1-No Rio é costume construirmos calçadas, isto é, extensões regulares,a partir de pequenas pedras sabão irregulares, cada uma completamente diferente da outra, tal como é diferente do outro cada modo ou maneira de ser da Natureza. Estas pequenas pedras também são chamadas de pedras portuguesas, e em tudo lembram a multitudo do português Espinosa.O modo como construímos tais obras expressa o estilo com o qual produzimos outras obras do viver em comum. Nosso todo é construído a partir de pequenas singularidades que, unidas, tornam o chão um multifacetado mosaico de mônadas sob o sol, cuja liga é o afeto, mais do que a norma - para o nosso bem ou para o nosso mal.
A paciência das mãos anônimas dos dedicados demiurgos-operários, unindo cada pedra à outra, tecem composições que, barrocamente ajeitadas, modulam entidades que adornam os passeios , de tal modo que o caminhar nunca se faz apenas a serviço do útil, pois sob os pés se imprimem seres feitos da arte de uma linha de fuga: passeamos sobre ondas sinuosas, cristais, flores, rosáceas, golfinhos, notas musicais - como na calçada por onde deambulou Noel Rosa, acompanhado de Cartola, Pixinguinha e Jacob do Bandolim.E nesses passeios também nunca se fala de verdades ou constatações, mas se canta, se assobia, se ri (sobretudo " ri-se de si mesmo", tal como preconiza o humor clínico de Nietzsche...).
A manutenção do todo formado - seja uma calçada ou nossa heterogênea sociedade - requer perseverante reinvenção, pois nada do que foi se manterá o mesmo , nas calçadas e no tempo.
E quem desejar entender esse Rio menor , não vá ler livros ou teses, mas vá ouvir o polifônico ritornelo chamado chorinho, cujas paisagens sonoras inventivas não cabem na métrica recognitiva dos postais.
E quem desejar entender esse Rio menor , não vá ler livros ou teses, mas vá ouvir o polifônico ritornelo chamado chorinho, cujas paisagens sonoras inventivas não cabem na métrica recognitiva dos postais.
2-Quando eu tinha cinco ou seis anos, não mais que isso,
morava em uma casa muito simples, ao lado de outra casa igualmente simples, nos fundos de
uma casa maior que dava para uma pequena rua de um singular bairro do subúrbio
carioca. Havia um pequeno pátio comum às casas. Este espaço era uma espécie de ágora menor , em cujo centro reinava um abacateiro sempre
generoso, em frutos e em sombra.À noite, gostava de me deitar no chão do pátio comum , que era aberto ao céu.
Ficava a olhar o céu, suas estrelas, seus espaços sem limite. O céu infinito era
meu principal brinquedo, e também quadro negro onde eu aprendia sem professor:
aprendia a aprender, um aprender que precede todo ensinar. Eu não especulava,
não perguntava, apenas me sentia parte de uma experiência que hoje vejo como de
uma poética e filosófica inocência.
Lembro-me de uma alegria que sentia, uma alegria intensa de existir, alegria esta que reencontro, renovada, ao ler
Espinosa.
3-A linha é feita de pontos. Os pontos são atualidades contíguas umas às outras.Sempre se pode acrescentar ou retirar
um ponto de uma linha. E aquilo ao qual se pode acrescentar mais uma realidade ou
subtrair-lhe uma, de fato não é um infinito. O infinito é aquilo ao qual não se pode acrescentar ou tampouco retirar-lhe realidade.O infinito é uma linha também, mas linha que passa
entre dois pontos.
Segundo Deleuze, a castração gera a angústia da finitude, da morte. Há toda uma cantilena da finitude, toda uma missa e cartilha. A castração não apenas separa o desejo da realidade, como acentua nossos contornos, fazendo-os de cela, presos à culpa. Ao invés da castração, Deleuze nos põe em contato com uma fissura, uma fenda. A fissura ou fenda aparece, primeiramente, como fenda ou fissura do Eu.Uma fenda nada tem a ver com uma castração, com uma falta. A fissura fende o Eu em dois: em Eu transcendental, o Eu que Pensa/Conhece, e eu empírico, o eu que existe ( e que possui nome próprio, RG, etc.), de tal modo que o Eu é um outro para o eu, o Eu que pensa/conhece se torna um outro para o eu que sente e existe. É o Eu que apenas pensa teoricamente que vê na fenda algo que o ameaça, e que pode levar o eu que existe a ver no pensamento algo que lhe falta, de tal modo que a fenda pode se tornar a marca de uma impotência imaginada, de uma dor, de um vazio que se vai querer preencher com uma droga, com um Deus, com uma anestesia...É o Eu que torna a fenda algo que ainda parece negativo. O Eu é um ponto, assim como o eu de nossa existência psicológica. Somente quando conectamos o pensar à experiência do que está no meio, e não mais ao Eu com suas Verdades ou ao eu com suas opiniões, somente assim experimentamos a fenda como limiar para um outro mundo, um mundo a experimentar e a criar, como devir.Vemos então que a fenda é uma linha que passa entre, que "é sempre
mais veloz no meio".Entre dois pontos sempre passa uma linha labiríntica, linha nômade, linha de rizoma e ritornelo. Os pontos são atualidades, mas a linha nômade é sempre virtual. Ela passa entre dois pontos: e no meio dela não há pontos, há apenas velocidades, intensidades, fugas como criação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário