Vá ouvir um samba antigo
para saber o que há de novo.
Sidney Miller
Nélson Rodrigues dizia que “a moral é uma cerca: os ricos passam por cima dela, enquanto os pobres passam por baixo; somente a classe média dá com os peitos nos limites da cerca e não a ultrapassa ”. Uma coisa uniria ricos e pobres: eles não levam em consideração a cerca como limite que os regule. Os ricos a burlam indo “por cima”, comprando o que o poder pode obter como meio para quem quer transgredir, mas sem “sujar as mãos”; já os pobres vão rente ao chão,eventualmente se sujam, posto que se abaixam.
A moral é um “não”: algo que se impõe limitando. Limitando os apetites, as inclinações, as paixões. Essa história de Nélson apresenta uma imagem negativa da liberdade: ser livre seria transgredir a cerca, não importando os meios. Os seres da classe média seriam os “neuróticos”: eles obedecem a uma imagem da liberdade negativa também, mas como “respeito à cerca”, “respeito à Lei Moral”.
Filosoficamente, Kant é o mentor de tal atitude “classe média”: média no agir, média no desejar, média no pensar, sempre com as marcas da cerca no peito. E se os ricos e os pobres se colocam nos extremos, tais extremos também se definem pela média que eles burlam.
Mas cabe a inocente pergunta, que certamente fariam Nietzsche, Espinosa, Manoel de Barros ou uma criança: “quem fez a cerca?”. Não só quem pára nos limites dela, mas também quem a transgride acredita nela: quem a ultrapassa extrai prazer dessa transgressão, mas ainda mantendo a cerca como referência, mesmo que para negá-la. Liberdade neurótica e liberdade perversa: ambas ainda se explicam pelo “não”, pelo limite. O “iconofílico” e o “iconoclasta” se explicam pelo mesmo ícone: o primeiro se ajoelha diante dele, enquanto que o segundo o quer destruir pelo desprezo. A história política nos mostra infelizes e bizarras uniões entre os que pulam por cima e os que se arrastam por baixo da lei, e implantam as mais variadas formas de fascismos e demagogias, ou a mistura de ambos.
A liberdade, a liberdade do desejo, e não a do mero prazer, não estaria em pensar e agir sem ser a partir de uma cerca? Pensar e agir não seriam afirmações de uma outra ordem? O perverso nega a negação, afirmando uma afirmação derivada do que ele nega. Transgredir também é uma reação. Se retirarmos as cercas fica livre não apenas quem elas limitavam , como também quem as transgredia.
Pensar não é partir de uma cerca, e sim do infinito. É em relação com este que podemos criar algo que seja realmente libertário: um pensar e agir que criam alguma consistência para si, mas sem perder o infinito. Dar consistência não é cercar, diminuir, limitar, negar; dar consistência não é solidificar, enrijecer. Dar consistência não é objetificar.Virtual procede de virtu, que significa força. Não a força física, a que nasce do corpo orgânico e seus músculos, e que pode servir ao ódio e à destruição exclusivamente, mas sim a força que nasce do espírito, como potência de criação. Dar consistência ao virtual é aumentar sua força: é torná-lo imanente ao ato que o torna consistente.Dar consistência à potência é afirmá-la como afirmação que afirma a afirmação. Dar consistência à potência é habitá-la, mas sem diminuí-la ou cercá-la.
Se a moral é uma questão de cercas, a ética é uma atividade que visa criar consistência para nosso modo de vida, ampliando-o, potencializando-o. A ética é uma prática do desejo. Se Kant é o filósofo da cerca, Espinosa é o pensador da ética: nem classes nem cercas, mas a multitudo, a multiplicidade que não se pode limitar ou cercar. Ética como criação de consistência, isto é, de agenciamento que distingue a lei das “regras de vizinhança”: estas são “noções comuns” , como diz Espinosa, e não leis. A noção comum se assemelha a um barco no qual entramos para , remando juntos, fazermos a travessia de um fluxo . Daí nasce a liberdade como prática de um perseverante esforço, ao invés de uma cerca que separa espaços com identidades fixas ; mas tampouco se afirma a diferença apenas transgredindo essas identidades fixas... Como diz Nietzsche, “só podemos destruir sendo criadores”.
Não há agenciamento ou “bom encontro”onde a referência é a cerca, seja como limite que pára ou como limite que se quer apenas para os outros, e que com prazer se burla. Segundo Deleuze e Guattari, o agenciamento pressupõe uma zona de vizinhança entre cada um que se agencia, e o que está no meio nunca é uma cerca, nem uma média, mas abertura a um processo que singulariza.
Um comentário:
Sobre Espinosa e Kant:
Autonomia e cotidiano - Espinosa e o imperativo de Kant: "Tratar os outros e a si mesmo como fins, jamais como meios" http://humanaesfera.blogspot.com.br/2015/10/autonomia-e-cotidiano-espinosa-e-o.html
Postar um comentário