domingo, 15 de novembro de 2015

a dimensão política dos afetos em espinosa



Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo,
devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros.
Nietzsche



Há alguns afetos que , quando restritos à sua dimensão privada, têm um sentido negativo. Tais são, por exemplo, a piedade e a indignação. No plano privado, pessoal , “a  piedade [comiseratio] é uma tristeza acompanhada da idéia de um mal sofrido por alguém semelhante a nós”( Ética III, Definição dos Afetos), enquanto que a indignação é um “ódio endereçado a alguém que fez um mal a outro”( Idem). Todavia, tais afetos ganham uma dimensão positiva quando Espinosa os aborda a partir de uma perspectiva ética, e que tem seu desdobramento na esfera política e jurídica. Assim, a piedade é definida,  no plano ético- político-jurídico, como uma ação que fazemos visando o útil do outro. Explica-se Espinosa: “Quanto ao desejo de fazer o bem [útil] , que nasce  do fato de vivermos sob a direção da Razão, chamo-lhe piedade [pieta]” ( Ética IV, Prop. XXXVII, esc. I).Por isso, afirma ainda o filósofo,  “aquele que se esforça por conduzir os outros segundo a Razão não age impulsivamente, mas com humanidade [ modéstia] e doçura [cordialidade], e está plenamente de acordo consigo mesmo” (Idem).O útil é tudo aquilo que favorece um aumento de potência, isto é, de existência.
Nesse sentido, a piedade , como pieta,  se confunde com a própria justiça, ao passo que a comiseratio tem uma origem na  imaginatio, isto é, nas afecções da tristeza e do ódio  ( daí sua apropriação por certo discurso político fascista travestido de pretensa teologia ).ue a comiseratio tem um matiz imaginatio, passional. vivermos assim ele ignora a Necessidade de tudo o que lhe acont Compreendida igualmente sob a perspectiva político-jurídica, a indignação é  a busca de punição para quem fez um mal ao outro. Ao contrário do que acontece no plano privado e pessoal, aqui a indignação é movida  pelo  amor à paz pública. Alguns autores, como Matheron, colocam o afeto da indignação  na raiz da produção do próprio Estado, como sua causa eficiente, para assim promover a justiça e, ao mesmo tempo,  vencer no homem a paixão pela vingança , uma vez que esta  ainda o prende ao estado de natureza.
Dessa maneira, quando restritos à mera vida privada, pessoal, tais afetos revelam mais ódio e tristeza do que amor e alegria. Por essa razão, não é verdadeiramente adequado a si e aos outros quem se indigna  com o  mal sofrido pelos seus amigos ou parentes apenas. Retomemos a parte final da definição da piedade ( como comiseratio): “um mal sofrido por alguém semelhante a nós”. Restrita ao âmbito pessoal, passional, privado, a piedade é tão somente uma máscara atrás da qual está a autopiedade, assim como a indignação exclusiva aos amigos e parentes também é sintoma de um amor egoico, uma vez que amando a quem ele julga que o ama, o egoísta  estará amando, em verdade, a si. Se de fato ele amasse ao outro, se o seu critério do amor não fosse o egoico ( que escamoteia, na verdade, um ódio a si), ele se indignaria com o mal sofrido por não importa qual outro, independentemente deste outro amá-lo, dado que seu amor estaria endereçado à comunidade, ao nós.Quem ama ao nós ama também a si e ao outro, seja este outro um  semelhante  ou um diferente. Mas quem ama apenas a si via de regra tem ódio ao outro e ignora a força clínica do nós.E este nós não nos está apenas fora, ele também nos é imanente.
Para alcançar a piedade e a indignação enquanto afetos que nos curam de nós mesmos, é preciso libertar-se de ideias confusas tais como  “ninguém presta, então me é permitido burlar”, “todo mundo quer enganar todo mundo, então posso mentir e enganar”,  “o homem é o lobo do homem”, “Deus elegeu exclusivamente nosso povo”, “Alá obriga que a gente mate quem não acredita nele”, pois estas e outras semelhantes são  ideias confusas que nascem do medo, da ignorância, do desprezar e do zombar, não do compreender e do verdadeiramente amar.


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