quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

o espelho de espinosa

Os espelhos côncavos e convexos alteram as coisas. Existem  ainda os espelhos de bufonaria, que distorcem as coisas, deixando-as mais feias ou ridículas do que de fato são. Há  espelhos que aumentam o que é pequeno: eles são antíteses daqueles que diminuem o que é grande. Um espelho pode ser o melhor possível, mas pouco ou nada refletirá se estiver sujo. O espelho comum, o espelho plano, é aquele no qual nos procuramos: nele vemos, com nossos olhos, os nossos olhos vendo-nos. Tal espelho reflete o que somos no momento: ele não mente,e nisto é mais confiável do que a palavra. Todavia,  ele não mostra a face de ontem ou a que será, mas sempre a face de agora,cuja constância não é confiável.O espelho mostra o rosto enquanto parte do corpo, ou pode mostrar o corpo inteiro, se grande o espelho for. 
Mas e o espírito, que espelho o mostra?Segundo Espinosa,o espírito é,ele mesmo, um espelho. Como tal, ele reflete. O espírito  pode ser um espelho de duas maneiras, cada uma delas completamente diferente da outra.
Primeiramente, na vida comum, o espírito se torna imaginação ( imaginatio que reflete  o que ele imagina que as coisas e as outras pessoas são.A imaginação está sempre a imaginar, não a conhecer. O espelho comum  reflete as coisas  porque atrás dele há o aço ou algo fosco  que impede que a luz atravesse o vidro. Na imaginação há um equivalente do aço ou do fosco: são as afecções ou paixões,sobretudo as tristes. As paixões , assim como o aço,impedem que a luz da realidade atravesse o espírito e o torne translúcido a si mesmo. A imaginatio é a opacidade que o senso comum chama de realidade, tal como a hipótese da Matrix
No espelho concreto,porém, o aço faz com que a luz retorne tal como ela tocou o vidro,para assim devir imagem; já na imaginação a paixão emite apenas a si mesma na luz que recebeu. A imaginação passional é como um espelho que recebe luz mas devolve aço, emite o fosco,de tal maneira que ela é um espelho pelo avesso: crê receber o que de fato emite, ignorando o que emite.Na verdade, quando se torna apenas imaginação, o espírito é como um espelho que a nada reflete,a não ser a sua impotência para refletir.
Mas existe ainda outra forma de o espírito ser espelho. Todo espelho se explica por aquilo que vem nele se refletir. Na imaginação, vem se refletir apenas  o que, de fora , age sobre o corpo. A imaginação reflete esse agir das coisas corpóreas sobre o nosso corpo; a imaginação  é a alma reagindo a este agir das coisas sobre nós.Contudo, ela ignora este agir e imagina que as coisas que estão nela nasceram exclusivamente dela,como se ela fosse livre e pairasse acima das coisas corpóreas. Não raro, a imaginação até mesmo despreza as coisas corpóreas e delira que a inspira uma divindade com a qual ela mantém relações privilegiadas, divindade esta que a ajuda a ver o futuro ou mesmo outras vidas, além de dotá-la de poderes que fogem à compreensão da ciência e das coisas terrenas. Todavia, a imaginação passional   ignora que aquilo que ela imagina  nascer apenas dela, nasce na verdade de causas físicas e explicáveis pela natureza, a mesma natureza que ela despreza.
Segundo Espinosa, o próprio espírito é um espelho, um espelho distinto da imaginação. E o que o  espírito, enquanto espelho, reflete?Ele reflete o que nele vem mirar-se. E o que vem nele se mirar?O infinito. O espírito é um espelho que reflete o infinito. Da mesma forma que olhamos de manhã em um espelho para conhecermos  como está nosso rosto, o espírito é um espelho no qual podemos ver/conhecer o infinito: este  é uma aurora que nunca escurece,pois não o pode turvar  o fosco.
O infinito nunca aparece ou pode ser conhecido à parte de um espírito que o reflete, um espírito singular .  Um espírito que  reflete o infinito não é exatamente o que mais livros leu,tampouco o que tem títulos acadêmicos e que tais. O espírito que reflete o infinito é aquele no qual se reflete a simplicidade, a modéstia, a firmeza , a generosidade ,a inventividade, o amor e, também, a coragem. Antes de qualquer coisa, nesse espírito se reflete o corpo do qual esse espírito é o espelho imediato. Contudo,  o corpo não surge sozinho, tampouco aparece como um corpo imaginário,vaidoso , narcísico. O corpo aparece agenciado e conectado com o universo inteiro.Não é mais apenas um corpo que sofre a ação de outro,  assim padecendo;diferentemente, quando refletido no espírito, o corpo se torna a expressão ou parte ativa da Natureza. Refletindo seu corpo, o espírito reflete/conhece a si mesmo como parte do infinito que reflete.

Para Espinosa,o homem não foi feito à imagem de Deus, pois imagem é reflexo,  imagem  não é espelho. Ser apenas reflexo é o que caracteriza a imaginatio, ao passo que ser espelho, e refletir, é o que expressa o espírito. O homem não é imagem ou reflexo de Deus,ele é o espelho que reflete o infinito, assim pensa/reflete Espinosa.  O espírito reflete o infinito não como uma imagem,  ele o reflete como afeto e  ideia. O homem livre não é o que vive à parte, ele é  o que vive ou se esforça por viver de acordo com aquilo que seu espírito reflete. O homem  da imaginação vive como um reflexo das coisas,ao passo que o homem livre se esforça por viver de acordo com aquilo que seu espírito reflete. A luminosidade translúcida da realidade que nele se reflete já o lustra e o torna apto a refletir ainda mais adequadamente, potentemente, ativamente  - assim o  libertando do aço refratário do passional  e do fosco das opiniões. 

Mille Deleuze

3 comentários:

Flávia Campos disse...

"O homem da imaginação vive como um reflexo das coisas, ao passo que o homem livre se esforça por viver de acordo com aquilo que seu espírito reflete".

Lembrou-me de nossa última conversa: é importante não agir pela paixão, pelo impulso, mas criar ideias claras. Isto para que na circunstância adversa se possa agir de acordo com a ideia criada e não com o calor da emoção provocado pelo momento.

Linda mensagem, professor. Muito obrigada.

Elton Luiz Leite de Souza disse...

não agir pela "paixão triste",sobretudo;pois pela "paixão alegre" o impulso se torna positivo, afirmativo,e não apenas impulsividade ( esta impede a formação da ideia adequada,sobretudo a ideia adequada de nós mesmos...).
Um grande abraço!

Flávia Campos disse...

Obrigada, professor!