência, com a ética. Apenas as palavras, e as paixões, a sustentam. A lex provoca, então, mais maus encontros do que bons: entrar em contato com ela gera mais tristeza do que  alegria. E o mais grave: quando a lex perde seu vínculo, vínculo filosófico, como o jus, ela pode se converter em meio ou instrumento para a injustiça. Isto é, ela pode tornar-se arma nas mãos daqueles que a empregarão para fazer valer suas paixões, sobretudo a paixão pela potesta, pelo poder.
Por outro lado, Espinosa desdiviniza a lex  e a considera como fruto da prática humana. Com a lei, nasce a ideia de justiça. Não há justiça sem lex; não há lex , e portanto justiça, sem direito. O que hoje chamamos de direito civil é o que Espinosa designa como lex.Por outro lado, atribui-se  hodiernamente o nome de direito natural a algo muito distinto do que Espinosa entendia por esta expressão. De fato, é consensual hoje estender  a ideia de lex à natureza, o que leva a supor que há um legislador que criou esta lex, e que este legislador não é o homem. Além disso, esta lex não trata do que é, da existência, mas do que deve ser. Repetimos: em Espinosa, a natureza não é um dever ser, ela é ser, existência, potência.Quando se atribui ao ser a lex, a lei, finda-se por   prescrever ao que é  uma obrigação: a de que ele deve ser. Coloca-se então uma cisão entre a existência( o agir, a potência) e o plano das essências. Estas se tornam modelos ideais que todo agir deve buscar realizar. Quando se atribui a lex à natureza, salta para fora uma transcendência como plano ideal e moral. O plano das essências seria perfeito, esfera das “puras formas”: nestas estaria a perfeição de que carece a existência. No plano das essências há um homem ideal como modelo moral para os homens que de fato existem. Esse modelo ideal de direito natural é tolerado pelos usurpadores da justiça, e até mesmo incentivado, uma vez que ele não incomoda a ninguém. Como diz Espinosa, esse modelo estéril/erudito/formal/transcendente  de direito natural   é como um templo no qual os homens entram e , lá dentro , abraçam-se e se tratam de amigos e irmãos. Mas quando voltam aos seus interesses , que deixaram fora do templo, tratam-se como inimigos e, por imaginativa precaução, dissimulam meios para se colocarem como exceção às regras, considerando que o mesmo fará , se liberdade tiver, o outro homem.
É assim que argumenta Espinosa para refutar a intromissão da lex no âmbito do direito natural: como toda lex, a lei natural seria um universal, uma forma. Por ser uma forma, ela não é uma potência, mas um limite . Assim, transpõe-se igualmente a ideia de justiça para esta esfera ideal e formal , de tal maneira que existiriam duas justiças: a que depende dos homens, a justiça jurídica, e a que não está no poder dos homens , a justiça natural ou moral, cuja fonte seria uma razão imaculada ou um Deus Legislador.
Espinosa se distingue profundamente dessa concepção clássica de direito natural. Para ele, jus é direito; lex é justiça, lex ( lei) não é direito. Logo, só existe um direito: o que se deduz da potência ou, o que é o mesmo, da existência. Sob essa perspectiva, o justo e o injusto são determinados pelo homem como meios para favorecer sua existência, seu direito natural. O injusto é tudo aquilo que precariza o direito natural. O justo tem seu contrário: o injusto. Mas o direito natural não tem contrário: não existe “indireito”, a não ser que o identifiquemos à fragilização ou despotencialização da existência e, no seu limite, o indireito seria a própria morte.
Direito é sinônimo de existência. Direito é ser, e não dever ser.  A lex não é o direito: ela é o instrumento do direito. E só há um direito: o de existir. O corpo existe agindo, assim como a mente também existe agindo. O agir da mente é o pensar. O direito não pertence ao campo axiológico, mas ao ontológico. Ele não é um valor, ele é um ser, um agir.Pode existir direito sem lex, como no estado de natureza, porém  não pode existir lex sem direito. Em Espinosa há um só direito, e não dois. O que caracteriza a sociedade civil é que, nela, não pode existir direito sem lex. Espinosa não aceita a divisão do direto em dois: o natural e o positivo. Existe apenas um direito.
Como todo valor, a ideia de justiça implica também seu contrário: a injustiça. A injustiça é uma negação da lei.O direito está no campo do ser, da dimensão ontológica. O direito é potência, jus. Se a injustiça é uma negação da justiça, a impotência é um enfraquecimento do jus, da existência, isto é , a sua despotencialização. Não raro,  a introdução da ideia de injustiça no campo da natureza gera a ideia de um “mal radical” ( como pensa Kant) no coração mesmo do homem, como se ele fosse um demônio irrecuperável que furtou ou roubou antes mesmo de haver direito penal para determinar o que é furto e roubo....A intromissão da lei no campo ontológico produz uma metafísica da culpa, do negativo, da pena. Como corolário, criar-se-á um Tribunal Teológico-Jurídico com direito a julgar os homens até mesmo depois de eles não mais existirem.
