terça-feira, 18 de junho de 2013

Nietzsche, Espinosa e a multidão





Eu amo as ruas.

João do Rio, "A alma das ruas".


Lua que não muda,
não muda a maré.

Wilson Moreira.


1-Segundo Nietzsche, "quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo,devemos  tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros". Há uma outra ideia de Nietzsche que dialoga com essa. Esta outra ideia, como todo pensamento de Nietzsche, é endereçada sobretudo aos jovens. Não ao jovem que, com o passar dos anos, envelhece e passa a servir ao mesmo poder e modo de vida que combatia quando jovem ( e não faltam exemplos disso nos parlamentos e academias...). O jovem ao qual Nietzsche fala é o espírito de não acomodação, que exerce, política e existencialmente, a sua potência de crer. "Crer" e "criar" provêm de um mesmo termo latino: "creare".Somente quem crê de fato cria. O poeta que cria sua poesia, crê na arte; se criamos um vínculo com alguém, é porque cremos no agenciamento. Crer é a mais elevada forma de criar. Quando o crer se separa do criar, passamos a esperar que um outro nos dê o que somente nós poderíamos obter, seja esse outro o Estado, o dinheiro, a sorte ou mesmo Deus. Afastado do criar, o crer se torna apenas uma espera que pode dar vez ao desespero, quando não se tem a potência e coragem de criar. O grau máximo de afastamento do crer em relação ao criar acontece quando o crer passa a esperar por um além , uma outra vida, que seria a "vida verdadeira". Mas como diz Deleuze, a grande prova do crer é crer nesta vida, e este crer também significa criar a própria vida, tornar-se ativo.Se alguém não crê, também não cria. Quem não crê pode até criticar, julgar, depreciar, zombar...Mas desse destruir nunca nasce o criar. E o criar não é tarefa fácil, assim como não o é o crer que serve ao fazer e ao produzir, e não à espera. A referida frase de Nietzsche é: "Só podemos destruir sendo criadores". A destruição é a crítica, o protesto, a indignação e até mesmo a revolta. Mas o criar é alegria, afirmação, agenciamento, arte, vida. 
Os monstros de que fala Nietzsche não estão no fundo do mar ou na floresta negra. Eles estão à nossa volta, na tela da tevê, nos parlamentos, nas negociatas, na mercantilização do ensino  e da saúde, na música vulgar e cinemas do clichê. Aliás, o clichê é um dos maiores monstros que podem devorar a criação autêntica. Os monstros são modos de vida consumistas, individualistas, banalizadores das experiências realmente revolucionárias, sobretudo as micro-revoluções do desejo. Os monstros também são a violência , a miséria, a corrupção, a ignorância. Os monstros são físicos e simbólicos. Se ao lutarmos  contra tais monstros viramos também monstros, nossa força se adiciona à força deles, de tal modo que lutamos pela nossa própria destruição.Não se vence os monstros monstruosamente. Os monstros apenas destroem, diminuem, negam. Para lutar contra eles, é preciso primeiro afirmar o que nos distingue e dá força, confiança e potência. A afirmação da ideia adequada é, ao mesmo tempo, afirmação dela própria e destruição da ideia inadequada, ensina Espinosa. Não é meramente querendo destruir a ideia inadequada que se a vence, mas afirmando a ideia adequada, fazendo-a ter mais vida, mais potência.Quando Nietzsche afirma que "só podemos destruir sendo criadores", ele quer dizer que é o que somos que autoriza o que podemos. E o que somos nunca é destruição, mas criação, afirmação, invenção. Quem não é, também não pode, ou pode menos do que se de fato fosse, do que se de fato criasse seu próprio ser, ativamente.Quem não é, também não age, apenas reage, por ressentimento. 
2-Segundo Espinosa, a  multitudo , a multidão, não é um grupo com extensão máxima.O grupo ainda está sujeito à lógica do eu e do tu. O grupo é um eu ainda, um eu ampliado; o grupo  é uma soma de eus. O outro grupo é, por isso, um tu ampliado.Os grupos se opõem, eventualmente se associam, como um eu ao tu.Quando o grupo toma   consciência de seus interesses de poder, disto poderá nascer um partido político.Entre este e as facções de todos os tipos a diferença não é em relação aos fins, mas aos meios.Quando da multidão se destaca um grupo, este passa a querer poder, potesta.
A multitudo não é um grupo, ela escapa à lógica do eu e do tu: enquanto entre estes pode nascer um contrato, na multidão há apenas direito em estado nascente. E direito em estado nascente é potência. A potência é sempre um direito em estado nascente, que nunca deixa de nascer e questionar os direitos "morrentes", que são perpetrados  por letras mortas e togados bem pagos ( além das forças policiais).A multidão é sem centro. Ela é fluxo, sem margens. A multidão não mora em palácios, casa ou mansões: ela mora na rua, na praça; ela mora se movendo , e cresce absorvendo o que já faz parte dela, por natureza e não por contrato( jurídico,  político ou moral). A multidão tem uma única potência, da qual nascem todas as outras: a potência  de instituir. E é por isso que a multidão é espontânea, sem limites. A multidão nunca é triste nem age apenas por ódio ou raiva, embora a mova a indignação. A multidão não tem líderes ou chefes.  