(trecho do artigo)
ESPINOSA: O DIREITO NASCENTE
Elton Luiz Leite de Souza*
Resumo:A originalidade de Espinosa, que é também sua
atualidade, repousa na distinção de dois termos: jus e lex. Essa distinção
envolve a célebre diferença entre direito natural e direito positivo.Porém,
Espinosa se recusa a dividir o direito. Para ele, há apenas um único direito, e
este é expresso pelo termo jus, que também se traduz em sua obra por potentia.O
que comumente se chama de justiça, Espinosa identifica à lex, a lei.A diferença
entre direito e lei é a mesma que distingue potência ( potentia) e potesta (
poder).Ao identificar o direito à lei, o positivismo relega a justiça ao campo
meramente ideal, do dever ser.Para Espinosa, diferentemente, a justiça é âmbito
da lei, e apenas dela, uma vez que o direito, enquanto potência, é parte do
próprio ser.
Palavras chave: Espinosa, Direito, Justiça, Lei.
Quem se aproxima da origem se renova.
Manoel de Barros
1 Introdução: jus e lex
Na
época em que Espinosa escreveu havia certa tensão semântica entre dois termos: jus e lex. Espinosa defende a precedência do jus sobre a lex,
tomando-o como sinônimo de potentia.
O jus é a potentia. E a potentia é
a própria existência. Em Espinosa, a existência se expressa como capacidade de
agir.
O agir
não é exatamente correr, andar...Olhar também é agir, assim como o ouvir. E
mesmo o meditar é um agir. O agir é uma atividade. Corpo e mente agem: eles
agem posto que existem. O contrário do agir é o padecer. Este nasce quando
aquilo que fazemos se explica mais por outra coisa do que por nós mesmos. Um
exemplo: o homem que, tomado pelo ódio, fala descontroladamente e corre atrás
do ser que ele odeia, para assim tentar feri-lo ou destruí-lo, esse falar e
esse correr feitos por ele não são ações, são padeceres.O corpo dele
aparentemente age, mas não age a mente. Esta sofre o agir de algo externo. Sob
um padecer, nascem as paixões. Estas podem ser tristes ou alegres, conforme
veremos mais à frente.Por ora, queremos adiantar o seguinte: as paixões não são
ações, mesmo as paixões alegres. As ações são idênticas às virtudes. Mas
Espinosa inova, e muito, também aqui; pois para ele as virtudes não são temas
circunscritos apenas ao âmbito dos valores, já que elas, as virtudes, pertencem
à própria existência: elas fazem parte, portanto, da própria ontologia, isto é,
da maneira como de fato somos. E é por isso que ele nomeia sua obra como Ética.
Aqui, porém, o objeto não é o dever ser, e sim o próprio ser. Sua concepção de
direito, conforme será visto, é marcada por essa originalidade: o direito está
inscrito no campo ontológico; logo, na esfera da ética.O direito assim
compreendido não é prática apenas da vontade: ele também é, de forma imanente,
questão que envolve o pensar.Por isso, e este é o ponto principal, há uma
relação intrínseca entre jus e
existência, entre jus e natureza. Daí
a definição do jus como direito: direito natural .
A
palavra “natureza” é a tradução do termo grego “physis”, que significa “nascer”. Hoje, quando pensamos em natureza,
imaginamos florestas, rios, animais...isto é, coisas não tocadas ou maculadas
pelo agir técnico do homem; já os homens da ciência, por sua vez, pensam na natureza como a esfera
do determinado, do objetivo, por oposição ao mundo dos valores. Essas duas
maneiras de encarar a natureza, porém, não traduzem o sentido original da ideia
de natureza presente no pensamento de Espinosa. Para este, natureza é tudo o
que existe. A natureza também compreende o plano das ideias, o âmbito da mente
( do pensar).
Todavia,
as coisas, os seres, podem existir como
efeito ou como causa.E aqui está a riqueza de Espinosa: em geral, olhamos para
o efeito como algo já nascido, pronto, e mal atinamos para o produtor, para
aquele que o fez nascer. Por outro lado, em Espinosa não há uma cisão absoluta
entre o nascido e aquele ( a causa) que o faz nascer. Quando olhamos para tudo
o que é efeito e buscamos ver nele sua causa, compreendemos que o efeito nunca
se separa de sua causa, e que esta está sempre a viver na imanência daquilo que
ela produz. Aplicando essa ideia ao tema do artigo, podemos dizer que a lex é o efeito do jus. O jus é direito,
mas direito sempre nascente. Quando a lex se separa do jus, ela pode se tornar
direito morrente: um direito que perdeu sua relação com a existência, com a
ética. Apenas as palavras, e as paixões, a sustentam. A lex provoca, então,
mais maus encontros do que bons: entrar em contato com ela gera mais tristeza
do que alegria. E o mais grave: quando a
lex perde seu vínculo, vínculo filosófico, como o jus, ela pode se converter em
meio ou instrumento para a injustiça. Isto é, ela pode tornar-se arma nas mãos
daqueles que a empregarão para fazer valer suas paixões, sobretudo a paixão
pela potesta, pelo poder.
