domingo, 4 de maio de 2014

manoel de barros: a poesia como um afloramento de falas

Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa , chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Manoel de Barros


A natureza produz os seres; a poesia produz sentido. O poeta produz o sentido dos seres que a natureza produz. O poeta possui o olho para ver esse processo;ele o vê vendo-se na eucaristia do verbo com o substantivo, para dessa maneira “inventar comportamentos” verbais. O poeta se veste com a natureza, para assim ser camaleão, “Ninguém”.
O poeta se desfaz do seu ego e da sedução das propriedades e títulos: ele divina o chão e descobre que é daí que nasce o voo. Mas um voo “fora da asa”, feito pelo tranver as coisas tendo o “condão para sê-las”.
O poeta é um agente coletivo . Por intermédio dele, dá-se um “afloramento de falas” da coletividade feita não só de homens, mas de tudo que existe e não existe , pois “as coisas que não existem são mais bonitas”. E estas o poeta as colhe em seus “nadifúndios”.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça , monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O nadifúndio é a Terra de um povo de criadores, sem “existidura de limites” (tais como nacionalidade, preferências partidárias, grau de instrução, cor da pele, tempo, espaço, língua...). O nadifúndio é o “território liso”, “nômade”, que o poeta inventa dentro da língua, fazendo esta pegar delírio, para em seu deslimite sonhar, criar, inventar .

 Cabe à poesia curar a linguagem do mais triste dos delírios: o de uma língua-clichê que impede um “afloramento de falas”.


trecho do livro:


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