http://www.benedictusdespinoza.pro.br/conatus_v7n15_40.html
(trecho do artigo)
O sentido não é a
afirmação de que tudo é igual ou relativo;
o sentido é o
relacional: ele é a afirmação do encontro;
não a relatividade
do encontro,mas a sua necessidade.
José
Américo Pessanha
Só a boa metáfora
pode dar ao estilo uma espécie de eternidade.
Cláudio
Ulpiano
4.0
A emendatio e o conatus
A emendatio não é uma correção, tal como
se corrige uma resposta errada a uma questão que lhe pré-exista. A emendatio é a libertação do intelecto dos
falsos problemas . Emendar o intelecto
não é corrigi-lo, tampouco reformá-lo, mas fazê-lo parte de um todo não
intelectual, e do qual é parte igual o corpo.
Há um poema de Manoel de
Barros no qual ,em versos (em perceptos),
o poeta nos põe diante de uma emendatio que a própria natureza ensina. Trata-se
do poema Lacraia. O poeta Manoel de Barros nos fala de uma
lacraia cujas partes foram desmembradas. Isto ele viu quando criança.O poeta,
afirma Manoel, é aquele que "vai à infância e volta".Inteira, compara
o poeta , a lacraia se assemelha a um trem: neste, vagões unidos que se seguem
a partir da locomotiva que vai à frente;naquela, gomos unidos a partir da
cabeça.As semelhanças entre uma lacraia e um trem param sobretudo nesse
ponto:descarrilado, um trem sucumbe em pedaços que , por conta própria, jamais
voltam a formar uma unidade; já quando a lacraia é desmembrada, e cada
gomo/vagão seu é separado do outro, logo a "força de Deus" se mostra
onde menos se espera: cada parte da lacraia se move e busca a outra, elas se
procuram. Busca na outra o todo sob o qual cada uma existe mais. Cada parte se
esforça para se integrar ao todo que é mais do que a mera soma das partes. Esta
força também é amor, ensina-nos o poeta.
Segundo Spinoza, cada ser se
esforça para perseverar na existência. O nome desse esforço é conatus , ou desejo. Co-natus:
junto ao que nasce. Assim, o conatus está
sempre junto ao que nasce para permanecer existindo, pois o esforço para
permanecer na existência nunca está no passado, mas no presente : não como
coisa parada ou estática, e sim como esforço dinâmico, como potência,
desejo e afirmação. Em nós mesmos, cada molécula, cada célula, cada parte
que nos constitui expressa o mesmo conatus,
o mesmo desejo.Existir é idêntico a este esforço de tudo aquilo que, nascido,
continua a (re) nascer a cada momento.Por isso, o nascer é um ato que nunca se
completa, posto que nunca termina para aquele que se percebe como parte da
natureza que é sempre nascer, e nunca morrer.Assim que nascemos, cremos ser
viver o afastar-se do nascer enquanto acontecimento, e assim contamos os anos,
os aniversários.O filósofo, diferentemente, nunca se afasta dessa fonte que o regenera: o nascer ,sempre no
infinitivo.
O conatus é
o esforço do ser finito para permanecer no infinito renascer da natureza.Manoel
de Barros, por sua vez, fala em "natências" , não como data em que
nascemos, mas o "tempo quando" , não cronológico, no qual ,
como duração viva e intensa, estamos sempre a (re)nascer (SOUZA, 2010).
Cortada a lacraia em 5
partes, cada uma das partes expressa um conatus que não pode ser numericamente quantificado, posto
que ele é, ao mesmo tempo, um e múltiplo, enfim, unívoco. Mesmo na lacraia
inteira cada parte dela, suas infinitas partes, já se esforçam para perdurar
expressando o todo-lacraia, que é sua essência e ideia.O desmembramento da
lacraia poderia ser em 10 ou cinquenta partes: em cada uma dessas partes o
mesmo conatus se
expressa de forma única e singular, como potência. É este todo que dá a cada
parte a sua inteligibilidade e explica o fato de cada parte se mover de
forma que não é apenas movimento como resultado de ações externas, pois há uma
força que guia cada parte : guia não por fora, mas a partir da imanência de
cada uma. As partes desejam refazer a relação que eram, o todo que
eram.Em cada parte está a expressão do mesmo conatus, ao mesmo tempo um e múltiplo, posto que multiplicidade.
E mesmo na lacraia inteira cada parte dela persevera no mesmo desejo: o de
continuar na sua existência, e esta é a maior perfeição que ela aspira. Uma
lacraia não precisa ser um homem ou um anjo para, enquanto lacraia e
permanecendo lacraia, expressar sua maneira de ser, seu modo, sua perfeição
enquanto lacraia.Segundo Manoel de Barros, as partes procuram se emendar, elas
são movidas por uma emendatio,
tal como o intelecto precisa se emendar quando se acha separado do
contínuo existir da vida, a começar pela vida do seu corpo.
