sábado, 24 de agosto de 2013

Manoel de Barros e Paul Klee: as desaprendizagens ( trecho do livro)





Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Manoel de Barros se apropria, à sua maneira, da Máquina de Chilrear de Klee, e a faz de ferramenta de sua oficina poética . Este pintor ensinou-lhe a necessidade de "aprender a desaprender" - que define muito bem o que aqui chamaremos de devir-criança*, e que tão presente está na obra de Manoel de Barros: “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Por isso, completa o poeta,


Palavras

Gosto de brincar com elas.

Tenho preguiça de ser sério.


De sua parte, Paul Klee impôs a si mesmo uma espécie de “desaprendizagem”. Embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, esta mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão para as imagens que ele queria exprimir. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que , livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda ( desaprendizagem semelhante fez Miró...). O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Assim como a arte de Paul Klee,


A poesia tem a função de pregar a prática 

da infância entre os homens.


***
[ *Nota sobre o devir-criança:Quando alguém se torna adulto, a criança que ele foi está no passado;quando tal adulto era criança, o ser adulto era seu futuro.O adulto é o futuro da criança enquanto esta é um estado com uma identidade que lhe prescreve uma definição, um contorno; de maneira análoga, a criança é o passado do adulto enquanto este representa a si mesmo como um estado circunscrito por uma identidade.Sob esta perspectiva,"criança" e "adulto" são estados que se opõem pelas suas respectivas identidades.O devir não possui passado ou futuro: ele é, como dizem Deleuze e Guattari,antimemória. Ou melhor, se ele nos dota de uma memória, trata-se de uma memória como a que têm os anjos : memória que nos liga à eternidade.
O devir está sempre no meio: ele não é uma linha que liga dois pontos, ele é linha que passa entre dois pontos, uma linha transversal( as linhas transversais nunca se fecham em contornos).O devir não é exatamente a diferença entre o adulto e a criança,mas Diferença que está entre o adulto e a criança, e que os faz se comunicarem pelas suas diferenças, criando um contágio, um Afeto. É a História ( pessoal ou coletiva) que possui o passado e o futuro como pontos que o presente liga, ao passo que o devir está sempre no meio. Porém, ele não é uma média, ele é meio : ele é zona indiscernível que constitui a vizinhança entre o adulto e a criança. O presente do devir não é o presente cujos termos complementares são o passado e o futuro, uma vez que o presente do devir é o presente da metamorfose: esquecimento que cura dos fantasmas do passado, criação do novo que nos liberta de todo sentimento de esperança em relação a um futuro que nos deixa passivos.A criança do devir-criança não está no passado: ela co-existe com o adulto, mas não é feita de lembranças psicológicas deste.Ela é uma "criança molecular", imperceptível à percepção que só vê o já visto.
Segundo Deleuze-Guattari,molecular é aquilo que é, ao mesmo tempo, elementar e cósmico:elementos mínimos, heterogêneos,conectados ao absoluto.Intensos, tais elementos singulares não podem estar contidos em uma forma:seus limites são limiares trabalhados por dentro por uma Vida que de si mesma transborda.O devir-criança não é uma regressão ao estado de criança, tampouco ele é um mero imitar, infantilmente, uma criança.Quando devimos criança, tornamo-nos algo que a "forma adulto" nos impede de ser, ao mesmo tempo que a criança torna-se outra coisa que a criança definida em oposição ao adulto.No pintor Klee, por exemplo, a criança do devir-criança que ele inventa torna-se uma criança feita de linhas e cores,ao mesmo tempo que ele próprio se torna outra coisa , coisa esta que a obra testemunha e dá a ver.Essa criança que vemos na tela, e que é o produto de uma metamorfose, de um devir, não é menos real do que a criança que vive na nossa memória pessoal.Sua realidade é aquela que a arte engendra, libertando a Vida dos limites estreitos de nossas vivências pessoais. Quando devimos criança, captamos o que na criança há de intempestivo e eterno, cujo futuro não é virar adulto, mas produzir no adulto uma criança que não é a que ele foi. A criança do devir-criança não está no passado, tampouco somos o futuro dela: ela co-existe com nosso presente, libertando este do passado que ele imagina prolongar e do futuro em relação ao qual ele crê ser uma continuação daquilo que hoje é.Como dizia Espinosa, a criança do devir-criança não é um estado, mas uma atividade de re-generar-se, isto é, de nascer de novo para o novo.Devir é revir. Devir é retornar.Mas o retornar do devir não é um revir ao passado. Trata-se de retornar ao hoje, a este mesmo hoje do qual a imaginatio sempre nos afasta. Devir é retornar ao hoje para nele intuir o eterno que nunca é o mesmo a cada vez que a ele retornamos: muda ele, mudamos nós nele, como parte dele.]

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deslimite pode ser compreendido como um processo ao mesmo tempo estético e existencial, no qual vida e poesia se mostram como as duas faces de uma mesma Vida a qual não se pode impor uma forma ou limite . Esta Vida somente se deixa apreender em uma experiência de devir. O devir não é uma forma ou algo de determinado, mas um processo no qual os seres atingem seus deslimites (conforme veremos ao longo do estudo) .
Atingir o deslimite não significa destruir-se ou negar-se. Ao contrário, é o limite que destrói a invenção que se pode e se deseja. O deslimite , portanto, é uma experiência com a Vida, e não com a morte ( nos vários sentidos que essa palavra pode ter).
Embora seja uma experiência eminentemente poética, isso não significa que ela seja suscitada apenas pela leitura de poesia. A essência de tal experiência é exatamente nos ensinar a alargar a compreensão do que seja poesia, como faz Manoel de Barros, para que a vejamos em todas as coisas que, rompendo seus limites, deixam ver a Vida.




Paul Klee, Travessura.

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