Quando um jovem virtuoso diz: “vou fazer direito!” , está elidida nessa afirmação a diferença entre direito e lei. Estranharíamos se ele dissesse: “vou fazer leis!”. Esta mesma expressão soaria adequada se o jovem tivesse a intenção de ser um parlamentar, um legislador. Um estranhamento igual causaria se ouvíssemos deste último a frase: “vou fazer direito!”. Assim, ao invés do direito, escolas de direito via de regra  ensinam o conhecimento de leis já prontas, como formas apenas, de tal modo são elas separadas daquilo que é sua virtude: o direito. Pior ainda, confundem o direito com a lei e negam que o direito natural seja de fato direito. Mas o que não é direito é a lei: esta é potesta, poder,  ao passo que o direito é potência. Por essa razão, ensinar o direito não é apenas ensinar leis. Ensinar o direito também é ensinar a filosofia, o agir, o pensar, o desejar, a sociedade, enfim, a natureza. Ensinar apenas a lex é fechar, ao passo que fazer compreender o jus é abrir, é agenciar, é conectar.E é a própria lex que também é assim ampliada, quando a vemos ligada ao jus que a faz existir.
O positivismo, como “religião das leis”, destrói o direito quando o identifica à lex, ao mesmo tempo que retira desta o caráter de poder a serviço de uma potência, isto é, de uma existência ou direito. Quando  o juiz diz que é “a boca da lei”, não está destituindo-se de poder, como aparentemente quer fazer acreditar, mas arvora para si um poder semelhante ao do sacerdote que apenas diz ser o instrumento de Deus. Tal juiz é o sacerdote da religião das leis. Além disso, o jus não concerne apenas à boca, ao proferir sentenças. Ele também se enraíza no coração, no sentir, e é ele que dá consistência ética à sentença como “sentir que também se pensa”.
 Mas por que o direito natural não é suficiente para garantir a convivência dos homens? Por que precisamos da lex? Espinosa afirma que o jus é potência de agir.Contudo, a potência de agir não é exatamente o agir. O médico tem a potência de curar, mesmo quando ele não está exercendo a medicina. Quando ele está de fato a exercendo, o médico está agindo: ele exerce seu poder, sua potesta. A potesta, o poder, decorre da potência, é a sua efetuação. Não há potesta sem potentia, e potentia é jus, direito. O jus primeiro é a própria existência. Existir é o primeiro direito. No estado de natureza, porém, os homens carecem de meios para compreender o que é sua existência, o que é o jus. Embora careçam de meios de compreensão, eles não carecem, no entanto, dos meios de exercerem o poder, a potesta. O que caracteriza o estado de natureza é a utilização da potesta como instrumento a serviço apenas do jus próprio, em detrimento do jus do outro. O jus do outro, a existência do outro, passa a ser considerada como inimiga.
Para Espinosa , e isto expressa sua impressionante atualidade, o estado de natureza não antecedeu, no tempo, o estado social. Ele não foi superado de uma vez por todas com o contrato social e a instituição da lex.O estado de natureza é pré-social. Ele é um estado pré-reflexivo, imaginativo, passional, e que está presente mesmo no homem considerado racional.Quando um juiz julga movido mais por paixões do que por virtude, ele está se comportando como se vivesse no estado de natureza: o outro é um inimigo diante do qual posso trapacear, dissimular, enganar, supondo que ele faria o mesmo comigo se liberdade ele tivesse.O pré-social não é o índio em sua floresta, mas o homem que serve às suas paixões como se fosse um escravo ou servo delas.O estado de natureza não é uma negatividade a ser superada, ele é uma forma confusa de se compreender a existência e a liberdade.Mas não se pode eliminar o estado de natureza, assim como não se pode erradicar, por decreto ou lei, a cobiça, a raiva, a inveja, a ira...
A lex é produzida não para negar o jus, mas para a criação de um outro indivíduo que nascerá para garantir a singularidade do direito de cada um. Esse indivíduo é o Estado.Não há indivíduo sem partes. A lex nos faz partes de um indivíduo cuja existência ( ou jus) consiste em potencializar a nossa existência, o nosso jus. Quando o Estado quer fazer prevalecer seu jus em detrimento do direito dos indivíduos, ele se comportará então como um indivíduo passional, invejoso, guloso, que quererá existir como um todo à parte. E, para tal, ele poderá se servir da lex, da lei. Ou seja, o Estado se comportará , ele também, como em estado de natureza pré-social. Seus inimigos não serão apenas os outros Estados, eles serão sobretudo seus próprios cidadãos. Eles serão forçados a sustentar esse Estado, assim como um órgão doente força os outros órgãos a trabalharem forçadamente para ele, uma vez que já não há mais o todo como razão de ser dos órgãos ( o órgão doente se comporta como “um todo à parte”).
O Estado nasce tão somente da delegação da potesta, do poder, e não da potência. O Estado surge pela delegação do poder de agir enquanto ações que nosso corpo pode fazer. Pois pensar, imaginar, etc. também são ações que fazemos com nossa mente ou espírito. O limite da lex e do Estado é determinado pela potência de pensar. E pensar não é lex, é jus, é direito.





* Doutor em Filosofia ( Uerj), Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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