No Tratado sobre a
emenda do intelecto, Spinoza afirma que todo aquele que deseja
produzir algo necessita de um rascunho. O rascunho é o esboço de um ser a
produzir, não de um ser a imitar ou copiar. Como se participasse dessa
discussão, Manoel de Barros afirma que a poesia nos põe em "estado de
rascunho", tornando-nos "formas em rascunho” (SOUZA, 2010).Emendar
não é apenas ligar uma parte à outra, mas ligar cada parte à outra em razão de
um todo que faz cada parte existir mais.Isto vale para uma lacraia, como vale
para um livro, um poema, uma obra, uma vida.
Há uma diferença entre
"parte" e "pedaço".Para se poder compreender a diferença,
porém, é preciso que se faça a ideia do todo. Na arqueologia, por exemplo,
muitas vezes se acham pedaços. Para que estes virem partes, e se tornem mais
inteligíveis e compreensíveis, é necessário fazer uma ideia do todo ao qual
tais partes pertenciam, mesmo que este todo não seja dado de forma tangível,
como é o caso do todo da cultura. Se não se consegue formar uma ideia do todo,
do pedaço não nasce a parte.A parte faz parte, ao passo que o pedaço é o caco
que restou de um ser partido.O mesmo vale para a natureza.A maioria dos homens
se comporta como pedaços, não como partes.Os pedaços não se compõem, as partes
sim.Frequentemente, a passionalidade e a ignorância tornam o homem um pedaço
com contornos pontiagudos, prontos para ferir ou supostamente se defender da
pontiagudez do outro, o que finda por ferir, primeiro , aquele que assim pensa
e age, pois o fere por dentro a ideia confusa e equivocada, fruto que é da
tristeza e do ódio.A natureza não é um Frankenstein, mas uma polifonia.Acumular
muitos pedaços quantitativamente é menos do que ter de uma coisa apenas uma
parte, por mais diminuta que ela seja.Através da parte sempre se vê o todo do
qual ela faz parte, ao passo que quanto mais pedaços se vê e tem menos se
enxerga e se conquista, menos se compreende.
A natureza não é feita de
pedaços, ela é feita de partes. O mesmo vale para nossos desejos e ações.No
homem livre cada pensamento e ação é uma parte dele, ao passo que no escravo as
ações e os pensamentos são vividos como pedaços sem muito sentido, posto que
deles está ausente o todo, que é o que dá vida.No amor e na amizade cada
um é uma parte, não do outro, mas do encontro.A infelicidade acontece quando um
quer fazer do outro um pedaço seu , na ausência de um todo, de um bom
encontro.As imagens e aparências somente deixam de ser pedaços, e se tornam
partes, quando aprendemos a ver para além delas, em busca das essências que
elas expressam.A essência não é uma forma estática, ela não é uma figura com
contornos e limites rígidos; a essência , diz Manoel de Barros, é “um
minadouro”: dela mina e brota um sentido sempre novo, que ela retira de sua
imanência, de seu coração.
O todo é sempre maior que
suas partes. Mas é um maior que não torna cada parte dele menor do que si
mesma; ao contrário, quanto mais cada parte expressar, em seu íntimo,
esse todo, mais ela se torna maior , mais ela existe, mais ela se compõe com a
outra parte, mais ela adquire singularidade e afirma sua diferença, sem negar
ou destruir a outra parte, que é outra parte do mesmo todo. O que é
verdadeiramente maior nunca diminui, nunca age por "comparamentos",
mas por "comunhão"( SOUZA, 2010). Enfim, diminuir é negar ( e como
poderia o todo negar sua parte? Se ele o fizesse, estaria negando a si mesmo, o
que seria um absurdo!).
A parte é partícipe, e
extrai seu sentido não sozinha, mas em conexão. O pedaço, ao contrário, é sempre
desconexo, como se fosse um todo à parte: à parte do todo, à parte de si mesmo.
Este existir como um todo à parte é a solidão característica de tudo o que é
pedaço, enquanto que a diferença constituinte de toda singularidade se expressa
e se afirma em um fazer parte, mesmo que seja um fazer parte de um "todo
ainda por vir", como diria Nietzsche. Esta conexão que constitui uma
singularidade recebe, em Deleuze, um nome: agenciamento.
2 comentários:
Elton, li ontem à noite mesmo o seu texto. É das melhores coisas que já li sobre Spinoza. Tive a viva sensação da compreensão que, em si mesma, já nos modifica e fortalece. Parabéns! João
Obrigado, João.
Um abraço,
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