Segundo Mário Quintana, há um “museu do Céu”. Neste, o
próprio eterno é o curador. Nesse museu eterno só entra o que também é eterno,
só entra o que for absoluto. “Ab-soluto”: “o que não se dissolve”, "o que não é soluto".
Não é um museu para lembrar o que foi, mas para conservar o
que é eterno. O eterno não é o que dura muito, o eterno é o que , mesmo tendo
durado pouco, foi intenso. “In-tenso” é, literalmente, “ir para dentro da
tensão”, “habitar a tensão”. O “extenso”, ao contrário, é o que “sai da tensão”( "ex"= "ir para fora").
As coisas materiais e “objetivas” são extensas. Também são extensas as coisas
tangíveis. Somente as coisas extensas podem ser medidas, pesadas, contadas, quantificadas
por números e etiquetadas. Somente quando saímos daquilo que é tenso
conseguimos fazer essas coisas típicas da inteligência e da técnica. Mas o que
é o tenso?
A corda do violão é tensionada quando produz o som. As fibras
musculares do coração nunca deixam de estar tensas, pois é assim que o coração
envia para fora de si o sangue. Tenso é o que exerce uma potência, uma
capacidade. Viver extensivamente é viver muitos anos. Mas viver intensamente é produzir
uma música nas cordas tensas do coração.Fazer muitos aniversários
extensivamente pode ser mais facilmente esquecido do que o acontecimento
intenso que torna inesquecível um único
aniversário que foi cheio de vida, repleto de intensidade.Quanto mais viva/intensa
a música, mais riscos correm as cordas de rebentarem. Contudo, este é o risco
da tensão: ela é um esforço, uma produção, um ir até o limite, até um limiar.
São os acontecimentos
que nasceram da intensidade que mais perto estão do museu do céu.Nele não estão
batalhas, medalhas, coroas com brilhantes, invenções mirabolantes, animais ou
esqueletos. No museu do céu estão gestos, acontecimentos, simplicidades,
cortesias, ousadias, imaginações...tudo o que foi espontâneo e que o homem
criou/viveu sem fazer cálculos, sem pesar, sem medir, sem comparar.No museu do céu não está a lua como realidade tangível, nele está o luar enquanto acontecimento que une o tangível ao intangível que , para ser compreendido, requer mais do que palavras.
No museu do céu não está o que se planeja fazer amanhã ou o
que se viveu ontem,muito menos o que se espera viver em outra vida, mas o que se deseja viver e afirmar no hoje, pois é somente aí que pode estar a felicidade intensa,mesmo ao preço de uma extensa dor, como em Os girassóis da Rússia.
A SINGULARIDADE
As intensidades do girassol são forças do tempo?
Cláudio Ulpiano
O plano geral mostra uma realidade
ampla, que se funde com o horizonte. Vemos os girassóis, um campo de girassóis.
Eles formam uma realidade nova, ampla, que parece ter uma personalidade não
pessoal. Difícil ver os limites onde termina esse ser que parece não ter
contornos, apenas limiares. Vemos um todo.
Então , da perspectiva
desse todo a câmera parece que vai se
fechando, diminuindo sua amplitude. Porém, se virmos o que acontece de uma
outra perspectiva , veremos que a câmera vai ampliando uma outra realidade que
permanecia imperceptível enquanto apenas olhávamos para o todo.À medida em que
a câmera vai diminuindo de amplitude extensiva, outra amplitude vai se
mostrando aos nossos olhos: uma amplitude expressiva. Então, começamos a ver o
que até então não víamos: percebemos a existência de um suave vento que toca e
agita alguns girassóis apenas. Enquanto olhávamos para o todo, não percebíamos
esses acontecimentos que atingem apenas parte do todo.
Começamos a ver então que o todo é composto de
partes. Cada vez mais essas partes vão perdendo a relação exterior e extensiva
com o todo , e começam a realçar sua singularidade, o seu ser um. Já não vemos
mais o todo, o horizonte. Vemos agora três girassóis, em seguida dois ,até que
a câmera nos mostra um girassol.O girassol preenche toda a tela, que outrora
era preenchida pelo todo. Vemos que uma singularidade pode também preencher e
preencher-nos, mas de maneira intensiva, expressiva. Pois a realidade que agora
vemos se explica por cores, texturas, molecularidades. Saímos de uma realidade
extensiva e entramos em uma realidade expressiva.Entramos, enfim, em nós.
O girassol em sua
singularidade continua a comunicar-se com o todo, mas através de sua diferença,
de sua singularidade, pois o todo está inserido nele, e ele está inserido no
todo, no horizonte. .Enquanto víamos apenas as amplidões do espaço, não víamos
a realidade intensa do afeto que o singular expressa. Na linguagem do cinema,
quando colocamos algo em primeiro plano , não importa o que coloquemos, esse
ser assim ampliado torna-se um rosto. Ele não ganha um rosto: ele se torna ,
ele inteiro, um rosto. Ele se torna uma superfície que se explica apenas
por valores expressivos, intensos. Em toda expressão há algo implicado. Toda
expressão é uma explicação. A expressão explica, traz para fora, o que está
implicado nela, o que lhe é imanente.A expressão é esse duplo movimento onde o
dentro e o fora enfim se conjugam, potencializados em uma singularidade viva. Pois
é isto que é um rosto. Então, o girassol parece viver/expressar alegrias,
dramas, imaginações, vida. Ele parece pensar, ele parece sentir.
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