Os espelhos côncavos e convexos alteram as coisas. Existem ainda os espelhos
de bufonaria, que distorcem as coisas, deixando-as mais feias ou ridículas do
que de fato são. Há espelhos que aumentam o que é pequeno: eles são antíteses daqueles que diminuem o que é grande. Um espelho pode ser o melhor possível, mas pouco ou nada
refletirá se estiver sujo. O espelho comum, o espelho plano, é aquele no qual
nos procuramos: nele vemos, com nossos olhos, os nossos olhos vendo-nos. Tal
espelho reflete o que somos no momento: ele não mente,e nisto é mais confiável do que a palavra. Todavia, ele não mostra a face de
ontem ou a que será, mas sempre a face de agora,cuja constância não é confiável.O espelho mostra o rosto
enquanto parte do corpo, ou pode mostrar o corpo inteiro, se grande o espelho
for.
Mas e o espírito, que espelho o mostra?Segundo Espinosa,o espírito é,ele mesmo,
um espelho. Como tal, ele reflete. O espírito pode ser um espelho de duas maneiras,
cada uma delas completamente diferente da outra.
Primeiramente, na vida comum, o espírito se torna imaginação ( imaginatio) que reflete o que ele imagina que as coisas e as outras
pessoas são.A imaginação está sempre a imaginar, não a conhecer. O espelho comum reflete as coisas porque atrás dele há o aço ou algo fosco que impede que a luz atravesse o vidro. Na imaginação há um equivalente do aço ou do fosco: são as afecções ou paixões,sobretudo as
tristes. As paixões , assim como o aço,impedem que a luz da realidade atravesse
o espírito e o torne translúcido a si mesmo. A imaginatio é a opacidade que o senso comum chama de realidade, tal como a hipótese da Matrix.
No espelho concreto,porém, o aço faz com que a luz retorne tal como ela
tocou o vidro,para assim devir imagem; já na imaginação a paixão emite apenas a
si mesma na luz que recebeu. A imaginação passional é como um espelho que
recebe luz mas devolve aço, emite o fosco,de tal maneira que ela é um espelho
pelo avesso: crê receber o que de fato emite, ignorando o que emite.Na verdade,
quando se torna apenas imaginação, o espírito é como um espelho que a nada
reflete,a não ser a sua impotência para refletir.
Mas existe ainda outra forma de o espírito ser espelho. Todo espelho se
explica por aquilo que vem nele se refletir. Na imaginação, vem se refletir
apenas o que, de fora , age sobre o
corpo. A imaginação reflete esse agir das coisas corpóreas sobre o nosso corpo;
a imaginação é a alma reagindo a este
agir das coisas sobre nós.Contudo, ela ignora este agir e imagina que as coisas
que estão nela nasceram exclusivamente dela,como se ela fosse livre e pairasse
acima das coisas corpóreas. Não raro, a imaginação até mesmo despreza as coisas
corpóreas e delira que a inspira uma divindade com a qual ela mantém relações
privilegiadas, divindade esta que a ajuda a ver o futuro ou mesmo outras vidas,
além de dotá-la de poderes que fogem à compreensão da ciência e das coisas
terrenas. Todavia, a imaginação passional ignora que aquilo que ela imagina nascer apenas dela, nasce na verdade de causas
físicas e explicáveis pela natureza, a mesma natureza que ela despreza.
Segundo Espinosa, o próprio espírito é um espelho, um espelho distinto da
imaginação. E o que o espírito, enquanto
espelho, reflete?Ele reflete o que nele vem mirar-se. E o que vem nele se
mirar?O infinito. O espírito é um espelho que reflete o infinito. Da mesma
forma que olhamos de manhã em um espelho para conhecermos como está nosso rosto, o espírito é um espelho
no qual podemos ver/conhecer o infinito: este é uma aurora que nunca escurece,pois não o pode turvar o fosco.
O infinito nunca aparece ou pode ser
conhecido à parte de um espírito que o reflete, um espírito singular . Um espírito que reflete o infinito não é exatamente o que
mais livros leu,tampouco o que tem títulos acadêmicos e que tais. O espírito que reflete o infinito é aquele
no qual se reflete a simplicidade, a modéstia, a firmeza , a generosidade ,a inventividade, o amor e, também, a coragem.
Antes de qualquer coisa, nesse espírito se reflete o corpo do qual esse
espírito é o espelho imediato. Contudo, o corpo não surge sozinho, tampouco aparece
como um corpo imaginário,vaidoso , narcísico. O corpo aparece agenciado e conectado com o universo inteiro.Não é mais apenas um corpo que sofre a ação de outro, assim padecendo;diferentemente, quando refletido no espírito, o corpo se torna a expressão ou parte ativa da Natureza. Refletindo seu corpo, o espírito
reflete/conhece a si mesmo como parte do infinito que reflete.
Para Espinosa,o homem não foi feito à imagem de Deus, pois imagem é reflexo, imagem não é espelho. Ser apenas reflexo é o que caracteriza
a imaginatio, ao passo que ser espelho, e refletir, é o que expressa o
espírito. O homem não é imagem ou reflexo de Deus,ele é o espelho que reflete o
infinito, assim pensa/reflete Espinosa. O espírito reflete o infinito não como uma imagem, ele o reflete como afeto e ideia. O homem
livre não é o que vive à parte, ele é o que vive ou se esforça por viver de
acordo com aquilo que seu espírito reflete. O homem da imaginação vive como um reflexo das
coisas,ao passo que o homem livre se esforça por viver de acordo com aquilo que
seu espírito reflete. A luminosidade translúcida da realidade que nele se reflete já o lustra
e o torna apto a refletir ainda mais adequadamente, potentemente, ativamente - assim o libertando do aço refratário do passional e do fosco das opiniões.
Mille Deleuze
3 comentários:
"O homem da imaginação vive como um reflexo das coisas, ao passo que o homem livre se esforça por viver de acordo com aquilo que seu espírito reflete".
Lembrou-me de nossa última conversa: é importante não agir pela paixão, pelo impulso, mas criar ideias claras. Isto para que na circunstância adversa se possa agir de acordo com a ideia criada e não com o calor da emoção provocado pelo momento.
Linda mensagem, professor. Muito obrigada.
não agir pela "paixão triste",sobretudo;pois pela "paixão alegre" o impulso se torna positivo, afirmativo,e não apenas impulsividade ( esta impede a formação da ideia adequada,sobretudo a ideia adequada de nós mesmos...).
Um grande abraço!
Obrigada, professor!
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