quinta-feira, 15 de maio de 2014

as infâncias do poeta


O devir-criança em Manoel de Barros

Em anos recentes, já  com mais de 80 anos, uma idéia foi apresentada a Manoel de Barros: poeticamente, escrever uma memória.Afinal, muito o poeta já havia vivido e escrito. Tanto, que nem seria uma memória, seriam memórias: da infância, da mocidade e da velhice[1]. A primeira memória, a da infância, veio ao mundo. Ela surgiu expressa em um “inauguramento  de falas” ( 1992, p.298),  ela  nasceu singular e múltipla , pois  o poeta nos fala não apenas de uma, mas de três infâncias: a primeira, a segunda e a terceira. Parece-nos que não se trata de uma ordem baseada em cronologias, a primeira infância não é mais infância do que a segunda e a terceira. Há apenas uma infância, e esta é múltipla, heterogênea, inumerável. Primeira, segunda e terceira são distinções intrínsecas de uma mesma infância. As distinções extrínsecas são aquelas nas quais os termos distintos permanecem exteriores uns aos outros, como as partes de uma pedra que se parte, ao passo que as distinções intrínsecas expressam partes que, embora diferentes, expressam o mesmo todo que em cada uma se expressa diferentemente, como  o tema de uma polifonia.
Cada parte é uma distinção intrínseca de um mesmo todo, e este não lhes permanece exterior, dado que  lhes é íntimo, tal como a cor verde é íntima a cada grau seu, a cada grau de verde O todo da vida do poeta é tão vário e amplo, que vai muito além de sua vida pessoal, e é por isso que este todo nada tem a ver com as vivências , perceptivas e memorativas, de um “eu”. O todo, do qual cada infância é uma parte, este todo é um nós, do qual fazem parte outros seres que não o poeta, mas que ao o lerem sentem que aquela infância lhes concerne e vive em seus íntimos, como Afeto não pessoal de um devir-criança:  "Vou até a infância e volto" (  2010a, p. 147 ).
No poema “Achadouros”, Manoel de Barros afirma que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com elas: “há de ser como acontece com o amor”. E é por isso que o poeta é aquele que diz “eu-te-amo a todas as coisas” (  1992, p. 316). Mais do que pela ação de algo externo que nos torna passivos, o contágio é a comunhão de cada coisa com outra pela experiência daquilo que lhes é íntimo, e que “desabre” cada coisa e as torna “pré-coisas”: matéria de poesia.
Enfim, vieram ao mundo as três infâncias. Como as memórias da mocidade e da velhice não nasciam, o poeta foi indagado a respeito, no que respondeu: “ só tive infância”. Ele diz que em seu lápis, na ponta do seu lápis, “há apenas nascimento” ( 2010a, p 135), “só narro meus nascimentos” (  1992, p. 261). A “velhez não tem embrião” (2010a, p. 98). A velhez não é propriamente uma idade, mas a impossibilidade de se perceber como “forma em rascunho”, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa tem essa velhez jornalística, uma vez que para o jornal de amanhã, para a vida de amanhã, ela já será cadáver: “A palavra  até hoje  me encontra na infância” ( 2010a, p.111).




[1] Esse projeto é explicitado em texto do Editor presente na contracapa de Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros, São Paulo: Planeta, 2010.







Nenhum comentário: