Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo,
devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros.
Nietzsche
Há alguns afetos que , quando restritos à sua dimensão
privada, têm um sentido negativo. Tais são, por exemplo, a piedade e a
indignação. No plano privado, pessoal , “a
piedade [comiseratio] é uma
tristeza acompanhada da idéia de um mal sofrido por alguém semelhante a nós”( Ética III, Definição dos Afetos),
enquanto que a indignação é um “ódio endereçado a alguém que fez um mal a
outro”( Idem). Todavia, tais afetos
ganham uma dimensão positiva quando Espinosa os aborda a partir de uma
perspectiva ética, e que tem seu desdobramento na esfera política e jurídica.
Assim, a piedade é definida, no plano
ético- político-jurídico, como uma ação que fazemos visando o útil do outro.
Explica-se Espinosa: “Quanto ao desejo de fazer o bem [útil] , que nasce do fato de vivermos sob a direção da Razão,
chamo-lhe piedade [pieta]” ( Ética IV, Prop. XXXVII, esc. I).Por
isso, afirma ainda o filósofo, “aquele
que se esforça por conduzir os outros segundo a Razão não age impulsivamente,
mas com humanidade [ modéstia] e
doçura [cordialidade], e está
plenamente de acordo consigo mesmo” (Idem).O
útil é tudo aquilo que favorece um aumento de potência, isto é, de existência.
Nesse sentido, a piedade , como pieta, se confunde com a
própria justiça, ao passo que a comiseratio
tem uma origem na imaginatio, isto é, nas afecções da tristeza e do ódio ( daí sua apropriação por certo discurso
político fascista travestido de pretensa teologia ).
Compreendida
igualmente sob a perspectiva político-jurídica, a indignação é a busca de punição para quem fez um mal ao
outro. Ao contrário do que acontece no plano privado e pessoal, aqui a
indignação é movida pelo amor à paz pública. Alguns autores, como
Matheron, colocam o afeto da indignação
na raiz da produção do próprio Estado, como sua causa eficiente, para
assim promover a justiça e, ao mesmo tempo,
vencer no homem a paixão pela vingança , uma vez que esta ainda o prende ao estado de natureza.
Dessa maneira, quando restritos à mera vida privada,
pessoal, tais afetos revelam mais ódio e tristeza do que amor e alegria. Por
essa razão, não é verdadeiramente adequado a si e aos outros quem se
indigna com o mal sofrido pelos seus amigos ou parentes apenas.
Retomemos a parte final da definição da piedade ( como comiseratio): “um mal sofrido por alguém semelhante a nós”. Restrita ao âmbito pessoal, passional, privado,
a piedade é tão somente uma máscara atrás da qual está a autopiedade, assim
como a indignação exclusiva aos amigos e parentes também é sintoma de um amor
egoico, uma vez que amando a quem ele julga que o ama, o egoísta estará amando, em verdade, a si. Se de fato
ele amasse ao outro, se o seu critério do amor não fosse o egoico ( que escamoteia,
na verdade, um ódio a si), ele se indignaria com o mal sofrido por não importa
qual outro, independentemente deste outro amá-lo, dado que seu amor estaria
endereçado à comunidade, ao nós.Quem ama ao nós ama também a si e ao outro,
seja este outro um semelhante ou um diferente. Mas quem ama apenas a si via
de regra tem ódio ao outro e ignora a força clínica do nós.E este nós não nos
está apenas fora, ele também nos é imanente.
Para alcançar a piedade e a indignação enquanto afetos
que nos curam de nós mesmos, é preciso libertar-se de ideias confusas tais
como “ninguém presta, então me é
permitido burlar”, “todo mundo quer enganar todo mundo, então posso mentir e
enganar”, “o homem é o lobo do homem”, “Deus
elegeu exclusivamente nosso povo”, “Alá obriga que a gente mate quem não
acredita nele”, pois estas e outras semelhantes são ideias confusas que nascem do medo, da
ignorância, do desprezar e do zombar, não do compreender e do verdadeiramente
amar.
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