Por
outro lado, Espinosa desdiviniza a lex e
a considera como fruto da prática humana. Com a lei, nasce a ideia de justiça.
Não há justiça sem lex; não há lex , e portanto justiça, sem direito. O que
hoje chamamos de direito civil é o que Espinosa designa como lex.Por outro
lado, atribui-se hodiernamente o nome de
direito natural a algo muito distinto do que Espinosa entendia por esta
expressão. De fato, é consensual hoje estender
a ideia de lex à natureza, o que leva a supor que há um legislador que
criou esta lex, e que este legislador não é o homem. Além disso, esta lex não
trata do que é, da existência, mas do que deve
ser. Repetimos: em Espinosa, a natureza não é um dever ser, ela é ser,
existência, potência.Quando se atribui ao ser a lex, a lei, finda-se por prescrever ao que é uma obrigação: a de que ele deve ser.
Coloca-se então uma cisão entre a existência( o agir, a potência) e o plano das
essências. Estas se tornam modelos ideais que todo agir deve buscar realizar.
Quando se atribui a lex à natureza, salta para fora uma transcendência como
plano ideal e moral. O plano das essências seria perfeito, esfera das “puras
formas”: nestas estaria a perfeição de que carece a existência. No plano das
essências há um homem ideal como modelo moral para os homens que de fato
existem. Esse modelo ideal de direito natural é tolerado pelos usurpadores da
justiça, e até mesmo incentivado, uma vez que ele não incomoda a ninguém. Como
diz Espinosa, esse modelo estéril/erudito/formal/transcendente de direito natural é como um templo no qual os homens entram e
, lá dentro , abraçam-se e se tratam de amigos e irmãos. Mas quando voltam aos
seus interesses , que deixaram fora do templo, tratam-se como inimigos e, por
imaginativa precaução, dissimulam meios para se colocarem como exceção às
regras, considerando que o mesmo fará , se liberdade tiver, o outro homem.
É
assim que argumenta Espinosa para refutar a intromissão da lex no âmbito do
direito natural: como toda lex, a lei natural seria um universal, uma forma.
Por ser uma forma, ela não é uma potência, mas um limite . Assim, transpõe-se
igualmente a ideia de justiça para esta esfera ideal e formal , de tal maneira
que existiriam duas justiças: a que depende dos homens, a justiça jurídica, e a
que não está no poder dos homens , a justiça natural ou moral, cuja fonte seria
uma razão imaculada ou um Deus Legislador.
Espinosa
se distingue profundamente dessa concepção clássica de direito natural. Para
ele, jus é direito; lex é justiça, lex ( lei) não é direito.
Logo, só existe um direito: o que se deduz da potência ou, o que é o mesmo, da
existência. Sob essa perspectiva, o justo e o injusto são determinados pelo
homem como meios para favorecer sua existência, seu direito natural. O injusto
é tudo aquilo que precariza o direito natural. O justo tem seu contrário: o
injusto. Mas o direito natural não tem contrário: não existe “indireito”, a não
ser que o identifiquemos à fragilização ou despotencialização da existência e,
no seu limite, o indireito seria a própria morte.
Direito
é sinônimo de existência. Direito é ser, e não dever ser. A lex não é o direito: ela é o instrumento do
direito. E só há um direito: o de existir. O corpo existe agindo, assim como a
mente também existe agindo. O agir da mente é o pensar. O direito não pertence
ao campo axiológico, mas ao ontológico. Ele não é um valor, ele é um ser, um
agir.Pode existir direito sem lex, como no estado de natureza, porém não pode existir lex sem direito. Em Espinosa
há um só direito, e não dois. O que caracteriza a sociedade civil é que, nela,
não pode existir direito sem lex. Espinosa não aceita a divisão do direto em
dois: o natural e o positivo. Existe apenas um direito.
Como
todo valor, a ideia de justiça implica também seu contrário: a injustiça. A
injustiça é uma negação da lei.O direito está no campo do ser, da dimensão
ontológica. O direito é potência, jus. Se a injustiça é uma negação da justiça,
a impotência é um enfraquecimento do jus, da existência, isto é , a sua
despotencialização. Não raro, a
introdução da ideia de injustiça no campo da natureza gera a ideia de um “mal
radical” ( como pensa Kant) no coração mesmo do homem, como se ele fosse um
demônio irrecuperável que furtou ou roubou antes mesmo de haver direito penal
para determinar o que é furto e roubo....A intromissão da lei no campo
ontológico produz uma metafísica da culpa, do negativo, da pena. Como
corolário, criar-se-á um Tribunal Teológico-Jurídico com direito a julgar os
homens até mesmo depois de eles não mais existirem.
