A literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos
que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los.
Gilles Deleuze
Sê sempre poeta, mesmo em prosa.
Charles Baudelaire
Sê sempre poeta, mesmo em prosa.
Charles Baudelaire
No Fedro, Platão nos apresenta uma alegoria que retoma, com roupagem poética, a doutrina das faculdades. Platão se valera da idéia da carruagem como modelo para a compreensão da alma humana. A carruagem de Platão compõe-se de três elementos: o cocheiro e dois cavalos. Na carruagem de nossa alma, diz Platão, o cocheiro é a Razão: é esta que tem as rédeas e guia a carruagem para um rumo determinado, ao passo que aos cavalos cabe a obediência à disciplina imposta pela razão-cocheiro. Um dos cavalos, de cor branca, é dócil e receptivo aos comandos da razão: trata-se da Vontade. Mas o outro cavalo, de cor preta, é indisciplinado, convulsivo, rebelde. Quanto mais a razão quer comandá-lo, mais rígida ela precisa ser.Por mais que tente forçá-lo a seguir em linha reta, é sinuosamente, barrocamente, que o cavalo preto insiste em ir. Este cavalo preto é o Desejo.
Segundo Platão, na carruagem de nossa alma a razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. A beligerância nasce pela impossibilidade que a razão encontra de pôr o desejo na direção dos valores morais que ela visa atingir. A disciplina moral é a rédea da razão, às vezes também seu chicote, mas o desejo não se dobra, resiste, e segue atraído pelas aparências do mundo sensível . Seguir o desejo é perder-se, desorientar-se, maldizia Platão. Mas a alma não pode prescindir desse rebelde cavalo preto, uma vez que é dele que provém a maior parte da energia que a faz mover-se.
Curiosamente, uma outra imagem da carruagem inspirou Nietzsche.Trata-se da Carruagem de Dioniso, o Deus das Artes. Segundo o mito que cerca este Deus ( ou semi-deus, pois a mãe dele foi humana), Dioniso se locomovia em uma carruagem, sendo ele próprio o cocheiro. Mas, ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram temíveis feras transportando o deus e mostrando o grande poder de Dioniso para guiar a natureza. A arte não nega ou reprime a natureza ( como o faz o cocheiro de Platão), mas a põe a seu serviço conforme uma disciplina que não é estrangeira à potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as panteras se tornam forças que se conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma por sendas onde a razão não ousa ir.
Dioniso transforma a agressividade destrutiva e mortífera das pulsões-panteras em potência criativa afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou guia, cocheiro, domador: somente se pode segui-lo com a condição de metamorfosear-se, conjugando disciplina e inventividade na condução da carruagem . Esta segue para onde não se sabe, pois seu destino é o próprio percurso enquanto este se faz.
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nota : As panteiras da carruagem que Dioniso conduzia não eram domesticadas, elas eram feras. Sem lhes roubarem a liberdade e agressividade, Dioniso as conduzia, sem usar chicotes ou mordaças. Dioniso , porém,não lhes ia sobre o dorso. A arte de conduzir o pulsional/passional, sem reprimi-lo neuroticamente, requer também a arte das distâncias; nem muito longe, em uma transcendência, nem muito perto, como um psicótico.
trecho do livro:
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nota : As panteiras da carruagem que Dioniso conduzia não eram domesticadas, elas eram feras. Sem lhes roubarem a liberdade e agressividade, Dioniso as conduzia, sem usar chicotes ou mordaças. Dioniso , porém,não lhes ia sobre o dorso. A arte de conduzir o pulsional/passional, sem reprimi-lo neuroticamente, requer também a arte das distâncias; nem muito longe, em uma transcendência, nem muito perto, como um psicótico.
trecho do livro:
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