A multitudo é um nós.Deste nasce o afeto pelo comum. O comum nunca é uma propriedade, esta sempre o é de um eu ou de um tu. Há propriedades em comum, o que nada tem a ver com o comum que não é propriedade de ninguém, posto que é o comum.A multitudo deve nascer  dentro de cada um, como multiplicidade de percepção e riqueza de vida, e não de bens, posses ou títulos. A multitudo não possui nada, a não ser a ela mesma, que sempre se transforma, múltipla que é. Os partidos, as classes sociais, etc., são sujeitos históricos, ou têm a pretensão de ser; mas a multitudo está sempre em devir, sempre contra este tempo, não importa qual, sempre a favor de um tempo por vir.A história é linear, tem começo e se pretende ter um fim; mas os devires são multidirecionais, abertos, não lineares, pois inventam caminhos onde se acreditava não poder mais ir.
A multitudo tem dois "inimigos": o poder totalitário que, colocando-se transcendente a ela, usa a força  (física e simbólica) para mantê-la na escravidão e na impotência; e o "estado de natureza" como "guerra de todos contra todos", que impede que a multitudo possa se constituir e adquirir consistência. Esses dois inimigos são as duas faces do fascismo: ele já  formado ( o Estado Totalitário) e o berço no qual ele nasce  (os indivíduos que , confundindo criação com destruição, potência com força física, colocam-se à parte da multitudo, incapazes que são de pensar e fazer o comum).
Um grupo possui limites definidos pela sua identidade;a multitudo possui limiares que vão até onde vai sua potência.A multitudo visa produzir uma alma e um corpo comum; isto não significa um pensar e um agir igual.O comum não é uma propriedade, não é uma opinião. Ele é aumento de potência de pensar e agir; logo, de existir. O comum  é aumento da potência de pensar e agir de cada um. O comum não é propriedade, ele é comunidade da qual participamos com nosso desejo.A multitudo não é exatamente o povo ou a nação,  muito menos a massa. Povo, nação , massa...são recortes na multitudo feitos a partir de fora.A multitudo habita não um país, ela habita a Terra, embora seja sempre em um país, uma cidade ,ou mesmo em um bairro, que ela se manifesta.E onde a multitudo se manifesta, neste local também se expressam as questões sem fronteiras determinadas, que concernem à humanidade inteira.
A multitudo , a multidão, não é a mera soma  de vários “uns” : ela não é um todo que nasceria  apagando o “um” de cada  um. O prefixo “multi” indica um ato de multiplicação. A multitudo é a multiplicação do  ser um de cada um : ela é o um que nasce da ampliação do direito de cada um de  existir como  um. Na multitudo, cada um encontra ampliado, potencializado, o seu direito de ser um, singular. Por isso, ela não nasce da soma da potência de cada um, mas da ampliação ou multiplicação da potência de cada um. Quando a potência de cada um é ampliada  , nasce o um da multitudo. Um que é, ao mesmo tempo, vários, posto que este um é  inseparável  de cada um que ela, a multitudo,  amplia. Por isso, jamais a multitudo é homogênea: ela é heterogênese, isto é, expressão da diferença singular que a produz e que ela dá a ver no seu ser um, ampliando-a. 
A adição de potências  ocorre na multitudo em favor da co-instituição do imperium, isto é, da autoridade política. O um do imperium não é multiplicação ou ampliação  do um singular de cada um, uma vez que seu um nasce da adição de potências . Adicionar, somar, não é multiplicar. Por isso mesmo, o imperium, o poder do estado,  pode ser dissolvido quando não se somam mais as potências que lhe deram nascimento, ou quando o detentor do imperium subtrai sua potência da potência da multitudo, ambicionando existir como um todo à parte, transcendente à multitudo
A multitudo nunca pode ser dissolvida, pois ela não é a soma de potências, mas potência nascida da ampliação de cada potência  una. Somente o que nasce da soma pode ser dissolvido, como o muro que nasce da soma de tijolos. A multidão pode estar a dormir, mas sempre há a possibilidade de ela acordar.
 Um indivíduo pode querer se furtar ou se subtrair à multitudo: ele o faz quando pretende retornar ao estado de natureza, ambicionando impor seu direito natural sem medir conseqüências. Mas quando assim procede, tal indivíduo não agride apenas o um de um indivíduo particular , mas ao um da  multitudo como um de todos. Sua ilusão é supor que seu direito , ou existência,  se potencializa negando , subtraindo. Ao contrário, subtrair-se à multitudo é diminuir o direito próprio. A verdadeira potência afirmativa não é adição,  mas multiplicação: afirmar-se verdadeiramente não é colocar-se como “um todo à parte”; afirmar-se é multiplicar-se sendo um com o um de todos, para além de todo contrato,  para assim instituir o comum. 
