terça-feira, 20 de maio de 2014

Espinosa e a natureza humana

O andarilho alimenta de pernas as distâncias.
Manoel de Barros


A água pode apagar o fogo. Mas a água não existe com a finalidade de apagar o fogo. Basta ela existir como água, basta ela ser o que é, para o encontro dela com o fogo destruir este último.Esta destruição de uma outra existência, que nasce da simples afirmação de si próprio,  nada tem a ver,contudo,com um ódio: o teria se imaginássemos que ela o destrói por alguma finalidade, o que resultaria em considerar a água como boa e o fogo como mau. A água é: é sendo água que dela resultam certos efeitos, como o matar a sede, o apagar o fogo, etc. Estes efeitos se explicam pela essência da água, pela sua maneira de ser.A água não escolheu ser água: ela simplesmente o é e se esforça  para continuar sendo.Disto procede sua alegria e júbilo.Alegria e júbilo de água que ama ser o que é, e que ,portanto,não sente a menor falta ou carência de ser outra coisa,mesmo o ouro.Sendo água, sendo o que já é, a água já é livre, e seria um absurdo supô-la querer ser outra coisa; ou já sendo água,querer no entanto ainda  sê-lo. A água não existe como um todo à parte, ela existe como parte de um todo que não é  apenas água, pois o fogo também é parte do mesmo todo: é a água que destroi o fogo,não o todo.Este conserva o fogo mesmo quando ele é destruído pela água. O todo o conserva nele mesmo , como parte sua.Vejamos um exemplo bem simples tirado da vida: João e Maria viveram o amor.Cada um se sentia parte desse todo, um todo que eles ao mesmo tempo produziam e que os produzia,os singularizando. O amor não era Maria, o amor não era João:o amor era um todo, um comum, do qual Maria e João eram partes vivas.Este todo os fazia se sentir existindo mais. Por algum motivo,termina aquela relação que os unia, mas não a relação de cada um com o amor. Se de fato houve amor entre eles, cada um fará parte do amor que o outro viveu, e quando cada um se lembrar ou tentar compreender o amor, se lembrará do outro como parte do amor, mesmo que aquela relação que viveram não mais exista, desde que ainda exista a relação de cada um com amor. João será parte eterna do amor que viveu Maria,Maria será parte eterna do amor que viveu João.Cada um continuará a existir apenas no amor.Então,talvez cada um compreenderá que o que matou o amor  que viveram não foi o amor,mas outra coisa que agora já não existe mais, posto que não tem eternidade.Quando participamos realmente da eternidade, por um breve instante que seja, ficamos eternamente nela, por mais que o tempo passe.
 Imaginamos que uma coisa morre ou é destruída totalmente quando a supomos um todo à parte.Mas quando a compreendemos como parte de um todo, o que chamamos de morte é o desparecimento  apenas daquilo  nela é a parte que imaginamos poder existir sem o todo.  Enquanto parte do todo o fogo é indestrutível, já que indestrutível é o todo.Imaginar uma coisa como um todo à parte é como traçar ao redor dela um limite, um contorno, que a faz perder mais do que ganhar, já que esse limite é, na verdade, uma negação.Se isolarmos a onda do oceano, traçando-lhe um contorno , a onda deixa de existir, já que ela perderá o todo, perdendo igualmente  a si mesma. O que vale para a onda também não valerá para o homem?O que chamamos de ego não seria um contorno através do qual nos negamos como parte de um todo?O certo é que a onda se distingue do oceano  sem precisar de um contorno.Ela se distingue sendo um modo do oceano,isto é,  sendo uma maneira de ele se expressar.O que verdadeiramente se distingue , afirmando sua diferença, o faz sem se separar.Somente nos distinguimos realmente afirmando-nos forma em rascunho.
 O todo não é soma de todas as coisas, pois somente podemos somar as coisas que pertencem a um conjunto fechado, finito. Sendo o todo infinito, ele apenas multiplica, ele não soma e nem se deixar somar. Se ele não se deixar somar, também não se deixa diminuir. Ele apenas multiplica e se deixa dividir, desde que em cada parte ele esteja,mas de uma forma que não é numérica ou quantitativa.
O que vale para água vale igualmente para tudo o que existe,incluindo o homem. O homem não pode escolher ser um homem, pois ele já o é antes de toda escolha.O homem o é por necessidade, e não por escolha.Ele pode, sim, escolher ser um lobo, ou uma hiena,ou uma cascavel, e imitar o comportamento destes seres, sendo ainda um homem. Mas a escolha por ser tais coisas não o torna tais seres, e sim o diminui enquanto homem, embora ele imagine que o aumente.O homem livre não escolhe ser homem, ele simplesmente afirma o ser que já é:ele se afirma como maneira ou modo de ser da Natureza. E esta  não é apenas o homem, ela também é a cascavel,o lobo , a hiena, mas não como tais seres são quando os quer imitar um homem que ignora o que é ser homem.
Várias coisas podem destruir o homem, incluindo outro homem. Mas quanto mais em seu íntimo o homem ligar-se ao todo, o todo indestrutível que sempre produz e nada destroi,mais ele já estará conservado na eternidade, como parte singular dela.Ele estará conservado não como o cadáver no formol, ou o espírito na letra; ele estará conservado como a semente  que continua a existir na árvore, como a criança que continua a existir no adulto.





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