Quando
um jovem virtuoso diz: “vou fazer direito!” , está elidida nessa afirmação a
diferença entre direito e lei. Estranharíamos se ele dissesse: “vou fazer
leis!”. Esta mesma expressão soaria adequada se o jovem tivesse a intenção de
ser um parlamentar, um legislador. Um estranhamento igual causaria se
ouvíssemos deste último a frase: “vou fazer direito!”. Assim, ao invés do
direito, escolas de direito via de regra ensinam o conhecimento de leis já prontas,
como formas apenas, de tal modo são elas separadas daquilo que é sua virtude: o
direito. Pior ainda, confundem o direito com a lei e negam que o direito
natural seja de fato direito. Mas o que não é direito é a lei: esta é potesta,
poder, ao passo que o direito é
potência. Por essa razão, ensinar o direito não é apenas ensinar leis. Ensinar
o direito também é ensinar a filosofia, o agir, o pensar, o desejar, a
sociedade, enfim, a natureza. Ensinar apenas a lex é fechar, ao passo que fazer
compreender o jus é abrir, é agenciar, é conectar.E é a própria lex que também
é assim ampliada, quando a vemos ligada ao jus que a faz existir.
O
positivismo, como “religião das leis”, destrói o direito quando o identifica à
lex, ao mesmo tempo que retira desta o caráter de poder a serviço de uma
potência, isto é, de uma existência ou direito. Quando o juiz diz que é “a boca da lei”, não está
destituindo-se de poder, como aparentemente quer fazer acreditar, mas arvora
para si um poder semelhante ao do sacerdote que apenas diz ser o instrumento de
Deus. Tal juiz é o sacerdote da religião das leis. Além disso, o jus não
concerne apenas à boca, ao proferir sentenças. Ele também se enraíza no coração,
no sentir, e é ele que dá consistência ética à sentença como “sentir que também
se pensa”.
Mas por que o direito natural não é suficiente
para garantir a convivência dos homens? Por que precisamos da lex? Espinosa
afirma que o jus é potência de agir.Contudo, a potência de agir não é
exatamente o agir. O médico tem a potência de curar, mesmo quando ele não está
exercendo a medicina. Quando ele está de fato a exercendo, o médico está
agindo: ele exerce seu poder, sua potesta. A potesta, o poder, decorre da
potência, é a sua efetuação. Não há potesta sem potentia, e potentia é jus,
direito. O jus primeiro é a própria existência. Existir é o primeiro direito.
No estado de natureza, porém, os homens carecem de meios para compreender o que
é sua existência, o que é o jus. Embora careçam de meios de compreensão, eles
não carecem, no entanto, dos meios de exercerem o poder, a potesta. O que
caracteriza o estado de natureza é a utilização da potesta como instrumento a
serviço apenas do jus próprio, em detrimento do jus do outro. O jus do outro, a
existência do outro, passa a ser considerada como inimiga.
Para
Espinosa , e isto expressa sua impressionante atualidade, o estado de natureza
não antecedeu, no tempo, o estado social. Ele não foi superado de uma vez por
todas com o contrato social e a instituição da lex.O estado de natureza é
pré-social. Ele é um estado pré-reflexivo, imaginativo, passional, e que está
presente mesmo no homem considerado racional.Quando um juiz julga movido mais
por paixões do que por virtude, ele está se comportando como se vivesse no
estado de natureza: o outro é um inimigo diante do qual posso trapacear,
dissimular, enganar, supondo que ele faria o mesmo comigo se liberdade ele
tivesse.O pré-social não é o índio em sua floresta, mas o homem que serve às
suas paixões como se fosse um escravo ou servo delas.O estado de natureza não é
uma negatividade a ser superada, ele é uma forma confusa de se compreender a
existência e a liberdade.Mas não se pode eliminar o estado de natureza, assim
como não se pode erradicar, por decreto ou lei, a cobiça, a raiva, a inveja, a
ira...
A lex
é produzida não para negar o jus, mas para a criação de um outro indivíduo que
nascerá para garantir a singularidade do direito de cada um. Esse indivíduo é o
Estado.Não há indivíduo sem partes. A lex nos faz partes de um indivíduo cuja
existência ( ou jus) consiste em potencializar a nossa existência, o nosso jus.
Quando o Estado quer fazer prevalecer seu jus em detrimento do direito dos
indivíduos, ele se comportará então como um indivíduo passional, invejoso,
guloso, que quererá existir como um todo à parte. E, para tal, ele poderá se
servir da lex, da lei. Ou seja, o Estado se comportará , ele também, como em
estado de natureza pré-social. Seus inimigos não serão apenas os outros
Estados, eles serão sobretudo seus próprios cidadãos. Eles serão forçados a
sustentar esse Estado, assim como um órgão doente força os outros órgãos a
trabalharem forçadamente para ele, uma vez que já não há mais o todo como razão
de ser dos órgãos ( o órgão doente se comporta como “um todo à parte”).
O
Estado nasce tão somente da delegação da potesta, do poder, e não da potência.
O Estado surge pela delegação do poder de agir enquanto ações que nosso corpo
pode fazer. Pois pensar, imaginar, etc. também são ações que fazemos com nossa
mente ou espírito. O limite da lex e do Estado é determinado pela potência de
pensar. E pensar não é lex, é jus, é direito.
* Doutor em
Filosofia ( Uerj), Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro.
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