Não é falso dizer que a revolução "é culpa dos filósofos"( embora não sejam os filósofos que a conduzem).(...) É sempre com a utopia que a filosofia se torna política , e leva ao mais alto ponto a crítica de sua época.A utopia não se separa do movimento infinito: ela designa etimologicamente a desterritorialização absoluta, mas sempre no ponto crítico em que esta se conecta com o meio relativo presente e, sobretudo, com as forças abafadas neste meio. A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler, "Erewhon", não remete somente a "No-where", ou a parte Nenhuma, mas a "Now-here", aqui-agora.O que conta não é a pretensa distinção de um socialismo utópico e de um socialismo científico; são antes os diversos tipos de utopia, dentre os quais a revolução. Há sempre, na utopia ( como na filosofia) , o risco de uma restauração da transcendência, e por vezes sua orgulhosa afirmação, de modo que é preciso distinguir as utopias autoritárias ou de transcendência, e as utopias libertárias, revolucionárias , imanentes.Mas, justamente, dizer que a revolução é, ela mesma, utopia de imanência não é dizer que é um sonho , algo que não se realiza ou que só se realiza traindo-se. Pelo contrário, é colocar a revolução como plano de imanência , movimento infinito, sobrevoo absoluto, mas enquanto estes traços se conectam com o que há de real aqui e agora, na luta contra o capitalismo , e relançam novas lutas , sempre que a precedente é traída.
Deleuze & Guattari, O que é a filosofia?
Todo limite é ilusório, e toda determinação é negação,
se não está numa relação imediata com o indeterminado.
Deleuze & Guattari, O que é a filosofia?
A utopia é uma maneira questionante, não passiva, de se relacionar com o lugar. "Topos", em grego, significa exatamente "lugar". Assim compreendido, o lugar não é apenas uma parte do mundo físico, pois há lugares mentais, desejantes, incorporais, nos quais nunca se pode estar, apenas acontecer, devir. As palavras "estátua", "estático", "estar" e "Estado" se originam de um mesmo termo latino, stare , que significa "parada". Como dizem Deleuze e Guattari, a etimologia é o atletismo do filósofo. Ela é um exercício do pensamento que nada tem a ver com as semânticas do dicionário, pois se trata de encontrar o acontecimento que dá origem às palavras.Assim, há lugares que são de parada, como o é também um túmulo; são lugares de poder e de morte, enfim. Mas há lugares que são de processos, de devires, de metamorfoses, de agenciamentos. Os lugares de parada podem ser circunscritos por contornos ou limites, ao passo que há lugares cujas fronteiras são limiares em vizinhança com outros lugares deles diferentes.
A geometria euclidiana pensa o lugar como algo que mora dentro de uma cerca, de um limite determinável; já o lugar da utopia cresce à medida em que ousamos habitá-lo: são lugares que crescem conforme crescemos, tendo a liberdade como tamanho.A utopia compreende um lugar ligado umbilicalmente com a Terra, o infinito.
O lugar , o topos, expressa um "aqui"; já o "u" de "utopia" significa um "agora". Erradamente se traduz "utopia" como "não-lugar", dando à partícula "u" a função de negação ou privação. Na verdade, a tradução mais adequada de "utopia" é "aqui-agora": de tal modo que é no agora que podemos libertar o aqui de seu imobilismo, mas também é no aqui que podemos pensar o que desejamos ser a partir de agora , e não a partir de amanhã...O aqui-agora não é espera, não é esperança: é liberdade em ato, no espaço e no tempo. Todavia, não se trata de um espaço meramente físico, ou de um tempo tão somente cronológico.É um espaço de criação que pede um tempo que é de ruptura, de inovação.
Do ponto de vista físico, os lugares são simultâneos: eles estão dados, sem sucessão, em um mesmo presente histórico, cada um com sua respectiva identidade. Do ponto de vista da utopia, os lugares são coetâneos: eles co-existem e se conectam, pela diferença. A coetaneidade dos lugares utópicos são espaços de rizoma e heterogênese.
Do ponto de vista da física social, estudantes, trabalhadores, artistas, negros, brancos, homossexuais, heterossexuais, favelados, intelectuais, etc., ocupam lugares euclidianamente estanques, delimitados que são por contornos determinados, muitas vezes construídos com arame farpado.Da perspectiva da coetaneidade da utopia, esses lugares se abrem e se comunicam pela experiência de um agora que faz do aqui o espaço comum daqueles que , em devir, desejam criar agora um outro lugar que seja aqui, e não em outra vida ou em outro mundo.Como dizem Deleuze e Guattari, " a revolução é a apresentação do infinito no aqui-agora : a revolução é a desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo à nova Terra, ao novo povo" ( O que é a filosofia?, p. 131).
Os que nascem em um mesmo lugar se identificam chamando-se reciprocamente de "conterrâneos": os que têm " uma terra em comum".Como desterritorialização absoluta, a Terra de que falam Deleuze e Guattari não se confunde com um território ou Estado. Somente afirmando essa Terra é que nos tornamos conterrâneos de tudo o que é vivo.
Essa afirmação é dupla: ela implica a coetaneidade dos lugares utopicamente vividos como lugares de diferenças em conexão e agenciamento para instituir o comum, e supõe também a experiência de um devir planetário que nos torna conterrâneos por aquilo que criamos e ousamos, contra todo fascismo e apequenamento da vida.
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