Vivendo em   sociedade o homem vence o que mais o ameaça no estado natural: não poder organizar os encontros que faz. Assim, a vida social é , sobretudo, organização dos encontros: favorecimento dos encontros que produzem afetos que aumentem o poder de agir de cada um ( educação, conhecimento, paz, cordialidade, civilidade, cidadania, etc.); diminuição dos encontros que podem ameaçar a conservação de cada um ( os ilícitos, a pobreza, a doença, etc.). Uma sociedade somente se conserva quando é expediente para a conservação do direito natural de cada um. Se ela põe este direito natural em risco, a própria sociedade, enquanto indivíduo, torna-se um mau encontro que precisa ser destruído, para que uma outra sociedade, da imanência da multitudo, venha a nascer.
Contudo, como observa Deleuze, o direito natural é abstrato quando isolado da sociedade civil. Ele só se torna concreto quando o vemos como causa eficiente da sociedade,  esta se tornando também causa eficiente para a ampliação do direito natural. Ninguém no direito natural é “tirano” ou “corrupto”, pois “tirania” e “corrupção” são práticas que pressupõem uma sociedade já constituída. A dificuldade de se abordar o direito natural é que ele, sendo pré-social, não pode ser compreendido com os valores da sociedade, com seu universo axiológico. Porém, há ainda um  risco, um risco moralizante que afasta o homem de compreender a si mesmo em sua realidade natural,  quando os teólogos de toda ordem aplicam sobre o estado de natureza valores que só têm sentido com o estado social já constituído, valores estes que extraem sua força (reativa) da desqualificação que fazem do estado natural  em nome de idéias transcendentes.  
O homem não nasce razoável, cidadão ou religioso; ele pode tornar-se tais coisas apenas em sociedade, afirma Espinosa.  Porém, o estado de natureza  não é um estado irracional, tampouco ele é anti-social  ou a-social, pois anti-social e a-social são noções cujo sentido pressupõe o de social, assim como as noções de desvio ( quando se diz que um comportamento é desviante)  ou de margem ( quando se atribui a um comportamento ser marginal). Se os comportamentos desviantes e marginais existem, sempre o são em uma sociedade  estabelecida, não no estado de natureza. Assim , mesmo “mentir”, “dissimular” , “corromper”, “agredir”, etc. são comportamentos imediatamente sociais , e não naturais. Se pudéssemos abstrair a sociedade na qual tais comportamentos acontecem e tentássemos apreendê-los do ponto de vista puramente do direito natural, o que seria uma tarefa  ao mesmo tempo difícil e abstrata ( pois só podemos imaginar tal coisa e não compreendê-la), tais comportamentos não teriam o mesmo nome , tampouco o  mesmo significado que atribuímos a eles , uma vez que o uso da linguagem , reconhecendo  uma unidade semântica para as palavras, já pressuporia uma sociedade. 
É por isso que todo processo revolucionário , quando evoca o poder constituinte originário, isto é, a potência constituinte da multitudo ( a multitudo é a unidade heterogênea, pré-social, das potências de agir com poder de co-instituir uma ordem social, isto é, a multitudo é a causa eficiente do social e do campo jurídico ), é por isso que todo processo revolucionário  suspende não apenas a ordem jurídica, como também , não raro, a ordem simbólica: o que  na semântica da ordem suplantada era crime, na nova ordem pode ser considerado ato justo; alguém que na ordem antiga era prostituta, descobre-se militante na ordem nova ( como no filme Terra e Liberdade). Esta  suplantação da ordem simbólica estabelecida  constitui ,em toda revolução, tanto na revolução social como na pessoal , a sua  produção de sentido.
Mas para além dos valores está a potência. Os valores são dicotômicos ( justo/injusto, lícito/ilícito, racional/irracional, etc.), ao passo que a potência é múltipla em sua essência singular, una. A potência é mais do que o justo, é mais do que o lícito, é mais do que o racional. Ela é mais porque  seu negativo, a impotência, é tão somente seu enfraquecimento, e não uma outra realidade que lhe faz oposição dicotomicamente. Em latim, potentia também se diz jus, direito. Este direito é natural. O direito jurídico, nascido que é de uma sociedade, traz os valores e dicotomias dela, ao passo que o direito natural, idêntico à potência da multidão, tem por principal critério a existência e a conservação do direito de existir da multidão, pois é seu direito natural se opor a tudo aquilo que quer diminuir sua existência, tornando-a impotente, triste, escrava. Em Espinosa, somente o que é produzido pode ser conservado. Assim, a conservação não é um algo  estático, dado que conservar uma potência é garantir seu direito de expressar-se, de expandir-se, tais como os direitos de agir e de pensar. E estes são direitos que se conservam pensando e agindo, e nunca de outra forma. 






2 comentários:

João disse...

Caro Elton,

o desenho e o texto, em coerência com todo o seu trabalho, aliam beleza e indução permanente à reflexão. Inspirador.
Grande abraço,
João Maurício

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Obrigado, João!
Que possamos conseguir manter a multitudo viva, e sempre a favor da vida, da alegria, da construção,do direito sempre nascente,idêntico à potência!